sábado, 4 de maio de 2013

Manhã de sábado


Hoje a hora da piscina é tardia e não dá nenhum jeito. Substituo as mais de 30  piscinas, que normalmente faço, por um passeio a pé aproveitando um salto à “Evian” para tomar café. O rapaz atrás do balcão não precisa que lhe diga nada e tira a “bica” escaldada como a aprecio. Os rostos nas mesas são os mesmos do costume, penso para comigo como é que no meio da crise as pessoas ainda tomam pequenos-almoços na pastelaria. Deixo rapidamente o balcão e continuo o passeio. Passo pelo busto do fundador do Uruguay, José Artigas, e pergunto-me o que tenho a ver com aquele “gajo”, penso melhor e até tenho, foi um lutador determinado por uma causa e é um ser humano, só por isso já o merecemos ali, na avenida com o nome do seu País, é também um homem que ficou na história e, portanto, o conhecê-lo uma forma de cultura. Muito aprenderíamos se olhássemos a estatuária da cidade com olhos de ver, só que passamos por elas e não ligamos demasiado ocupados com a vida quando na nossa cidade e, só notamos os pontos de interesse quando nos deslocamos a outras terras. Passo na banca do alfarrabista e dou uma vista de olhos aos livros velhos vendidos a um euro não descobrindo nada de interesse, também para que quero mais livros se ando a ler dois em simultâneo e já não tenho móveis nem espaço para meter mais. Sigo até ao largo da igreja de Benfica onde ao sábado, há bancas de artesanato e bijutarias. Deixo para trás o velho chafariz, onde os pombos, cabisbaixos, permanecem esperando a comida que dantes lhes caía do céu qual maná no deserto, bem podem aguardar, a edilidade cortou-lhes a ração oferecida atirando cá para fora uma postura proibitiva. Neste país tudo se proíbe, esquecendo que “o proibido é o mais apetecido”. Ali, e neste caso, não, a polícia anda por perto e actua, os pobres bicharocos alados é que não esquecem que ali é que era bom, ficando a aguardar que um transeunte mais afoito lhes deite algo comestível como antigamente. Passo pelo quiosque e paro atrás de uma fila que lê os jornais expostos em duas colunas presos com molas de roupa, “alfinetes, como a minha avó lhes chamava, alfinetes porquê se aquilo nada tem de semelhante coisa? talvez por serem para a roupa, pois nessa é que se espetam alfinetes, coisa de costureira com certeza. À esquerda os jornais com a crise, nas primeiras páginas mais cortes anunciados pelo governo, à direita as “façanhas” do Nosso Benfica abençoado por “Jesus”. Deviam estar ao contrário, o governo à direita e o futebol à esquerda, pois esse é que é do povo, o outro é do capital. Não leio nada de novo que não tenha visto já na TV. Vou um pouco mais longe até ao jardim junto do mercado onde a junta de freguesia promove actividades desportivas e culturais, para lá chegar passei junto ao mercado onde à volta enxames de ciganos e passantes se entrecruzam, uns vendem outros compram ou discutem preços. Raparigas de cor com saias curtas e “collants” justos, deslocam-se meneando as ancas. Mais à frente, debaixo de toldos, montes de bancas dos ciganos vendedores de roupas numa algaraviada de pregões e chamamentos. No jardim, matronas sessentonas com camisolas vermelhas e iguais, distribuídas pela junta, correm atrás de bolas tentando metê-las em exíguas balizas balanceando e sacudindo as carnes já volumosas. Mais à frente ainda, alguns garotos, em cima de um xadrez gigante, movem e brincam com as peças não sabendo o que fazem. Nas mesas de pedra, tabuleiros de xadrez, tristes por abandonados, deviam ter sido substituídos por damas ou gamão, jogos mais ao gosto dos reformados deste país, para jogar xadrez seria preciso outra cultura ou outras gentes, isto aqui não é a Rússia. Deixo o jardim e entro no mercado onde a azáfama é enorme, bancas cheias esperam os clientes que muito passam mas pouco compram, provando que esta crise não é o caminho certo. Olho os carapaus e penso que os estaria assar se estivesse na minha aldeia saloia, Assafora, onde se “assa fora” de casa, será que vem daí o nome?
Já dentro do portão da mata de Benfica sento-me num banco olhando os altos cedros e eucaliptos recordando a infância quando no “Pilão” saltava o muro para ir ali aos ninhos que referenciava memorizando árvores e locais. Num banco ao perto, um casal de namorados, de pernas entrelaçadas, lambuza-se e apalpa-se num jogo desenfreado de desejo incontido, alheios a tudo e a todos e estando-se nas tintas para quem observa. Recordo os meus namoros de juventude quando procurávamos esconderijos para trocar uns beijos e outras pequenas malandrices que agora nos parecem demasiado ingénuas. Penso que os jovens de agora são mais sãos, mostram o que fazem sem medo nem vergonha.
A manhã já vai adiantada e resolvo voltar a casa. Na estrada de Benfica passo por um pedinte, de meia-idade, sentado num pano junto à parede, mostrando um coto de perna que já foi. Uma caixa de cartão contém alguns cêntimos e até uma moeda de euro. Conheço aquele homem há anos e penso que já deve estar rico. Alapardado junto à parede nem se dá ao trabalho de pedir, quem se condoer que poise o óbolo, mais valia que lho metessem sob a língua, para que Caronte lhe transportasse a alma até ao descanso eterno. Entretanto vai-se dedicando a limpar o nariz atirando as excrescências macacoides das fossas nazais, contra a parede com um “plic” de unha bem aplicado. Aquela parede já deve estar bem revestida e muito trabalho dará aos arqueólogos daqui a uns milhares de anos, quando desenterrarem ruínas de Lisboa soterrada por sucessivos terramotos, senão destruída por qualquer conflito atómico, para descobrirem porque numa parede se encontra ADN humano.
Volto para casa mais enriquecido. Ligo a TV, os “passos” do Passos continuam a lixar-nos.