quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

O sofrimento




Há quem diga que os homens têm de sofrer pra ganharem um lugar eterno junto do “criador”. Ando pelas ruas e vejo sofrimento por todos os lados. Um homem, mais novo do que eu, agarrado a uma bengala, dá três passinhos, pára, tenta dar mais um passo, mas as pernas não lhe obedecem e quase cai. Fico na dúvida se devo ajudá-lo ou não. Gostava de ter o talento de escrita do meu amigo Balsa, ou o poder de síntese e de lógica de outro meu amigo, Alves de Fraga, para descrever com um pouco menos de crueza as situações que se me deparam. Eu, certamente por ser ateu, não sofro, não procuro o tal lugar eterno. Mas o estranho é que não são só os humanos. Um pombo quase não consegue levantar voo por deformação numa pata. Outro, deitado, já não foge de coisa nenhuma e a cabeça vai-lhe pendendo com os olhos a fecharem-se. Estará por pouco. Mais à frente uma senhora passeia um cão só com três pernas. Um melro está morto e outro saltita à sua volta. Um coxo, com uma perna esquelética à vista, pede esmola num sinal de trânsito. Pobre homem que não consegue sequer arranjar jardins para ganhar o sustento. Uma cigana romena, embrulhada em cobertores e xailes, sentada junto às escadas de um supermercado, fala uma lengalenga imperceptível estendendo uma lata para as esmolas que algumas almas condoídas sempre vão dando. A essa não dou nada e, se tivesse poder para isso, recambiava-a para o seu país de origem. Não tem ainda 40 anos. Dá-me vontade de lhe pregar uma esfregona nas mãos e mandá-la lavar escadas pois há muitas a precisarem de limpeza. Mas essa faz parte de uma máfia familiar que se reveza e troca de lugares a miúde. Devem estar ricos. Para que lhes servirá o dinheiro?
O sofrimento existe neste mundo e não é sina de ninguém nem destino que está marcado. É assim porque fazemos parte de um sistema não pensado, não ordenado e com um único destino. O fim. Somos um produto da evolução animal e não perfeito. Não há uns “abençoados”! e outros “demonizados”. Apenas vivemos e vamo-nos degradando até ao fim. Fim esse que é igual para todas as coisas. Pena não nos transformarmos em diamantes. Esses são eternos. Pelo menos até este nosso pobre astro rebentar.
Chego à minha rua, sento-me dentro do meu BMW, ligo o rádio, meto um disco, e oiço Verdi e Mozart. Não digo, mas penso: “Aqui está-se bem”.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Deus, a criança e o buraco.




Mais uma vez deus vosso senhor não estava lá. O que lá estava era um buraco com 110 metros de profundidade e menos de 50 cm de diâmetro. Também não estava lá a pedra que o responsável pelo furo disse que lá colocou para tapar a abertura. Ou alguém a tirou ou nunca lá foi posta. Um furo daqueles não se protege só com uma pedra, tem também de ter uma vedação suficientemente forte para não poder ser facilmente acessada. Uma criança de dois anos não a ultrapassaria. Duas crianças brincavam completamente sós. Uma de 2 e outra de 1,5 anos. Não se deixam crianças desta idade totalmente desprotegidas perto de uma obra daquelas. Deus deve ter dado outra missão aos anjos da guarda das criancinhas. E agora? Os pais choram, mas talvez se arrepelem com remorsos. Mais de 100 pessoas trabalham a contra-relógio para encontrar a criança. Os pais acusam falta de meios. Quais meios? Como se chega a um corpo num buraco daqueles. É necessária uma obra de engenharia colossal. Talvez já não valha a pena andar depressa para chegar ao corpo. Sim, um corpo, pois vida já não poderá haver. A câmara que meteram pelo tubo parou aos 75 mt. Ainda por cima deve ter havido uma deslocação de terras que tapou o furo. Tudo contra. Agora, deus, na sua infinita misericórdia, deve estar satisfeito por ter junto de si uma alma jovem. Que espere pelos pais para receber as reclamações pela falta de humanidade que revelou.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

1º dia do ano.


Hoje, primeiro dia do ano, sinto-me preocupado. Não que tenha problemas pessoais, felizmente não os tenho. Pelo contrário, até me sinto um privilegiado. Faço parte daquela classe média, talvez média um pouco alta, que tem o suficiente para viver sem grandes problemas. Perguntar-me-ão: “Não gostarias de ter mais?” Claro que gostaria, quem não gosta? Mas, olhando para os que me rodeiam e estão mais ou menos ao meu nível, verifico que tendo muito mais do que eu, agradecem a deus a sua vida e ainda lhe pedem para que tudo lhes corra pelo melhor e aos seus também. Vivem em função daquilo que deus lhes dá e tudo é obra sua. Dá a sensação que nada fizeram pela vida porque foi deus que lhes colocou tudo ao dispor. Avaria-se-lhes a máquina de lavar e a primeira coisa que lhes vem à cabeça é: “Meu Deus, faz com que isto trabalhe.” E a coisa resulta. Um murro na máquina e lá começa ela vrum…vrum. O computador não liga e ficam aflitos. “E agora? Não percebo nada disto. Meu Deus era bom que me ajudasses.” Batem-lhes à porta e é o António. “É pá! Ainda bem que apareceste. Tu é que sabes disto. Vê se me dás um jeito aqui na porcaria do portátil que não quer ligar.” O António resolve aquilo num fósforo e lá dizem eles: “Deus ouviu-me, foi ele que mandou o António.
Tenho estado a ver a TV. Estou farto de fogo de artifício, de rolhas de garrafas de espumante a saltarem e de pessoas a pedirem a deus toda a espécie de venturas, prendas, prebendas, etc.
Não ouvi ninguém a pedir a deus para que as criancinhas dos países africanos, da Síria, do Iraque, do Bangladesh, dos párias da Índia e outros desgraçados que não comem, para que nós os privilegiados, possamos continuar a explorar os recursos que os seus governos corruptos, vendem para se enriquecerem deixando o povo na miséria. Ou também para que deus trave os instintos predadores dos governos democratas ocidentais que, não obtendo de forma pacífica o que pretendem, provocam guerras que tudo destroem e tanta miséria causam.
Dizem que deus mandou um filho à terra morrer por nós para nos salvar. Pergunto: “De quê?
Salvar? De quem? De nós próprios? Para termos compensações na vida eterna? Hum… não seria melhor salvar as criancinhas a que acima me referi? A essas ninguém salva. O deus deve ser surdo ou então ninguém pediu para elas e por elas. Tristeza. Tanto egoísmo. Como pode este mundo ter sido criado e governado por um deus bom?