sábado, 14 de setembro de 2013

As Pedras da Minha Rua

A morte do companheiro Langão trouxe-me tristeza, a tristeza trouxe-me saudade, a saudade trouxe-me isto:

As pedras da minha rua esfolavam-me os joelhos. De tanto por lá cair e roçar a pele, aquilo já era uma postela completa. A desinfecção era a língua do meu cão: “Anda cá Black, lambe aí”; e lambia, lambia até ficar tudo limpinho e desinfectado. Mas as pedras também serviam para serem atiradas pelas fisgas e fundas. Lembro-me de uma funda que fabriquei com base num desenho tirado da Bíblia das Escolas. Já naquele tempo me interessava pela história dos povos e pelas religiões. Aquela bíblia, obrigatória nas aulas de religião e moral, era para mim melhor do que uma história em quadrinhos. Sanção, David e Golias eram as minhas preferidas. Nesta última tinha um pretenso desenho da funda com que David matou Golias. Coitado do bom gigante que mais não fez, como bom soldado, que obedecer a ordens superiores e ir lutar contra um espirra-canivetes da tribo vizinha. O certo é que essa funda era especial e admirável. Até ali, as nossas fundas limitavam-se a duas cordas de juta atadas a um quadrado de cabedal, normalmente de uma lingueta de um dos nossos sapatos. Resolvi que a minha havia de ser especial. Já não me lembro onde encontrei a tira de cabedal que lhe deu origem. Cortei-a com um canivete afiado, deixando no meio um rectângulo suficiente para comportar as pedras e, com três tiras para cada lado, impecavelmente entrançadas, foram feitos os tirantes que terminavam num olhal num dos lados, para enfiar o dedo médio e, do outro o terminal para segurar enquanto se volteava por cima da cabeça ou ao lado do corpo. Após as voltas consideradas necessárias e em consonância com a velocidade pretendida para o arremesso, o terminal era largado, desferido o “tiro” ficando a funda agarrada à mão pela argola enfiada no dedo. Depois de vários treinos, a rapaziada ganhava uma pontaria de mestre e conseguíamos acertar num pau-de-fio, a cinquenta, sessenta metros de nós. Era obra, e muita cabeça foi partida. Ainda hoje não posso cortar demasiado o cabelo para não deixar à mostra as marcas dessas “brincadeiras”. Belos tempos esses em que os papás se limitavam a curar-nos as feridas sem importunarem os papás dos outros pelas culpas no cartório. Nós também tínhamos as nossas.
Atirámos demasiadas pedras e nunca conseguimos “limpar” a rua, pois elas pareciam nascer-nos debaixo dos pés. Já naquele tempo a minha rua era a mais atrasada do Cacém. Chamava-se Ribeiro de Carvalho, meu padrinho de registo, ateu, republicano anti-fascista e director do Jornal República. Passou toda uma vida a fugir à famigerada PIDE que nunca o conseguiu engaiolar. Tinha excelentes pontos de fuga e umas cavernas lá na quinta, que mais tarde vim a conhecer. Outros amigos, como Araújo e Sá, meu vizinho e Ramon de La Féria, médico, passaram alguns anos a ver o sol aos quadradinhos. Dizia-se que a rua não era arranjada devido ao nome que tinha. Depois de um triste acidente, Ribeiro de Carvalho sofreu um traumatismo craniano e morreu uns meses depois de ter sido operado. Lembro-me de Araújo e Sá, pai de quatro meus amigos de infância, dois rapazes e duas raparigas, dizer que o tinham assassinado. Não acredito muito, mas…
Naquelas pedras, brinquei, corri, caí, saltei ao eixo, às fogueiras dos santos populares e namorei. Lembro os fins-de-semana, quando vinha do “Pilão”, Instituto dos Pupilos do Exército, onde estudei, reunir-me com os amigos, rapazes e raparigas, encostados ao muro de minha casa, conversar, namorar e fumar uns cigarritos sempre de costas para a janela para o meu Pai não ver ou fingir que não via. As vidraças dos vizinhos, os beirais dos telhados, os pardais e as cabeças dos companheiros, foram os alvos daquelas pedras. Já contei demasiadas vezes o que aquela rua era para mim. Hoje já lá não tenho ninguém, mas a casa ainda lá está. A rua já não tem pedras e continua com o mesmo nome, felizmente, agora mais respeitado. O asfalto, os muros arranjados e pintados deram-lhe um cunho diferente que já não me diz muito. As recordações foram-se com as pedras. A fisga ainda existe, mas a funda, aquela bonita funda que era o meu orgulho e a inveja de muitos, já não. O entrançado veio a servir de trela dos cães e acabou como tudo, com o tempo. Os amigos do Cacém ainda estão no meu pensamento, mas afastados pelas circunstâncias da vida. Continuam meus amigos e se precisarem de mim estou cá. As pedras estarão hoje enterradas sob o asfalto. Talvez ainda tenham vestígios do meu ADN. Quem sabe…

    



                         

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O Langão (III)




O meu amigo Langão não vai mais conquistar as cadelitas aqui da aldeia. Um terrível vírus (seria?) paralisou-o quase totalmente. A médica veterinária, depois de vários exames, não lhe encontrou salvação. Durante dois dias, o vizinho que cuidava dele, a mulher e a filha, tudo tentaram. Foi impossível. Não havia salvação e foi abatido. Custou muito. Todos sofreram. Felizmente, quando morreu, já eu estava em Lisboa, mas o desgosto apanhou-me lá. Agora, já por aqui, olho para o recinto onde os seus companheiros por cá andam e parece-me que ainda o vejo sempre brincalhão e prazenteiro, desengonçado na sua magreza, mas alegre e satisfeito por ter encontrado tantos amigos que lhe proporcionaram estabilidade e modo de sobrevivência, sem ter que assaltar capoeiras para matar a fome. Mas o Langão já cá não está. Amanhã já não estará ao meu portão, como sempre fazia, latindo de satisfação quando saía de casa para o nosso passeio matinal. Vou sentir-lhe a falta. Irei com a Nina, a cadelinha sua companheira de “quarto” e, juntos, lembraremos o nosso Langão que tanta companhia nos fez. Era só um animal, mas deu-me a sua amizade sem nada pedir em troca, apenas querendo festas e passeatas. Durante uns tempos, os meus passeios vão ser mais tristes mas terei a Nina como companheira. Parece-me que também ela está triste. A saudade também será canina. É em alturas, como esta, que relembro o meu Setter Irlandês que me morreu nos braços, levado por uma terrível cirrose. Na época, não tive a coragem para o mandar abater, sempre convencido que seria capaz de o recuperar. Não fui e o meu amigo morreu com demasiado sofrimento. Tantos anos passados e ainda o recordo. Muitos anos passarão e o Langão continuará ser recordado. Adeus Langão, o teu céu será o meu pensamento.