Hoje a hora da piscina é
tardia e não dá nenhum jeito. Substituo as mais de 30 piscinas, que normalmente faço, por um passeio
a pé aproveitando um salto à “Evian” para tomar café. O rapaz atrás do balcão
não precisa que lhe diga nada e tira a “bica” escaldada como a aprecio. Os
rostos nas mesas são os mesmos do costume, penso para comigo como é que no meio
da crise as pessoas ainda tomam pequenos-almoços na pastelaria. Deixo
rapidamente o balcão e continuo o passeio. Passo pelo busto do fundador do
Uruguay, José Artigas, e pergunto-me o que tenho a ver com aquele “gajo”, penso
melhor e até tenho, foi um lutador determinado por uma causa e é um ser humano,
só por isso já o merecemos ali, na avenida com o nome do seu País, é também um homem que ficou na história e,
portanto, o conhecê-lo uma forma de cultura. Muito aprenderíamos se olhássemos
a estatuária da cidade com olhos de ver, só que passamos por elas e não ligamos
demasiado ocupados com a vida quando na nossa cidade e, só notamos os pontos de
interesse quando nos deslocamos a outras terras. Passo na banca do alfarrabista
e dou uma vista de olhos aos livros velhos vendidos a um euro não descobrindo
nada de interesse, também para que quero mais livros se ando a ler dois em
simultâneo e já não tenho móveis nem espaço para meter mais. Sigo até ao largo
da igreja de Benfica onde ao sábado, há bancas de artesanato e bijutarias.
Deixo para trás o velho chafariz, onde os pombos, cabisbaixos, permanecem esperando
a comida que dantes lhes caía do céu qual maná no deserto, bem podem aguardar,
a edilidade cortou-lhes a ração oferecida atirando cá para fora uma postura proibitiva.
Neste país tudo se proíbe, esquecendo que “o proibido é o mais apetecido”. Ali,
e neste caso, não, a polícia anda por perto e actua, os pobres bicharocos alados
é que não esquecem que ali é que era bom, ficando a aguardar que um transeunte
mais afoito lhes deite algo comestível como antigamente. Passo pelo quiosque e
paro atrás de uma fila que lê os jornais expostos em duas colunas presos com
molas de roupa, “alfinetes, como a minha avó lhes chamava, alfinetes porquê se
aquilo nada tem de semelhante coisa? talvez por serem para a roupa, pois nessa
é que se espetam alfinetes, coisa de costureira com certeza. À esquerda os
jornais com a crise, nas primeiras páginas mais cortes anunciados pelo governo,
à direita as “façanhas” do Nosso Benfica abençoado por “Jesus”. Deviam estar ao
contrário, o governo à direita e o futebol à esquerda, pois esse é que é do
povo, o outro é do capital. Não leio nada de novo que não tenha visto já na TV.
Vou um pouco mais longe até ao jardim junto do mercado onde a junta de
freguesia promove actividades desportivas e culturais, para lá chegar passei
junto ao mercado onde à volta enxames de ciganos e passantes se entrecruzam,
uns vendem outros compram ou discutem preços. Raparigas de cor com saias curtas
e “collants” justos, deslocam-se meneando as ancas. Mais à frente, debaixo de
toldos, montes de bancas dos ciganos vendedores de roupas numa algaraviada de
pregões e chamamentos. No jardim, matronas sessentonas com camisolas vermelhas
e iguais, distribuídas pela junta, correm atrás de bolas tentando metê-las em
exíguas balizas balanceando e sacudindo as carnes já volumosas. Mais à frente
ainda, alguns garotos, em cima de um xadrez gigante, movem e brincam com as
peças não sabendo o que fazem. Nas mesas de pedra, tabuleiros de xadrez, tristes
por abandonados, deviam ter sido substituídos por damas ou gamão, jogos mais ao
gosto dos reformados deste país, para jogar xadrez seria preciso outra cultura
ou outras gentes, isto aqui não é a Rússia. Deixo o jardim e entro no mercado
onde a azáfama é enorme, bancas cheias esperam os clientes que muito passam mas
pouco compram, provando que esta crise não é o caminho certo. Olho os carapaus
e penso que os estaria assar se estivesse na minha aldeia saloia, Assafora, onde
se “assa fora” de casa, será que vem daí o nome?
Já dentro do portão da mata de
Benfica sento-me num banco olhando os altos cedros e eucaliptos recordando a
infância quando no “Pilão” saltava o muro para ir ali aos ninhos que
referenciava memorizando árvores e locais. Num banco ao perto, um casal de
namorados, de pernas entrelaçadas, lambuza-se e apalpa-se num jogo desenfreado
de desejo incontido, alheios a tudo e a todos e estando-se nas tintas para quem
observa. Recordo os meus namoros de juventude quando procurávamos esconderijos
para trocar uns beijos e outras pequenas malandrices que agora nos parecem
demasiado ingénuas. Penso que os jovens de agora são mais sãos, mostram o que
fazem sem medo nem vergonha.
A manhã já vai adiantada e
resolvo voltar a casa. Na estrada de Benfica passo por um pedinte, de meia-idade,
sentado num pano junto à parede, mostrando um coto de perna que já foi. Uma
caixa de cartão contém alguns cêntimos e até uma moeda de euro. Conheço aquele homem há anos e penso que já deve estar rico. Alapardado junto à parede nem se
dá ao trabalho de pedir, quem se condoer que poise o óbolo, mais valia que lho
metessem sob a língua, para que Caronte lhe transportasse a alma até ao
descanso eterno. Entretanto vai-se dedicando a limpar o nariz atirando as excrescências
macacoides das fossas nazais, contra a parede com um “plic” de unha bem
aplicado. Aquela parede já deve estar bem revestida e muito trabalho dará aos
arqueólogos daqui a uns milhares de anos, quando desenterrarem ruínas de Lisboa
soterrada por sucessivos terramotos, senão destruída por qualquer conflito
atómico, para descobrirem porque numa parede se encontra ADN humano.
Volto para casa mais enriquecido.
Ligo a TV, os “passos” do Passos continuam a lixar-nos.
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