quinta-feira, 25 de abril de 2013

25 de Abril, que saudade…


Recordo Nampula quando nas nossas reuniões secretas, para nós, porque a PIDE sabia bem delas, o meu amigo Gabriel Teixeira, grande militar, corajoso, de bom-senso e probo, que presidia, dizia: “Será que temos de pintar estes gajos de preto para conseguirmos fazer-lhes frente”. Hoje a frase parece-me estúpida e certamente também acontecerá o mesmo aos outros que por lá militavam. A guerra tinha sido e era feita contra pretos. No início, os acontecimentos, marcaram as pessoas que foram para aquela guerra cheios de razão e dever pátrio. Coitados dos nossos irmãos angolanos de pele escura que tinham muito mais motivações para fazerem aquela guerra do que nós. Pena que tenham começado tão mal e tenham encontrado pela frente, um dirigente português, obtuso e casmurro Hoje, certamente, pensarão que terão de pintar os seus dirigentes de branco para acabarem com eles, pois governam enriquecendo e deixando o povo na miséria. Certamente hoje teríamos dito o mesmo de outra maneira. O 16 de Março deixara-nos tristes e estupefactos e havia em nós o sentimento que era preciso fazer algo. Felizmente não foi necessário porque o 25A chegou. Grande alegria e muita esperança. Esperança nos homens lusos que haveriam de transformar o nosso país em algo bem diferente do que fora até ali.
Infelizmente, a partidarite começou a tomar conta das coisas. Invadiram os centros de poder e dividiram os militares que se deixaram partidarizar. Mais uma vez, os militares de Abril, e desta nem todos, colocaram as coisas no são. Mas por pouco tempo. Os políticos, alguns do 26 de abril, começaram, tal qual saturno, a engolir os filhos fazedores da revolução. Enquanto não correram com os militares dos centros de poder não descansaram, e não só correram com eles, como surdamente começaram uma campanha contra a tropa, que ainda hoje perdura. Mordem a mão que lhes deu a liberdade.
Tenho saudades de homens como Gabriel Teixeira, de quem já falei, Ramalho Eanes, grande e valente militar com também grande senso político, Melo Antunes, infelizmente já desaparecido mas excelente pessoa, bem politizada e mentor do programa do MFA e documento dos 9, Vítor Alves, homem culto e com ideais de justiça e, muitos, muitos outros. Outros ainda andam por cá e com voz, que nunca lhes doa, Vasco Lourenço, Presidente da A25A e grande crítico da actual situação e, até Otelo Saraiva de Carvalho que, infelizmente andou por caminhos um pouco ínvios, mas é também uma voz crítica do sistema.
Poderia falar de muitos mais. Penso não ser necessário. Esta república está a ficar igual à 1ª. Tenho muito receio que seja preciso acabar com ela. Se for, que tenhamos o bom-senso de não descambarmos para a ditadura. Aliás, isso hoje já não é tão possível como naquela época, mas nunca se sabe.
Que apareçam novos políticos de mentes abertas, sem ânsia de poder e dinheiro, que consigam trabalhar em prol da nossa população e comunidades. Que privilegiem a educação e cultura para que as populações se consciencializem do que é melhor para elas, de forma a obterem o que lhes é de direito, sem recurso a estratagemas de obtenção de dinheiro fácil. Um povo culto e educado facilmente transforma uma sociedade. Como estamos não vamos lá. A qualidade do nosso povo é baixa. Basta andar de autocarro para o verificarmos. Mas já há uma boa camada de juventude bem preparada que poderá fazer algo por este país, se não se concentrar só na obtenção do seu próprio bem-estar. Devíamos aproveitar estes para começarmos. Não será no meu tempo, mas gostaria que o meu filho ainda pudesse vir a viver numa sociedade transformada. Para o bem, claro. Viva o 25 de Abril.


quarta-feira, 17 de abril de 2013

O MELRO

Aqui, nesta aldeia saloia às portas de Lisboa, durmo melhor. O sossego, a menos claridade no quarto, uma cama maior e colchão mais rijo, dão-me melhor descanso. Levanto-me cedo para quem nada tem a fazer. Menos das oito já estou na banheira e pelas nove, de pequeno-almoço tomado, saio para cumprimentar os cães amigos que ansiosamente já me esperam ao portão. Depois dos latidos de satisfação e de muitas festas, atravessamos a estrada, direitos aos campos. Contentes, correm à minha frente, farejando tudo quanto é sítio, como se cães de caça fossem. No campo, vários homens plantam cebolos em regos direitinhos. Uns vão colocando os cebolos, lado a lado e equidistantes, enquanto os outros os seguem cobrindo as raízes com terra. Observo-os durante uns instantes e olho o mar, um pouco longe. Uma mancha de nevoeiro, a algumas milhas da costa vai direita à Ericeira passando por Mafra e segue continuando pelas terras que ladeiam o IC19. O dia aqui está lindo e descansa-me. Como é bom poder usufruir desta paz. Um casal de perdizes corre à minha frente, certamente terão ninho que deve estar perto. Nesta época, normalmente, ainda chocam os ovos, mas têm de comer e abandonam o ninho durante alguns instantes. Raramente levantam voo e correm sempre numa direcção contrária à do ninho. Depois, quando o perigo passa, é que lá se dirigem. Deixo os campos e volto à estrada para ir tomar café. Os meus companheiros caninos esperam-me junto à porta abanando os rabos de contentamento quando volto para junto deles. Ao chegar a casa oiço um esvoaçar numa palmeira que tenho num mini-jardim em frente à casa. Deve haver ninho por aqui. Oiço de novo o esvoaçar e acho estranho. Então o pássaro não foge? Um pipilar não normal aguça-me a curiosidade. Lá está ele. Um melro ainda bebé, que deve ter ensaiado os primeiros voos há bem pouco tempo, está preso com uma asa espetada num espinho da palmeira. Vou buscar um banco e consigo soltar o pobre bicho, não sem me picar bastante. Enquanto isso, os pais esvoaçam e chilreiam por cima de mim. Pouco faltou para me agredirem. Uma das asas está muito maltratada. Fico sem saber o que fazer. Se o deixo no chão os cães apanham-no e era uma vez. Se o escondo demais os pais não o veem e acaba por morrer. A natureza é cruel. O pobre bicho não vai sobreviver. Ainda penso em tentar criá-lo mas é muito difícil. Se fosse um pintassilgo, mas o melro tem uma alimentação muito variada. Temos de apanhar minhocas, formigas, gafanhotos, etc.. Também comem fruta e algumas gramíneas, mas…
Deveria haver um deus dos pássaros que tomasse conta destes abandonados da sorte. Mas deus anda tão ocupado com os deserdados deste país, que infelizmente cada vez são mais, e esquece o resto. Pobre bichano, não se vai safar. Um dia tão bonito como este não deveria ser estragado com esta situação. Estou aqui sentado em casa a escrever isto e o pobre passaroco não me sai da cabeça. Terei de ir buscá-lo ao canteiro onde o deixei e, pelo menos, dar-lhe água. Será o mínimo que poderei fazer por ele. Dei-lhe água directamente da minha boca. De início tentou bicar-me os lábios, depois acabou por beber. Tentei fazer um ninho com um cesto e uns panos. Tratei-lhe a asa com Betadine e coloquei-o lá, mas foge sempre e tenho de apanhá-lo novamente. Entretanto, a cadela, já anda de olho nele e se não tenho cuidado lá se vai o pássaro. Os pais já não andam por aqui. Como não o encontram vão para outras bandas. Acabam por desistir. O que fazer? Parece-me que não tenho outro remédio senão abandoná-lo ao seu destino. Através da janela vejo um dos pais pousado num fio. Olha em volta mas não o vê. Se ao menos o pequenote piasse… mas não, está mudo e quedo. Vai ser mesmo necessário um milagre. Como milagres não existem, temos de deixar a natureza seguir o seu curso. É assim que fazem os naturalistas que estudam a vida animal. Nunca interferem, deixando sempre que tudo aconteça naturalmente limitando-se a criar ou melhorar os ambientes para a sobrevivência das espécies. Terei de fazer o mesmo e esquecer o bicharoco ou então vou ficar muito deprimido. Que diabo, um dia que começou tão bem…
Está a morrer. Dei-lhe mais água. Ainda bebeu mas já não tenta fugir quando o agarro. Coloquei-o no ninho improvisado. Não tenho coragem para lhe acabar com o sofrimento. Vou deixá-lo acabar calmamente.
Morreu. Porque me sinto tão mal? Sou caçador e caço perdizes, pombos, rolas, tordos, etc. Mas ver um melro morrer assim, depois de tanto trabalho que os progenitores tiveram. Fazer um ninho, pôr ovos, chocá-los, alimentar os recém-nascidos, fazê-los sair do ninho ensinando-os a voar, continuar a alimentá-los ensinando-os a procurarem a comida por si próprios. Tanta canseira para um deles acabar espetado numa árvore. Não devia acontecer, mas acontece com todos os animais e até connosco. São as circunstâncias da vida. Nascer e morrer. Uns com um período intermédio mais prolongado outros, mais curto. Este melrinho teve um período curto demais. Tive pena. Amanhã vou com os canitos, tentar encontrar de novo as perdizes…


O Langão II




O Langão regressou de mais uma das suas digressões nocturnas. Veio curvadito, cabeça baixa mas com ar satisfeito abanando o rabo. Uma das cadelas das redondezas deve ter tido uma noite basto erótica. O Langão não deixa os seus créditos por patas alheias. Tem um nariz maravilhoso. Cheira uma namorada disponível a quilómetros de distância. Nem come como deve. Volta à sua zona de vez em quando para meter algo no bucho e lá vai ele de novo. Antes de sair ainda tem tempo para “cumprimentar” os amigos humanos que aqui o receberam como hóspede permanente. Um dos habitantes dá-lhe de comer. Onde comem quatro também comem cinco. Dorme na garagem onde faz companhia a uma cadelita já residente antiga. Brinca com os canitos do seu anfitrião e sai comigo a dar umas passeatas juntamente com a sua companheira de hospedaria. Todas as manhãs vem bater-me ao portão para me chamar. Já há dois dias que não o fazia. Sabendo das suas digressões amorosas não me preocupei muito. O dono adoptivo avisou-me que já não dormia em “casa” há duas noites seguidas. Grande Langão, isso é que se chama um cão das arábias. Já andava mais gordito e direito e agora regressou bastante mais magro e curvilíneo. Grandes noitadas deve ter tido. Aqui pela terra começam a aparecer uns cachorros muito parecidos com ele. As pessoas, donas das bichitas, já dizem: “ Esse “seu” cão cobriu-me a cadela e tenho ali uns filhotes bem parecidos com ele”. Faço-lhes ver que o cão não é meu, que é só um amigo que gosta de mim e me segue para todo o lado, mas qual quê. Anda comigo, tem de ser meu. E lá me vejo qual “pai” acusado de ter um filho abusador das “donzelas” canídeas cá do burgo. Um tipo até queria que eu levasse o filhote comigo. O bicho era giríssimo e tal e qual a “cara” do pai. Tivesse eu local para o ter e até nem me importaria. Andar cá e lá de cachorro atrás e ter de viver com ele num andar em Lisboa, já não é para a minha idade. Assim quase que me vejo a desculpar-me das escapadelas amorosas do Langão, como se tivesse alguma coisa com isso. Passo a vida a “falar” com ele em conversas tipo: “ Grande malandro! Vê lá se começas a refrear esses teus instintos de conquistador, porque eu é que oiço os donos recalcitrantes. Tem mas é juízo pois já não és criança nenhuma e estava na altura de seres mais comedido. Olha que ainda não há viagra para cães e isso qualquer dia acaba-se”.
Pois sim! O amigo Langas, eufemismo que uso como forma carinhosa de o tratar, está-se nas tintas e continua com os seus amorosos devaneios. É um autêntico Casanova canino. Estou convencido que, se vivesse em Veneza, nem os canais seriam entraves às suas divagações. Acabo por ter muito orgulho neste meu amigo.