domingo, 17 de julho de 2022

ALCARRÀS

 

Ontem sábado fui ao cinema. Já um pouco farto de americanadas, procurei um filme diferente, Alcarràs filme catalão premiado com um urso de ouro do festival de Berlim dirigido pela catalã Carla Simón e passado numa herdade de vastos pomares produtora de pêssegos. Os actores não são profissionais e o elenco infantil é soberbo.

Um velho agricultor proprietário de terras desde o fim da guerra civil registou a casa da herdade, mas esqueceu-se de registar as terras. O verdadeiro proprietário dá-lhes o prazo até ao fim do Verão para abandonarem as mesmas pois pretende vender as terras e instalar painéis solares. O filme mostra a vida de toda a família com bastante incidência no filho, motor de toda a actividade na herdade, centrando-se na apanha da fruta, rega da mesma, transporte para a cooperativa e, em todas estas actividades a colaboração de todos os familiares. Mostra também as greves e protestos pelos preços pagos pelo quilo dos pêssegos, abaixo dos custos de produção. Mas, a cineasta, com toda a simplicidade, consegue revelar os sentimentos e as ânsias de todos os elementos adultos em contraste com a inocência das crianças, que alheias ao problema encontram brincadeiras com que se entretêm. É notório o semblante preocupado da filha adolescente que vê o pai, figura central do filme, mais entretido com a cunhada, mais nova e divertida que a mãe e esta de semblante triste. É, pois, uma película simples, corrente, sem grandes sobressaltos, mas que também mostra os problemas da juventude, como o filho mais velho do casal que no meio do milho alto cultiva uns pés de canábis e fuma uns charros. O pai vê-o de longe, nada diz, mas uma noite queima-lhe as plantas todas. Como vingança, o rapaz deixa as comportas da água abertas e no dia seguinte os pessegueiros estão metidos num lamaçal que torna difícil a colheita. O moço vai para a discoteca e apanha uma bebedeira chegando tarde para o trabalho, o pai acaba por nada lhe dizer mostrando apenas o seu desagrado. O fim mostra a família a ver uma máquina a arrasar as árvores para preparação do campo de painéis solares. Uma vida inteira destruída pelo inexorável desenvolvimento…

Uma película simples, mas linda. Mereceu o prémio.

domingo, 26 de junho de 2022

Operação Secreta

 

Ontem, sábado, fomos ao cinema. Como sempre procurei algo através da Net e não me entusiasmei por nenhum. Fomos relativamente cedo ao Corte Inglés e procurámos na bilheteira um filme com algum interesse do Público. O mais visto era o Elvis, claro que não me agradou. Havia um de polícias e ladrões com o Liam Neeson, também não me cheirou. Indicaram-me Operação Secreta, um filme com base numa história real da 2ª guerra mundial com o conhecido actor inglês Colin Firth. Optei por este. Era só às 22H10, um pouco tarde, mas acabava à meia noite e meia hora e ainda dava tempo para ir até ao Procópio beber uma bjeca e comer uma sandes de “foigras” com pikles. Andámos pelo supermercado e ainda comemos um rissol de camarão com uma mini.

O filme era interessante, um pouco lento na primeira parte, mas foi ganhando interesse ao longo da história. Em 1943 os alemães ocupavam quase toda a Europa, e estava previsto um ataque dos aliados através da Cecília. O problema é que a ilha estava guarnecida de muitas tropas alemães, precisamente por ser esperado um ataque aliado pela costa sul. O objectivo era tomar a ilha, daí passar à Itália e correr com os alemães tratando depois de retirar os italianos do Eixo. Foi pois encarregado o Serviço Secreto Britânico de criar uma falsa notícia de que os aliados iriam atacar pela Grécia. Foram encarregados dois oficiais, um da marinha outro da Força Aérea de engendrar o plano. Estes foram coadjuvados pelo jovem oficial Ian Fleming, escritor de romances de espionagem (007). O plano aprovado foi de lançarem um cadáver de um aviador abatido no Atlântico junto à costa Espanhola de Huelva, não só por ser um país neutral, como também, por ser um local de grande concentração de espiões de vários países. Tratou-se, pois, de encontrar um corpo, criar um oficial piloto fictício, forjar documentos falsos, mas principalmente dar vida a tal personagem. As formas encontradas foram cheias de peripécias e aí foram ajudados por uma jovem trabalhadora do almirantado e criar-lhe, através de uma fotografia, vida como noiva do tal major. O chefe de equipa, Colin Firth, tinha enviado a sua mulher e filhos para os USA com receio de, no caso de uma invasão por Hitler do Reino Unido, uma família com ascendentes judaicos, seria de certeza aniquilada. Durante a criação da operação nasceu entre ele e a tal moça um encantamento que, felizmente conseguiram controlar. Entretanto o irmão do oficial britânico era comunista, o que fez com que o companheiro e amigo fosse aliciado, pelo alto comando, a espiá-lo, o que fez com relutância.

Arranjado o cadáver, encontrado um sósia a que tiraram fotos para os documentos. Escritas cartas pessoais da família e da noiva, criados os documentos metidos numa pasta confidencial, lá largaram o cadáver de um submarino, pois larga-lo de avião certamente danificaria o corpo. Um espião duplo inglês, que os alemães julgavam espiar para eles em Espanha, encarregou-se de evitar a autópsia e de fazer com que os documentos chegassem aos alemães e a Hitler. A espera dos resultados foi angustiante, até que tiveram a notícia de que a história tinha sido “engolida”.

As tropas alemãs retiraram quase todas para a Grécia e o ataque fez-se com êxito e com um mínimo de baixas. Aldrabões até dizer chega, mas com êxito. A rapariga retira-se para outro serviço em Londres e os dois amigos vão beber um copo juntos para comemorar.

No Procópio conhecemos um casal interessante com quem conversámos muito. Trocámos números de telefone e emails. Ficámos de nos encontrar mais vezes.

 

Título Original do filme: Operation Mincemeat

Realizador: John Madden

Actores: Colin Firth, Matthew Macfadyen, Kelly Macdonald

País: EUA, Reino Unido

Ano: 2021

Duração (minutos): 128

 

 

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Os Filhos

 

 

Ontem fui ao teatro. Tenho andado um pouco afastado da arte de Molière e Gil Vicente. Presentemente dá-me mais jeito ir ao cinema. Deve ser uma incongruência, mas parece-me mais simples. Além do mais o cinema enquadra-nos mais rapidamente na história. No teatro leva mais tempo a metermo-nos no problema e isso depende muito dos actores. No caso presente foi difícil. Mas vamos à peça em si.

Hazel e Robin (Maria José Pascoal e João Lagarto) são engenheiros reformados de uma central nuclear cujo reactor rebentou devido a uma onda (alusão talvez ao Japão, mas no texto nada o refere) que recebem a visita de uma colega que não viam há 38 anos. Hazel apresenta uma histeria completa e fala pelos cotovelos com uma rápida dicção, muitas vezes quase incompreensível. Com o decorrer ficamos a saber que a visita, Rose (Custódia Galego), foi amante de Robin antes e mesmo depois do casamento com Hazel. O Casal tem 4 filhos com quem falam telefonicamente durante a peça, mas não pesam muito na história. Rose apresenta-se como tendo sido chamada para voltar ao serviço à central nuclear com o motivo de libertarem os novos trabalhadores, uma vez que eles ainda terão muitos anos a viver e os “velhos”, mesmo que sejam contaminados, já terão vivido a sua vida e tenta aliciar o casal para fazerem o mesmo. Rose mostra que a contaminação sofrida lhe fez perder os dois peitos e Robin tem acessos de tosse ensanguentados. O conflito surge dado que o casal tem filhos e Rose não. Por sua vez Hazel “sente” que Rose volta para lhe roubar o marido. A histeria que apresenta é enorme e nota-se que a separação entre o casal também é grande.

É, portanto, uma peça que nos faz pensar que os novos têm melhores razões para viver e os “velhos” Já pouco têm a esperar da vida e devem, portanto, tentar salvar a descendência.

Não fora o papel demasiado histriónico de Maria José Pascoal, com uma verbalidade exageradamente rápida, que a torna quase incompreensível, estaríamos perante uma boa peça. Não gostei totalmente. Realço um bom papel de Custódia Galego, com uma verbalidade aceitável assim como a de João Lagarto. Acaba por ser um texto sobre a degradação e ao mesmo tempo sobre os amores passados. Os filhos não são propriamente os deles, mas sim as novas gerações.

O Teatro Aberto tem um restaurante chamado “Pano de Boca” onde jantámos a seguir. Bom ambiente e uns pratos razoáveis. Foi uma noite bem passada. Chegámos a casa antes da meia noite.

domingo, 19 de junho de 2022

As minhas namoradas.

 

A minha primeira namorada chuchava no dedo. Ela morava do outro lado e da parte mais alta da rua. Eu cá em baixo numa casa de rés-do-chão. Lá de cima olhava-me com olhares lânguidos chuchando por de trás das vidraças da janela da cozinha. Teria os seus 8 anos e eu uns 9 quase dez. Não era grande o meu amor por ela, mas havia da minha parte uma certa ternura. Um dia, a brincarmos ás escondidas, metemo-nos numa casa ainda em obras iniciais. Escodemo-nos na divisão mais pequena, penso que seria uma casa de banho ainda só em tijolo e com alguma, pouca, massa de reboco. Como estávamos muito juntinhos dei-lhe um beijo na boca. A partir daí, a moça que já gostava de mim, ficou completamente apaixonada. O meu beijo fê-la deixar de chuchar no dedo. Por trás da casa dela havia um quintal onde se se semeavam favas. Quando o faval já nos cobria enrolámo-nos por lá e demos umas grandes beijocas e as nossas mãos fizeram algumas explorações. Fugíamos aos irmãos dela que eram meus amigos e de nada suspeitavam. Aos 10 anos, após ter feito a terceira, quarta e admissão aos liceus, fui para o Passos Manuel em Lisboa e lá andei um ano perdido por comboios e na grande cidade, mais na brincadeira do que no estudo. Chumbei bem chumbadinho.

À noite em casa, lá via a cachopa atrás das vidraças. Voltara a chuchar no dedo. O meu Pai meteu-me no Pilão. Só me disse que era para compensar o ano perdido. Aí já com 11 anos, só ia a casa ao fim de semana e era quando não estava detido por castigo. Aos 13 comecei a namorar uma de duas irmãs que passavam férias no Cacém. Já me sentia um homem e pensava que casaria com aquela. Passávamos muito tempo no terraço da casa dos meus amigos. A irmã já não chuchava no dedo, mas morria de ciúmes. Olhava os meus avanços sobre a outra com olhos fulminantes. Esse namoro durou 3 anos e, praticamente, só no tempo de férias. Depois acordámos em parar para pudermos estudar, com a promessa de mais tarde, se ainda gostássemos um do outro, reatarmos o namoro. Só que outra se meteu pelo meio e foi o fim. Choro e lágrimas. Com essa ia casando, mas assim não aconteceu pois passados 4 anos, já Alferes, fui para as Caldas da Rainha e outra também apareceu na minha vida. A separação da anterior foi dolorosa para ela pois já nos adiantáramos na relação. Foi chato. Mas a que chuchava no dedo não me esqueceu. Sem sucesso, coitada. Entretanto fui para Timor e moça das Caldas também passou à história. Em Timor vivi outra paixão, essa proibida. No regresso a Portugal, com uma perna partida, fui operado no Hospital Militar. Ao acordar da operação vi uns olhos bonitos, uma saia azul e umas lindas pernas com sapatos de saltos altos. Foi a última e definitiva. Casei. Até hoje. Soube pela minha Mãe que a da chucha casara. Nunca mais a vi.

 

terça-feira, 14 de junho de 2022

A casa do Acúleo Costa

 

O meu Pai era muito amigo do Acúleo Costa. Este era um tipo, vendedor de uma firma de Lisboa especializada em artigos de borracha para máquinas em geral. Vendia bem, tinha comissões e ganhava umas massas. O filho dele, o Armando, era mais velho do que eu dois anos e picos, mas andámos juntos na escola. O Costa tinha uma casa no Cacém com adega, onde se faziam grandes patuscadas e também resolveram comprar uva a meias e fazer água-pé. Na estreia da água-pé houve grande festaria. Depois conto.

Entretanto, o Costa, resolveu fazer um favor a um amigo e tomar-lhe conta do filho por uns tempos enquanto este tratava do seu divórcio e resolvia os seus problemas de negócios. Foi aí que conheci o Carlos Manuel, um puto de 10 anos, um pouco sisudo e meio desconfiado. Andávamos com ele para todo o lado e até quando os dois amigos, meu Pai e Costa, alugaram uma casa de Verão na Ericeira, dois apartamentos num primeiro andar de uma casa no Largo de São Sebastião, o puto ia para lá passar férias e fins de semana connosco. O Costa e a mulher tratavam o miúdo com todo o carinho e proporcionaram-lhe a melhor estadia possível. Estas coisas geram ciúmes e o meu amigo Armando começou a embirrar com o puto e, de quando em vez chegava-lhe a roupa ao pelo, mas o miúdo era reguila e não se ficava gerando-se muitas vezes grandes altercações com troca de “mimos”. Eu, tinha pena do rapaz e quase sempre era o apaziguador conseguindo controlar o Armando. Ainda por cima o rapazito cantava muito bem e, nos serões, encantava toda a gente principalmente raparigas e senhoras, o que mais acicatava os ciúmes do Armando.

Voltemos á noite da estreia da água-pé. O Costa tinha muitos amigos no meio fadista e conseguiu levar à sua festa alguns, entre eles o célebre Carlos Ramos e muitos outros bem conhecidos de cujos nomes já não recordo. Mas a estrela da festa foi o puto que cantou imensas canções brasileiras do velho Luís Gonzaga, o cantor do acordeão e chapéu à cangaceiro. Nessa noite, os meus pais deixaram-me um pouco à vontade e os meus 13 anos não mediram bem as quantidades de bebida. A água pé saiu com 11º e fui para a cama com uma bebedeira dos diabos, mas antes disso falei durante um fado do Carlos Ramos e o raio do homem quase me comeu vivo. Fiquei-lhe com algum pó. No dia seguinte rumámos todos à Ericeira e eu viajei com uma ressaca daquelas. O Armando levou todas as férias a embirrar com o rapaz e eu a fazer de salvador do miúdo livrando-o de algumas tapas.

O puto chamava-se Carlos Manuel de Ascensão do Carmo de Almeida, filho do empresário Alfredo de Almeida e de Lucília do Carmo e passou quase 6 meses na casa do Costa enquanto correu o divórcio dos pais e a Adega da Lucília, na R. da Barroca no Bairro Alto, se transformava na Adega do Faia. Após essas férias perdi-lhe o rasto. Eu andava nos Pupilos do Exército e ele foi para a Suíça estudar hotelaria. Só o reencontrei no pós 25 de Abril quando fui ao Faia ouvir uns fados. O velho Almeida já tinha falecido e o Carlos, nessa altura já Carlos do Carmo, tomou conta da gerência. Reconheceu-me de imediato e veio para a minha mesa recordar as velhas peripécias vividas na Ericeira. Encontrámo-nos várias vezes depois e só agora escrevo isto após a sua morte. Lembro-me, de ele em miúdo, dizer-me que nunca seria fadista, mas o bichinho estava lá e os genes da mãe também. Infelizmente faleceu cedo. Muita saudade.

domingo, 12 de junho de 2022

A Tia

 

A tia Lucília era gorda, feia e chata. Morava no Cacém e visitei-a várias vezes sem saber bem quem ela era. Só mais tarde a relacionei como irmã da minha Avó. Não tinham nada a ver uma com a outra. A minha Avó era transmontana, forte, directa e de voz um pouco esganiçada, dizendo aquilo que sentia e achava por bem. A Tia Lucília era mais citadina de voz forte, arrogante e um pouco roufenha. Só me aborrecia por ter o nome da minha Mãe. Como podia? Para mim as Lucílias eram lindas, boas e carinhosas. Aquilo não podia ser uma Lucília. Mas a minha Mãe, de tempos a tempos lá me dizia: “Temos de ir visitar a Tia Lucília.” Era como quem me arrancava dentes. Lá era obrigado a limpar os pés à entrada e a ter de biqueirar aqueles horrorosos canídeos. Realmente aqueles cães eram horrorosos, daqueles minorcas de raça incerta, mas de focinho amachucado com olhos esbugalhados. Eram desconfiados, matreiros e rosnavam a qualquer pessoa. Eu odiava-os e sempre que podia dava-lhes biqueirada da grossa que os punha a ganir. A Tia perguntava: “Que fizeste aos cães?” e eu disfarçando dizia sempre que nada, eles é que não gostavam de mim. Assim que a Tia desviava o olhar, toma! Lá saía outra biqueirada que, apanhando-os desprevenidos, os fazia ganir de novo. Raio de canídeos, eu que gostava tanto de cães era capaz de esganar aquelas abencerragens de animais. A Tia era casada com um velhote, um capitão do serviço geral, Carvalho de seu nome, lateiro, como chamávamos aos que vinham de sargentos. Mas ao contrário do raio da velha, o velhote até era simpático. Demasiado gordo, estava sempre sentado num velho maple. Julgo que nunca o vi em pé. Falava muito comigo e eu gostava de o ouvir. Como andava nos Pupilos do Exército, estava sempre a perguntar-me se eu queria seguir a tropa. Naquela altura ainda não sabia, mas a vida militar interessava-me. Era o seu segundo casamento. Enviuvara e acabara por casar com aquela megera. Tinha um neto célebre. Era o famoso Rogério de Carvalho jogador do Benfica. Acabou por morrer deixando a velha tia viúva. Não lhe vi grande desgosto. Mulheres daquelas não se desgostam por tão pouco. Mas nem todo o mal sempre dura e a velha acabou por receber em casa uma neta do defunto bastante novita. Uma miúda simpática e gira. Nessa altura eu já perguntava à minha Mãe: “Quando vamos voltar a ver a tia Lucília?” Claro que a Mãe nada tinha de estúpida e viu logo que eu queria era estar com a miúda. Servia-me da minha irmã como instrumento de aproximação e lá passava eu uns tempos a “namorar” a gaiata. A Tia, um dia morreu. Que a terra lhe seja leve com a Serra de Monsanto às costas e a Torre de Belém de contrapeso. Os cães já não existiam e a miúda teve um desgosto enorme. Como se pode gostar tanto de uma velha daquelas? Fomos ao velório, a filha, dela e do capitão, raramente por lá aparecia, mas na morte lá estava com o marido pompa e circunstância. O velório foi chique, com muita gente bem vestida, bolos, chá e umas tapas. A miúda chorosa nem comia. Lá consegui que a minha irmã a levasse para uma sala sem ninguém e fui com elas. Tanta anedota contei e tanta macacada fiz que a garota já ria a bandeiras despregadas esquecendo-se da morta. Depois foi-se embora. Nunca mais a vi e nem me lembro do nome dela. Ficou o sorriso.

terça-feira, 10 de maio de 2022

Fátima


Aproxima-se o 13 de Maio. Ainda não há tordos, mas em 1917, por cima das azinheiras, já saltitava a mãe de Jesus. Ali, na Cova de Iria, a progenitora do filho de deus, resolveu aparecer para falar aos portugueses. E quem escolheu ela? Três criancinhas, pastoras de cabras e ovelhas que por ali circulavam. Podia ter escolhido a faculdade de Coimbra, aí era muito mais compreendida, mas não, escolheu apenas três criancinhas, praticamente analfabetas cujos horizontes não eram maiores do que dois ou três quilómetros à volta da aldeia. Como interlocutora escolheu a Lúcia, talvez por ser a mais velha, tinha 13 anos e ainda andava na primeira classe por ser totalmente dislexia e ainda não saber ler nem escrever. Os pais lutavam contra a mitonímia da criança, as histórias que inventava e dizia serem verdadeiras deixavam todos com os cabelos em pé. Mas a santa mãe encheu-a de graça e contou-lhe coisas mirabolantes que ela mais tarde recordou “ipsis verbis”. A conversão da Rússia, o regresso dos soldados portugueses da guerra, o atentado a João Paulo II, etc…etc.. Os outros, Jacinta e Francisco, quietos e espantados devem ter ficado ao ver a amiga a falar sozinha para as árvores, mas como a dita tinha a mão leve e mandava, nem se atreveram a interferir. Coitados, morreram no convento apanhados pela pneumónica. Hoje são santinhos.

Não sei quem contou a história, mas o Bispo de Leiria e o Padre da Cova de Iria, aproveitaram a cena. Porque não? França já tinha a sua Lourdes, a República sonegava bens à igreja, os crentes andavam afastados, os sovietes mandavam na Rússia e atacavam a igreja, o comunismo expandia-se. Era só dourarem um bocado a pílula e o resto seria convencerem os crentes. Se melhor pensaram melhor fizeram, meteram os putos em clausura, separaram a mentirosa da Lúcia e catequizaram-na para continuar com as mentiras E até meteram uma cunha ao sol para dar umas cambalhotas. O povo, miserável, esfomeado, rezava para que os seus filhos voltassem da guerra, caíram que nem moscas naquele prato de mel. Correram em massa para o azinhal, olharam para o céu e os seus olhos, rasos de lágrimas, viram o sol às voltas. Os padres, que nunca mais deixaram a Lúcia à solta, disseram que a menina sabia que a santa mãe voltaria mais 3 vezes. Acho que voltou, mas ninguém a viu. Mas o negócio estava montado e florescente.

Os jornais pediram uma entrevista à mentirosa e perguntaram-lhe: “Quem viste tu?” Reposta. “Eu vi uma senhora, toda de branco, com um manto bordado e um rosário nas mãos postas (tal e qual a figura da santa da igreja local)”. Fizeram-lhe outra pergunta: “Perguntaste quem era?” Lúcia afirmou: “Sim, ela disse-me que era a Senhora do Rosário”

Ora, segundo as escrituras, a mãe de Jesus seria uma judia pobre vestida de tecidos velhos e grossos, esfiapados e o rosário ainda não teria sido inventado.

Mais tarde, a analfabeta da época, escreveu numa caligrafia excelente e num português impecável, todos os segredos que a senhora lhe revelou, mas nessa altura já ela escrevia que Salazar tinha sido enviado por deus para governar Portugal. Se compararem a cara da freira antiga e da mais moderna, verificarão que não é a mesma. Lúcia morreu no convento e foi substituída por uma muito mais evoluída e instruída para conversar com JP II. E nós? Seremos bobos?


sexta-feira, 1 de abril de 2022

A Menina de S. Juan

 

Acabei de ler este livro. Um romance interessantíssimo de João Menino Vargas, meu camarada, coronel de artilharia, reformado como eu, que tive o grato prazer de ter conhecido em Timor em 1959. Militar de Abril com ideais idênticos aos meus. O camarada Vargas não é “maçarico” nestas andanças das escritas, já com muita coisa publicada incluindo uma peça de teatro. Nunca tinha lido nada dele e este romance encantou-me. A menina de S. Juan é uma saga familiar passada na Espanha monárquica e a seguir republicana, até à guerra civil, terminando em Portugal ditatorial e fascista, mas sem guerra.

O Camarada Vargas foi buscar muita realidade através de um velho coronel amigo de família que muita coisa lhe contou sobre aqueles conturbados tempos em Espanha e, servindo-se dessa realidade, construiu uma história de difíceis vivências naqueles tempos.

História da luta dos que pouco tinham e viviam do seu trabalho contra os poderosos que tudo tinham e, de conluio com o poder, exploravam os que, necessitando de trabalho para viverem, não tinham outro remédio senão aceitarem todas as provações a que eram obrigados. Mas muitos lutaram pelos seus direitos, acabando por sofrerem a repressão e serem mortos na sua luta. A Menina de S. Juan foi uma dessas lutadoras. Muito sofreu e muitos entes queridos perdeu, mas sobreviveu de espinha direita e cabeça levantada. Romance que li com entusiasmo e num repente. Obrigado Menino Vargas. Há muito que não te vejo, mas continuas um homem recto.

domingo, 20 de março de 2022

Luísa Miller

 

No Metropolitan Opera de New York com Orchestra & Chorus

 

Orquestra conduzida por: Bertrand de Billy 

Sonya Yoncheva (Soprano) : Luisa Miller

Piotr Beczala (Tenor) : Rodolfo

Plácido Domingo (Baritone) : Miller

Alexander Vinogradov (Bass) : Conde de Walter

Dmitry Belosselskiy (Baixo) : Wurm

Olesya Petrova (Meio-soprano) : Federica

Rihab Chaieb (Meio-soprano) : Laura

Patrick Miller (Tenor) : Contadino

Conhecia a ópera Luísa Miller, de Verdi, apenas através de algumas árias, mas nunca a tinha visto inteira. Tive hoje, domingo de manhã, o grato prazer de a ver e ouvir inteirinha no canal Mezzo do MEO. Quase todas as óperas de Verdi são baseadas em tragédias e esta não foge à regra. Uma história de amor impossível, reprimido pela família do pobre Rodolfo, cujo pai, enamorado da namorada do filho, tudo faz para o casar com uma condessa de quem ele não gosta, chegando a prender o pai da rapariga usando a sua provável morte como chantagem conseguir os seus intentos.

Não tendo as brilhantes melodias de uma Traviata, Rigoleto ou O Trovador, possui belas passagens e principalmente alguns excelentes quartetos em que sobressai a voz do nosso conhecido Plácido Domingo, actuando como Barítono que, como se sabe, alguns tenores têm essa capacidade. Os restantes artistas são de alta craveira sobressaindo Alexander Vinogradov um excelente Baixo com difíceis notas de alta craveira. A personagem feminina principal é muito bem interpretada pela bela soprano Sonya Yoncheva, mas saliento a bela voz da Meio-soprano Olesya Petrova no papel da condessa Frederica.

Uma excelente encenação com cenários e trajes à época.

Luísa Miller tem libreto italiano de Salvatore Cammarano, baseado na peça de teatro Kabale und Liebe de Friedrich von Schiller, um poeta, filósofo, médico e escritor alemão do século XVIII.

Foi, portanto, uma boa manhã de um domingo molhado e cinzento que não convidava ao passeio. Gostei.

domingo, 13 de março de 2022

O Sem-Abrigo

 

Personagens (Por ordem de aparecimento):

 

Alberto Moura -         Eng.º Informático (O sem abrigo)

Maria Clara -               Mulher de Alberto

Manuela -                    Amiga de Maria Clara

Sara -                            Companheira de rua de Alberto

Anselmo Fernandes - Inspector da PJ.

Isabel -                         Telefonista da Theodorus, SA

Ana -                             Mulher de Anselmo

Tobias -                        Agente ajudante de Anselmo

Victor Antunes -         Inspector da Judiciária amigo de Anselmo.

Fernando Fonseca -   Amigo de Anselmo, Engº e professor. Escritor nas horas vagas.

Mariana -                    Mulher de Fernando

Carlos Vidal -               Director Bancário

Monteiro Castro -      Banqueiro

Abelardo -          Amigo e braço direito de Carlos Vidal.

Razvan -              Romeno (Fora da lei)

Hércules -           Cúmplice de Razvan

Toino, e Franzino - Companheiros de Razvan e Hércules, cúmplices, operacionais nos roubos e assaltos.

Laura -                Mulher de Carlos Vidal


 

I

Resolveu mudar de local onde dormia. Tentaria encontrar um sítio abrigado onde estivesse só. Tinha permanecido três semanas no mesmo lugar, mas as companhias não lhe agradaram. Na rua encontra-se de tudo, desde tipos com problemas psíquicos a calaceiros e bandidos de toda a espécie. Ele só queria estar sossegado consigo próprio. Encontrou um viaduto com uns pilares em ângulo que permitiam um bom abrigo. Junto a uns caixotes do lixo escolheu alguns cartões limpos e secos e colocou-os no chão pondo-lhes por cima uma manta que tirou do saco de lona. Ainda bem que, em tempos, comprara aquele saco na feira da ladra. Era um saco militar que levava montes de coisas. Trouxera de casa o essencial para poder viver na rua. Duas mudas de roupa davam-lhe para usar e lavar. Tomava banho nos balneários públicos o que permitia não ter muito mau aspecto. O pior era a barba e o cabelo, estavam a crescer e, os aparanços que fazia apenas com uma tesoura, não lhe davam lá grande aparência. Mas também que lhe importava isso, tinha decidido sair de casa e viver na rua era a solução. Trouxera alguns livros que ia lendo enquanto tinha luz. Ler é uma forma de nos abstrairmos da nossa vida e vivermos a das personagens e autores. Nos intervalos cogitava no que tinha sido a sua existência. A vontade de ganhar dinheiro sem ter que aturar patrões ou chefes levara-o a deixar a função pública e tentar a sorte estabelecendo uma firma de informática. As coisas começaram a correr bem e rapidamente teve de contratar pessoal e aumentar o espaço. Alugou um escritório numa garagem adaptada para o efeito e, felizmente, bem perto de casa. Os clientes foram aparecendo e os proveitos aumentando. A melhoria de vida foi notória. A mulher e os filhos exultaram por poderem ter o que até ali lhes tinha sido proibido. Foram anos felizes aqueles, só que não conseguira amealhar o suficiente e a crise apareceu. A concorrência das grandes firmas obrigara-o a baixar preços e a ter que dispensar pessoal. Trabalhou que nem um cão elaborando sozinho programação e “sites”. O material estava a degradar-se e desactualizar-se. Foi preciso utilizar as reservas e constituir dívidas para a renovação. Os clientes começaram a diminuir, uns por falência, outros por não poderem pagar e outros ainda por terem encontrado mais barato. Daí à falência foi um passo. A vida em casa degradou-se. A mulher, que ele adorava, acusou-o de mau gestor e de demasiada ousadia em ter deixado um emprego de estado para se aventurar na constituição da firma. Os filhos nada diziam e sofriam com as constantes discussões entre os pais. Começaram os constrangimentos devido às zangas constantes. Esqueceram-se todos da felicidade conseguida quando a firma lhes dava o que nunca tinham tido. Agora a culpa era dele. A sua mulher conseguiu um emprego numa loja de um centro comercial que pertencia a uma amiga. A reforma que tinha do estado, muito prejudicada pela antecipação, não chegava para as despesas da casa. Não aguentou a pressão nem a falta de compreensão da sua companheira. Resolveu deixar a casa. Sem ele talvez o dinheiro chegasse. A sua pensão cairia todos os meses na conta comum e podia ser utilizada. Se as coisas não mudassem, viveria só, até encontrar coragem para se passar. Só que, se morresse, os seus ainda ficariam com menos. Com o cabelo comprido e de barba grande, ninguém o reconheceria e também não o dariam como morto, pois tinha tido o cuidado de deixar escrito em casa que não o procurassem, iria deixar o país em busca de melhor solução. Assim evitaria idas à polícia para participarem o desaparecimento.

Começava a habituar-se ao frio. As camisolas de lã que trouxera, as luvas e as mantas eram suficientes. A luz do candeeiro da frente dava-lhe para poder ler até tarde e, para dormir tapava a cabeça com a manta. Uma refeição por dia, nos refeitórios públicos e uma bucha à noite, supria as suas necessidades básicas e, não fora a saudade da mulher e filhos, começava a pensar que afinal a vida de vagabundo não era assim tão má.

A noite lisboeta estava calma. Ouvia-se um leve restolhar das folhas das árvores que uma airosa brisa nocturna movia num vai e vem cadenciado. O barulho dos carros não era suficiente para o desinteressar da leitura que o absorvia totalmente.

Durante o dia, os passantes olhavam curiosos aquele sem abrigo que passava a vida a ler. Alguns até se aproximavam para lerem os títulos. Um ou outro chegava mesmo à fala com ele tentando saber quem era e porque optara por aquela vida. A todos respondia educadamente dizendo que fora uma opção por motivos demasiado profundos para serem discutidos com estranhos. Mas se alguns eram movidos apenas pela curiosidade, outros entravam em discussão dos temas literários. Aí ele pegava na conversa e prolongava as discussões. Assim o tempo passava sem que entrasse em depressão nem em conjecturas negativas. Começou a ser conhecido pelo sem-abrigo intelectual e alguns dos passantes começaram a trazer-lhe livros. Qualquer dia tinha de distribuí-los, já não tinha espaço para mais. Quando o tempo estava bom, deixava o seu canto e dava alguns passeios principalmente pelos jardins da cidade. Muitas vezes deu com ele a caminhar até à escola dos filhos e a deixar-se estar, meio escondido, até os ver chegar. Já tinham idade suficiente para se deslocarem nos transportes públicos e viajavam sempre os dois. O rapaz, como mais velho, acompanhava a irmã preservando-a de todos os problemas que hoje se apresentam a uma rapariga só. Depois de entrarem para as aulas, pedia ao segurança para dar uma vista de olhos às pautas. Felizmente os seus rebentos iam bem e tinham notas muito razoáveis. Um dia à tarde, viu a sua mulher que fora buscar os filhos. Continuava linda e elegante. Não conseguiu prender uma lágrima teimosa e afastou-se rapidamente.


II

 

Maria Clara deixou o autocarro e dirigiu-se ao Centro Comercial. Ainda bem que a sua amiga Manuela lhe arranjara aquele emprego. Não ganhava muito, mas sempre era alguma coisa que, em conjunto com a pensão do marido, dava para viverem os três com os mínimos aceitáveis. Onde estaria o Alberto? Desde que encontrara o bilhete na mesa-de-cabeceira, nada mais soube dele. Sentia-se mal por ter contribuído para a sua fuga. De que viveria? Teria arranjado alguém? Os filhos sentiam saudades e ela dava-lhes esperanças de que o pai voltaria.

 – Vão ver que qualquer dia aparece por aí. O vosso pai é empreendedor e de certeza vai conseguir obter aquilo que pretende para poder voltar.

O que dizia saía da boca para fora, mas sem grande convicção. Sabia que a vergonha de não ser capaz de prover às necessidades da família tinha sido a causa do seu afastamento. Sentia saudades do seu homem, mas os tempos estavam maus e não iria ser fácil para ele encontrar soluções. Se não conseguisse nunca mais voltaria. Sabia como ele era capaz dos maiores sacrifícios para manter as suas decisões. De qualquer modo esperaria. Era o seu homem. O facto de se ter ausentado sem carteira nem documentos preocupava-a. De certeza tinha mudado de identidade para não ser encontrado. Sobre as suas dúvidas não falou com os filhos.

Chegou à loja antes da hora. Desligou o alarme e abriu a porta. Começou a preparar tudo para a abertura. No meio da manhã a sua amiga apareceu;

 – Então Maria Clara, como vai o negócio?

– Olha, amiga, para os tempos que correm isto até não está mal. Vendi dois conjuntos de saia e blusa, duas malas e um lenço de pescoço. Se continuar assim enriqueces num instante e vais passar férias para as Caraíbas.

– Pois. Faço isso quando arranjar um homem que mereça a minha companhia. Pelo que sei deles, amanhã não será a véspera desse dia.

Maria Clara tinha pela amiga grande consideração. Divorciada, conseguira com os parcos recursos que amealhara e alguma ajuda da mãe, arrendar aquela loja. Assim que se livrou do marido, que era um grande calão e pensara viver à custa dela, deu a volta por cima e emancipou-se totalmente. Desinibida, bonita, elegante e culta, era requestada por imensos homens, mas Manuela não se deslumbrava. Saía de vez em quando com algum que lhe agradava, mantinha um romance durante uns tempos e largava-os quando as coisas começavam a entrar na rotina. Era a forma, dizia ela, de ter homem sem compromissos. Maria Clara gostaria de ter feitio para isso, mas os filhos e a esperança de que o seu marido voltasse inibiam-na. Mais de uma vez esteve para aceitar o convite da amiga para saírem juntas e irem beber um copo a um bar, mas não era capaz. Limitava-se a ir com ela até um cinema e sempre às matinés. Depois a amiga levava-a a casa no carro para junto dos filhos.

– Assim – dizia-lhe Manuela, – ainda vais para freira ou envelheces em menos de um fósforo e, quando deres por ti, estás velha e perdeste a tua vida à espera de um homem que fugiu das suas obrigações.

– Não digas isso, a grande culpa foi minha pois não o apoiei o suficiente e ainda por cima só lhe dei cabo da cabeça acusando-o de não ter sabido cuidar dos negócios. Ele não teve qualquer culpa. O mercado absorveu-o e liquidou-o. Sinto-me imensamente mal por não o ter apoiado mais e não lhe ter dado incentivos para aguentar. Agora não sei nada dele, se é vivo ou morto, onde está ou, estando vivo, se está bem ou mal.

− O Alberto, pelo que sei dele, é um tipo esperto, honesto e cumpridor. Foi-se embora para não vos sujeitar ao seu fracasso, mas tudo muda e nesta vida nada é definitivo, se surgir uma oportunidade ele agarrá-la-á e volta para vocês. Tem paciência. E, como parece que gostas muito dele, uma vez que lhe continuas fiel, espera e serás recompensada.

Manuela foi-se embora quase ao fechar da loja. Maria Clara preparou tudo para o dia seguinte. Fez as contas, meteu o dinheiro num envelope dentro da mala e saiu. Ainda no Centro depositou o dinheiro no cofre nocturno de uma das dependências bancárias. Em casa, os filhos já tinham preparado parte do jantar e estudavam nos seus quartos. Preparou o resto da refeição e chamou os filhos para a mesa. Viram televisão até às dez e mandou os pequenos para a cama. Maria Clara ficou um pouco mais, mas deitou-se antes das onze. Já na cama pensava como seria bom ter o marido a seu lado.

Recordava como ele era terno e amoroso para com ela, como faziam amor sem tabus ou quaisquer complexos. Um frémito percorreu-lhe o corpo e pegou num livro para tentar apagar as visões. Pouco depois adormecia com a luz acesa deixando cair o livro.


III

 

Alberto meteu todos os seus haveres no saco de lona e colocou-o às costas. Dirigiu-se ao refeitório municipal e entrou para o almoço. Sem este apoio, a maioria dos sem-abrigo de Lisboa não conseguiria sobreviver. O funcionário que controlava as entradas já o conhecia e ao vê-lo entrar com um livro na mão perguntou-lhe o que lia ele agora. Alberto virou a capa e mostrou-lhe o título “A Fórmula de Deus”. Tinha na contracapa a foto daquele jornalista da TV. Para o funcionário aquilo era chinês. Com um gesto indicou-lhe uma mesa. Alberto pegou no prato de alumínio e dirigiu-se ao “self-service”. A jardineira tinha bom aspecto e cheirava bem. Ali ninguém era esquisito e tudo o que vinha à rede servia. Depois de comer, Alberto ficou sentado durante um bom bocado observando os comensais. Havia de tudo, homens e mulheres, quase todos velhos, mas alguns com menos idade da que aparentavam. Que tragédias estariam por detrás daquelas pessoas? Por que amarguras terão passado para tomarem a opção de viverem na rua longe de tudo e de todos? Havia todos os tipos. Uns sujos e desleixados, de barbas hirsutas, dentes podres ou amarelos do tabaco, fatos rotos, sapatos abertos e desfeitos, malcheirosos e piolhosos, outros um pouco mais cuidados, limpos de roupas e corpo, com fatos velhos e a degradarem-se, mas ainda apresentáveis. Algumas mulheres tentavam ainda parecer bem, alindando-se um pouco como se a sua vida não tivesse dado uma volta de 180 graus alguma coisa da anterior tivesse ficado. Tentavam ainda ser um pouco coquetes e chegavam-se mais para aqueles que ainda tinham algum cuidado com a apresentação. Havia uma, com alguns sinais de uma beleza que se ia perdendo, que tentava sempre comer ao lado de Alberto. Chamava-se Sara e vivia num prédio abandonado juntamente com mais duas mulheres e apenas um homem. Eram muito selectivas nas companhias pois já várias vezes tinham sido molestadas por tentativas de violação, a que, felizmente tinham conseguido fugir.

Alberto e Sara falavam de tudo menos das suas vidas anteriores. Naquele meio respeitava-se muito a privacidade de cada um e ninguém queria saber quem era quem. Os motivos que os levaram àquela situação eram do foro privado e ninguém tentava penetrar nos segredos dos outros. Depois do almoço, distribuíram a cada comensal um bocado de sabão exortando-os a tomarem banho e alertando-os para o perigo de não o fazerem. Todos diziam que sim, mas a maioria não o fazia. Para muitos a degradação era total e estavam-se borrifando para as consequências. Os funcionários do refeitório bem lhes diziam que se não se lavassem, da próxima vez não os deixariam entrar, mas mesmo assim nada conseguiam.

Alberto e Sara saíram juntos e foram até um jardim onde se sentaram conversando. Sara falava bem e via-se que era letrada, lendo os livros que Alberto lhe emprestava e que ela devolvia após a leitura. Trocavam depois impressões sobre os conteúdos. Estiveram umas duas horas em franca cavaqueira combinando encontrarem-se de novo no dia seguinte de tarde junto do balneário público.

Já no seu local de descanso, Alberto dedicou-se às suas leituras. Não deu pelo tempo passar. Quando fechou o livro o candeeiro já se encontrava aceso. Resolveu dormir aconchegando a manta ao corpo e tapando a cabeça.

Numa semi-inconsciência, ouviu uma sirene de polícia ao longe. Um ranger de rodas bem perto fê-lo erguer-se. Um carro em alta velocidade veio bater no passeio bem perto dele e de uma das janelas do automóvel voou um enorme objecto que passou por cima da carrinha ali estacionada indo embater no pilar do viaduto e lhe caiu em cima. O carro continuou em correria desenfreada seguido pelo veículo da polícia. As sirenes foram esmorecendo o seu silvo até deixarem de se ouvir. Só então Alberto pegou no volume que quase lhe tinha partido o pescoço. Era um saco tipo desportivo, em “nylon”. O sem-abrigo abriu-o a medo e ficou estarrecido ao olhar o conteúdo. Em notas de 500 e 100 euros deviam estar ali uns três milhões.

Durante algum tempo a estupefacção não o deixou pensar, pouco a pouco foi-se apercebendo do que se estava a passar. Ali podia estar o suficiente para recomeçar a sua vida e poder voltar à companhia da sua querida família. Alberto meteu rapidamente as suas coisas no saco. No ecoponto mais próximo procurou um saco grande de plástico e meteu lá o dinheiro, dobrando o saco de “nylon” meteu ambos no fundo do seu.

Pegou nos cartões onde dormia e foi colocá-los no ecoponto não sem antes verificar se tinha deixado algo no local que pudesse indicar que ali tinha dormido alguém. Meteu o saco às costas e afastou-se rapidamente.

Andou grande parte da noite até parar num jardim no extremo oposto da cidade. Sentado num banco, dava voltas à cabeça tentando encontrar uma solução. Certamente teria havido um assalto a um banco. A polícia devia ter chegado mesmo quando os assaltantes se tinham metido no carro. Teriam sido agarrados? E se não foram? Voltariam à procura do saco e, se indagassem por ali, todos aqueles que por ali costumavam comer nas carrinhas de venda de comes e bebes, se indicassem o sítio exacto, facilmente lhes diriam que costumava dormir ali o sem-abrigo intelectual. Vão acabar por o descobrir. O melhor é mesmo desfazer-se da “massa” e fazer de conta que não estava lá e já tinha mudado de lugar. Mas que fazer com o dinheiro? Levou parte da noite a lutar com a sua consciência até ser vencido pelo sono deixando-se dormir no banco.

Acordou gélido porque até tinha tido medo de abrir o saco, mas a noite é boa conselheira e tomou uma decisão.


IV

 

Anselmo Fernandes, sentado à secretária, ligou para as Amoreiras onde sua mulher trabalhava. A telefonista da “Theodorus, SA[1] conheceu-lhe a voz e cumprimentou-o;

 – Bom dia senhor Inspector, quer falar com a Dr.ª Ana?

– Olá Isabel há aí mais alguém com quem costume falar? Aí só falo consigo e com ela. Um beijinho para si e passe à minha mulher se faz favor.

Ana atendeu no seu gabinete. Tinha passado rapidamente de secretária da administração a chefe da secção de planeamento da empresa. Licenciada em gestão e extremamente eficiente impusera-se rapidamente pelo trabalho realizado e soluções apresentadas. Ficara bem na vida após o recebimento da herança que o falecido patrão lhe deixara e casara com Anselmo após quatro anos de vivência em comum. Agora era uma peça chave da empresa e considerada por todos, patrões e trabalhadores.

– Olá maridão, que mandas?

– Eu não mando nada. Quem manda és tu. Mandas em mim mais do que devia permitir, mas não me importo, sujeito-me a uma mulher linda. Queres ir ao cinema hoje? Podíamos depois ir beber uns copos e namorar um pouco. Que achas?

– Não sei se deva. Vou decerto acabar seduzida.

– Tem sido normalmente o contrário. O seduzido sou sempre eu.

– Claro que quero. Logo pelas sete já estarei em casa. Comemos qualquer coisa para não irmos de estômago vazio e depois no bar ceamos.

– Fica combinado. Por essa hora estarei em casa também. Até logo. Um beijo.

– Outro para ti, meu policiazinho de meia-tigela. Até logo também.

Anselmo desligou e preparava-se para se deitar à papelada quando um agente bateu à porta entrando logo de seguida.

– Inspector está ali um tipo com aspecto de sem-abrigo, com um saco na mão, que diz querer falar com um inspector. Não larga o saco nem por nada, nem soltou mais uma palavra. Só quer falar a uma única pessoa, e como de momento é o único inspector que cá está…

Anselmo saiu do gabinete e dirigiu-se ao átrio ficando a observar quem queria falar com ele. Era um tipo de altura média, barba de vários dias mal aparada, cabelo comprido, mas mais ou menos penteado. Vestia uma camisola de lã por baixo de um sobretudo muito surrado e os sapatos não viam graxa desde há muito. Aquele tipo andava nas ruas. Que quereria? Normalmente tipos destes não se aproximam da polícia. Chegou-se um pouco mais ao indivíduo e apresentou-se;

– Bom dia. Sou o Inspector Anselmo Fernandes. Pretende falar comigo?

– Sim Sr. Inspector, mas terá de ser em particular se não se importa?

O tipo falava bem e com uma voz normal. Via-se que era uma pessoa que tivera princípios. Anselmo começou a ficar curioso.

– Vamos para o meu gabinete. Falaremos aí mais à vontade.

Deixou passar o homem e apontou-lhe o cadeirão em frente à secretária. O homem sentou-se tendo o cuidado de colocar o saco entre as pernas, mantendo a mão na pega.

– Então diga lá. Qual é o seu problema?

– Sr. Inspector, aquilo que pretendo relatar, só o farei se me prometer que não me vão investigar a mim nem procurar a minha família. Pretendo continuar como estou e não quero voltar para casa.

– Bem. O que me pede vai ser difícil de cumprir. Tenho de saber quem você é. A identificação será sempre necessária, mas posso prometer-lhe não divulgar.

Alberto pensava. Que fazer? Apetecia-lhe sair dali a correr e voltar para junto dos seus com o dinheiro, mas agora seria perigoso, poderia vir a colocá-los em perigo. Lutava com a sua consciência, mas algo lhe dizia que o melhor caminho era contar tudo à polícia.

Anselmo notou o nervosismo do seu interlocutor. Sentia que o homem lutava com algo e não sabia como proceder. Resolveu ajudar.

– Vejo que o Senhor enfrenta qualquer problema e está com dúvidas. Não sei do que se trata, mas a minha experiência diz-me que é algo de grave. Se o assunto lhe diz respeito e cometeu algum crime, ainda está a tempo de se ir embora, mas desde já lhe digo que mais tarde ou mais cedo o assunto vai chegar-nos às mãos e depois acabaremos por reencontrar-nos. Caso não tenha cometido qualquer crime, mas quer denunciar algo que pesa na sua consciência, então é melhor despejar o saco, ou melhor, os dois sacos, tanto o da sua consciência como esse que aperta com tanto nervosismo.

Alberto resolveu falar;

– Vivo na rua. Tive problemas na vida e as coisas não correram bem. Acho que os meus vivem melhor sem mim. Esta crise não me dá “chance” nenhuma e não vejo, por enquanto, solução para os meus problemas. A noite passada, quando estava deitado por baixo de um viaduto, junto a um dos pilares, um carro em grande velocidade e perseguido pela polícia, quase se estampava por bater no passeio junto a mim. Da janela atiraram este saco que me ia partindo a espinha. Está aqui muito dinheiro. Não contei, limitei-me a colocá-lo num saco de plástico, mas guardei o saco de “nylon” junto dos meus pertences. Mudei de poiso e não deixei rasto, mas estou certo que os bandidos vão dar comigo. Pelo meu hábito de ler, todos me conhecem como o sem-abrigo intelectual. Os tipos vão descobrir que eu dormia ali e podem somar dois e dois. Se me aparecerem, claro que vou dizer que não estou lá há dois dias, mas os tipos podem não acreditar e tentarem obrigar-me a falar. Quero saber como posso ser protegido.

Anselmo pensou uns segundos antes de responder.

– Tem consigo qualquer documento de identificação?

– Não. Deixei tudo em casa.

– Vai ter de me dizer quem é. Garanto-lhe que não entraremos em contacto com a sua família. Aliás, até é bom que ninguém o referencie com eles. A coisa poderá tornar-se perigosa. Houve um assalto a uma agência bancária e até meteu tiros. Um segurança está no hospital felizmente sem risco de vida. São quatro indivíduos e há suspeita de gangues de leste metidos nisso. Esses tipos são perigosos. Vou ter que ficar com as suas impressões digitais e o seu nome. Vamos colocar-lhe um localizador com um botão de alerta que será metido no forro do seu casaco. Para accionar o alerta, basta apertar o localizador contra o corpo. Os agentes que se vão encarregar disso estão habituados e colocarão o pequeno aparelho em local muito difícil de ser detectado. Vou ter de saber os locais onde pernoita, os locais habituais onde come e toma banho. Sempre que mudar de hábitos avise-nos. Se for contactado pelos assaltantes e, se não for sequestrado, contacte-nos. Se for sequestrado prima o localizador. Estaremos ao pé de si em menos de um fósforo. Tem que parecer surpreendido quando lhe perguntarem pelo dinheiro e seja peremptório quando disser que não estava naquele viaduto. Tenha calma e tudo correrá bem. Agora diga-me quem é.

– Chamo-me Alberto Moura e fui dono da firma de informática “Moura – Programação e Sistemas, Ld.ª” que faliu. Sou licenciado em engenharia informática. Trabalhei para o estado durante 15 anos e reformei-me por doença. Aleguei problemas psíquicos.

– OK. Chega. A sua identidade não sairá daqui. Dê-me o seu casaco. Vou chamar os técnicos que lhe vão montar o localizador e o informarão como aquilo funciona. Vão também tirar-lhe as impressões digitais. Agora passe-me esse saco.

Anselmo ligou o intercomunicador e chamou o agente da sua brigada que o auxiliava.

– Tobias! Podes chegar aqui ao gabinete se fazes favor.

Quando o agente Tobias entrou, Anselmo entregou-lhe o saco e incumbiu-o de levar o dinheiro á secção respectiva e que trouxesse o recibo depois de assistir à contagem e ao encerramento no cofre. Pediu-lhe também que chamasse a rapaziada da dactiloscopia para recolha de impressões. Deu-lhe o casaco de Alberto para colocação do um aparelho de localização.

Ligou depois para o gabinete da brigada que estava encarregue do assalto de ontem e pediu que o inspector encarregado do caso viesse falar com ele logo que possível.

Meia hora depois Alberto saia com o localizador inserido na ponta da gola do casaco e nada se notava. Para activar o alerta bastava comprimi-lo com os dedos ou assentar-lhe a palma da mão.

Quando Anselmo saiu da Judiciária sabia tudo sobre Alberto; quem era, onde morava, quem eram a mulher e os filhos e o que tinha feito na vida.

Agora, iria para casa ter com a sua mulherzinha e prepararem-se para sair.


V

 

Anselmo e Ana saíram do cinema e foram até a um bar beber um copo e trincar qualquer coisa. Sentados a uma mesa de um canto, Anselmo tinha uma vista geral sobre toda a sala. Era seu costume ficar sempre sentado de modo a ter um amplo campo de visão podendo vislumbrar tudo o que se passava à sua frente. Alguém que entrasse ou saísse, não escapava ao seu olhar.

– Hoje conheci um tipo estranho. Um sem-abrigo que deixou a mulher e filhos e passou a viver na rua. Vê lá tu que o tipo tinha uma vida boa, com uma firma de informática, ele é engenheiro informático, mas não se aguentou no balanço e faliu.

Ana ouvia o seu marido com uma ruga na testa. Perguntou-lhe:

– E fugiu porquê? Não foi capaz de dar a volta por cima? Não teve o apoio da família?

– Parece que a mulher o acusou de ser mau gestor, de não ter previsto a crise, de não ter tomado medidas atempadas, etc… etc… sabes que quando falta o pão, fala-se e perde-se a razão. As coisas endurecem e dizem-se palavras a mais. O tipo não aguentou e deixou-os para não os sobrecarregar. Tem uma reforma do estado e a mulher um trabalho numa loja de um centro comercial. Dá para viverem. Sem grandes folestrias, mas dá. Agora foi apanhado numa salsada das boas. Dormia quando lhe caiu um saco em cima com mais de três milhões de euros. Uns assaltantes de um Banco atiraram-no de um carro durante a fuga à polícia. Apareceu lá na Judiciária com o saco e com vontade de ajudar desde que lhe prometesse que não o obrigaria a voltar para casa.

– Ainda há gente honesta. Referiu Ana. – Poderia muito bem ter ficado com a “massa” e resolvido a situação dele.

– Pois. Só que não o fez e entregou-nos o dinheiro. Os bandidos ainda andam a monte e vão procurar pela “bagalhoça”. Aliás, estou convencido que já o fizeram. Vão interrogar toda a gente e vão ficar a saber que naquele lugar dormia um sem-abrigo. Ainda por cima, o tipo era bastante conhecido. Passava os dias a ler e todos lhe chamavam o sem-abrigo intelectual. Vão correr Lisboa inteira até o caçarem e aí poderá correr perigo e os seus também. Claro que já tomámos algumas providências, mas… as coisas podem correr mal.

– Há forma de o ligarem à família? Perguntou Ana.

– Estes tipos são capazes de tudo, até de recorrerem à tortura. Espero que o nosso homem faça uso do material que lhe escondemos na roupa e active o localizador. O caso nem é meu, não havendo homicídios… já sabes que não me entregam casos sem mortes, sou uma espécie de coveiro. Tenho que resolver as coisas para que descansem em paz. Os mortos e os que cá ficam. Mas estou preocupado. Simpatizei com o tipo. Pareceu-me um gajo porreirinho. Deram o caso ao Antunes, o inspector encarregue da investigação do assalto. Vou manter-me informado.

– Porque não pedes a esse Antunes que deixe o Fernando acompanhar o caso. Já há uns tempos que ele anda longe de investigações, talvez esteja interessado.

– Lembraste bem. O Antunes até conhece o Fernando e não se deve importar. Amanhã falo com ele e depois com o Fernando. Pode ser que o trabalho na universidade lhe permita um pouco de afastamento e lhe dê tempo para um pouco de acção. O Fernando vai gostar. Desde o caso da tua ex-patroa, a Gabriela, que o Fernando não mete o nariz numa investigaçãozita. Até pode ser que arranje tema para mais um livro.

– A propósito, também tenho de falar à Mariana. Já algum tempo que não estamos juntas e estou com saudades dela.

Bem, menina. Vamos para a caminha porque se faz tarde.

O inspector fez sinal ao encarregado que pressurosamente se aproximou.

– Diga Inspector. Quer já a conta? Está a deitar-se cedo para uma sexta-feira. Amanhã é sábado.

– Pois é. Mas infelizmente, os psicopatas deste país não se coíbem de mandar seres humanos para o outro mundo mesmo ao fim-de-semana. E se acontecer, lá vou eu. Era bom que os fazedores de cadáveres fizessem greve por estes dois dias. Sempre descansava.

Anselmo pagou deixando uma boa gorjeta e pediu que lhe trouxessem o carro. Arrancou depois de gratificar o arrumador e lhe apertar a mão. Era cordial para todos e todos o apreciavam, o que era benéfico para a sua profissão. Nutriam por ele grande apreço e sempre que podiam estavam dispostos a auxiliá-lo prestando-lhe todas as informações que precisava nas suas investigações.

No dia seguinte não houve crimes para descobrir e Anselmo ficou na cama até mais tarde. Ana foi chamá-lo para o pequeno-almoço.

– Mandrião. Acorda! Não achas que são horas? Depois habituas-te e durante a semana vai custar-te mais a acordar.

– Tu é que tiveste a culpa. Ontem já era tarde e devias ter-me dado com os pés. Assim a brincadeira durou que tempos.

Ana atirou-lhe com uma almofada e logo a seguir atirou-se para cima dele beijando-o.

– Foi uma noite louca. Penso que temos de começar a refrear os nossos instintos. Qualquer dia estamos velhos-carquejas e vamos ter montes de problemas de coluna por causa do nosso sexo desenfreado.

– Deixa. Anselmo olhou-a com ternura. – Mais vale morrermos disso do que tornarmo-nos velhos caturrenhos e chatos. Agora vamos comer e depois telefonamos à Mariana e ao Fernando. Está na altura de irmos jantar juntos a qualquer lado e conversarmos um bocado.


VI

 

Alberto foi almoçar ao sítio do costume. Tinha de encontrar a Sara e contar-lhe o que se passara. Iria mudar de poiso e ela teria de saber. Quando chegou ao centro de apoio ainda havia poucos comensais. Colocou-se de modo a não ser visto, mas a poder ver quem entrava. Quando Sara apareceu puxou-a por uma manga e levou-a para o fundo da viela lateral. Contou-lhe tudo o que se passara dizendo-lhe que ia mudar de local. Se ela quisesse fazer-lhe companhia seria bem-vinda. Teriam de ir para um ponto da cidade bastante afastado dali e ninguém poderia saber. Sara ficou preocupada, mas anuiu logo.

– Vou contigo. Não tenho aqui ninguém que me prenda.

Resolveram ir para o lado contrário da cidade. Escolheram uma azinhaga sem saída. Era uma viela apenas com caixotes do lixo e janelas pertencentes a armazéns. Limparam o melhor que puderam um local debaixo de umas chapas de zinco e colocaram no chão vários cartões limpos. Conseguiram uma lata velha suficientemente grande e fizeram fogo com umas madeiras de caixas de fruta que por ali tinham sido deixadas. Taparam-se com as mantas e encostados à parede e ampararam-se um no outro. Alberto sentiu falta de uma luz para poder ler, mas por outro lado a escuridão protegia-os. Apenas o fogo os poderia trair, mas sem ele não aguentariam a noite. Ficaram bastante tempo a conversar até com lhes dar o sono. Alberto industriou Sara para que se pusesse a salvo caso os meliantes aparecessem. Estariam apenas preocupados com ele e certamente não a perseguiriam. Vencidos pelo sono, já noite alta, estenderam-se encostados um ao outro. Alberto procurou a mão de Sara e segurou-a entre as suas. Acordaram com o clarear do dia. Comeram os pães da refeição do dia anterior, já um pouco ressequidos, meteram as coisas nos sacos e foram à procura de um centro de apoio. O centro era longe, receberam-nos e serviram-lhes uma refeição. O balneário público era praticamente junto. Lavaram-se e vestiram-se com roupa previamente lavada num chafariz público. Alberto conseguira uns bocados de sabão azul e branco para lavarem as roupas e assim andavam mais ou menos limpos sem cheiros incomodativos. Foram procurar poiso mais perto daquele centro. A viela da noite anterior ficava longe e era má para poderem fugir se fossem descobertos. Tinham que ter terreno de fuga caso as coisas corressem mal. Numa rua perto, bastante sossegada e sem movimento de carros, encontraram um prédio abandonado com a porta entaipada. Alberto conseguiu despregar um dos lados e abrir uma brecha. Por dentro não tinha nada, apenas muita sujidade. Tinha duas divisões, uma cozinha e uma casa de banho. A sanita estava seca, mas se arranjassem água poderiam servir-se dela. Teriam de fazer algumas limpezas. Havia uma porta na cozinha nas traseiras que dava para um pequeno quintal. Alberto conseguiu abrir a porta de modo, que do lado de fora, continuasse a parecer entaipada. Tinham que ter cuidado pois casas daquelas eram usualmente muito procuradas por drogados. Aquela porta era um bom ponto de fuga pois o portão do quintal era suficientemente baixo para poderem passar por cima. Alberto construiu um alarme com umas latas que pendurou do lado de dentro das duas portas. Passou uma corda por um olhal de modo a quando as portas fossem abertas as latas batiam umas nas outras com ruído suficiente para os alertar. Limparam uma das dependências o melhor que puderam, colocaram cartões no chão e estenderam as mantas. Teriam de conseguir algum dinheiro para comprarem velas. Umas latas de conservas também dariam jeito. Deitaram-se para passarem a primeira noite sem ser a céu aberto. Sara encostou-se a Alberto e passado um pouco faziam amor em silêncio.

No dia seguinte, acordaram muito cedo. Sara presenteou Alberto com um sorriso cúmplice. O sem-abrigo correspondeu-lhe com uma festa na cara. Nas circunstâncias em que viviam, o sexo era mais uma questão de solidariedade do que de amor. Assim completavam-se e compreendiam-se sem perguntas nem exigências. Os dias foram correndo sem que houvesse novidades de maior. Alberto procurava que Sara não se habituasse à calma e continuasse alertada para qualquer movimentação suspeita quer na casa ou perto dela, quer na rua. Certamente os meliantes não iriam deixar de procurar os milhões roubados. Necessitava entrar em contacto com o Inspector Anselmo para saber se já tinha havido alguma captura, mas não havia dinheiro para a chamada. Nunca tinha exercido a mendicidade, até ali conseguira viver apenas com o apoio dos abrigos e centros de apoio, mas teria de abrir uma excepção.

Anselmo estava à secretária quando a telefonista lhe ligou dizendo que tinha em linha um homem que se identificara apenas como Alberto.

− Olá Alberto que se passa? Não. Ainda não demos com os patifes. Mantenha-se alerta. Caso tenha alguma suspeita não tenha pejo de nos avisar. Está a falar de onde? Está bem. Usar uma cabine é seguro. Precisa de alguma coisa? Não? Bem, se precisar diga. Boa sorte.

Anselmo desligou e ficou a meditar sobre aquele homem. Culto e honesto, atirado para aquela situação por falta de dinheiro e oportunidades para arranjar subsistência para a família. A vergonha dos honestos é um entrave para a vida. Os criminosos não têm esses problemas de consciência, aliás nem devem ter consciência. Se a mulher tivesse tido um pouco mais de compreensão, as coisas talvez tivessem corrido de outra forma. Pegou no telefone e ligou para o seu amigo Fernando.

− Olá rapaz. Como vais?

− Ena. Que se passa para me ligares? Estou a ver que precisas da minha clarividência especial para descobrir crimes e ajudar a nossa distinta polícia de investigação. Aproveita agora que estamos de férias da Páscoa e tenho pouco que fazer aqui na Faculdade.

− Era mesmo isso. Vou precisar de ti. Porque não jantamos hoje os quatro? Sim. Podemos encontrar-nos às 20H no nosso restaurante do costume.

− OK. Lá estarei com a Mariana. Até logo.

Anselmo desligou. Pensou como era bom ter um amigo assim sempre disponível para o ajudar. Já em casos anteriores Fernando tinha sido um útil auxiliar. Desde que se tinha metido a escrever romances policiais, que a sua mente e inteligência, tinham sido postas à prova na ajuda a algumas descobertas importantes, quer no caso de tráfico de diamantes, quer no crime da Theodorus, SA.

Já no restaurante, os quatro amigos cavaqueavam frente a uma bela refeição de peixe grelhado. Ana e Mariana estavam um pouco tensas, esses encontros normalmente acabavam por meter o Fernando em sarilhos que poderiam vir a ser perigosos. Ana já estava habituada a viver sempre em ânsias devido à profissão do marido, mas Mariana, que sabia bem o marido que tinha, estava já a temer que Fernando se fosse envolver de novo em actividades perigosas, o que a deixava sempre angustiada.

Anselmo resolveu começar: − Vou contar-vos a história de um sem-abrigo honesto.

Aos cafés, já todos conheciam a história de Alberto e em como se tinha visto envolvido no caso do assalto ao banco.

− O caso não é meu. Continuou Anselmo. – Está entregue ao meu amigo inspector Victor Antunes, especialista em assaltos principalmente de bancos, mas como fui o primeiro a ser contactado pelo Alberto, e simpatizei com o homem, estou preocupado com a sua segurança e penso que poderemos ajudar. O Victor até nos vai agradecer, pois os meios são cada vez mais escassos e qualquer ajuda é sempre bem-vinda.

− E qual é o papel que me tens reservado nessa história?

− Que achas fazeres de guarda-costas de um sem-abrigo?

− Eu? Porque não destacas um agente para o efeito?

− Achas que os meus superiores vão ocupar um agente para essa missão? Com a escassez de efectivos que há? Nem penses nisso. Só mesmo em caso de força maior e se daí advier algum benefício para a investigação. Vais ver que vais achar interessante. O homem é uma pessoa com interesse e muito bem formado. De certeza vais encontrar motivos para os teus escritos.

− E isso não será perigoso? Perguntou Mariana com ar preocupado. – Vão de novo correr riscos. O meu marido não é polícia e eu quero-o inteiro por muitos anos e bom. Bastam os sustos que apanhei aquando do caso do “Elefante Negro”[2].

− Não tens o direito de colocar o Fernando em situações de perigo. Referiu Ana. − Ser polícia é uma coisa, agora Fernando é um professor investigador da nossa faculdade, se algo lhe acontecer a responsabilidade será tua.

− Então? Foste tu que sugeriste que ele podia ajudar. Claro que não o vou obrigar. Dar-lhe-ei toda a protecção de modo a contactar connosco rapidamente. Estaremos em qualquer local em poucos minutos. Deixo ao Fernando toda a liberdade para recusar, mas como me está sempre a pedir para o imiscuir na acção, achei que esta missão seria óptima para ele.

− Claro que sim. – disse Fernando. – Já estou entusiasmado. Vai ser bom conhecer esse sem-abrigo. Será que vai ser fácil chegar à fala com ele?

− Há uma maneira. E essa é um trunfo que tens na manga. O homem é um intelectual. Está sempre a ler e boas obras, como tu és um conhecedor da boa literatura, não terás problemas de comunicação.

− Então está combinado. Quando começo?

− Vou pôr a organização a descobrir por onde anda ele agora. O tipo mudou de local e, apesar de me ter telefonado ontem, não me disse onde pára. Mas vamos descobri-lo rápido. Falo ao Antunes e ele trata disso.

− Assim como vocês o vão encontrar, os bandidos também o poderão fazer.

− Claro que sim. É por isso que te quero perto dele. O tipo tem na roupa um localizador do qual fará uso em caso de perigo, mas se as coisas correrem mal, estarás lá tu para nos contactares.

− OK. Fogo à peça! Assim que souberes onde o gajo está liga-me. Estou de licença e com tempo livre.

− Podes ficar descansado. Agora vamos até nossa casa beber um copo e aproveitamos para falar sobre as coisas comezinhas da vida.

À noite, já depois de Fernando e Mariana terem saído, Ana, sentada no colo de Anselmo e com os braços a rodear-lhe o pescoço, zurziu um pouco a cabeça do polícia por este se servir do amigo em casos que poderão envolver perigo.

− Já estou arrependida de me ter lembrado dele.

− Deixa querida. Fernando desenrasca-se bem. Havias de ter visto como arrumou um matulão com dois murros muito bem colocados lá naquela casa de alterne onde te conheci.

Anselmo raramente se referia à vida anterior de Ana, mas não escondia nada propositadamente. Ambos não tinham quaisquer constrangimentos com o facto de Ana ter tido uma vida livre e difícil. Conhecera-a numa casa de alterne e apaixonaram-se. Ana trabalhava lá e prostituíra-se para poder frequentar a universidade, mas não se envergonhava disso. Hoje a vida era outra e o amor dos dois superou tudo isso.

− E agora vamos dormir. Amanhã tenho trabalho e tu também.


VII

 

Fernando deixou de fazer a barba. O cabelo era suficientemente comprido para, se despenteado, dar um ar de abandono. Pegou num sobretudo que já não usava há muito, fez-lhe uns cortes esfiapados e pregou-lhe umas nódoas. Uma camisola de lã que antigamente usava na pesca, uns sapatos velhos que sujou de lama deixando-os baços e com ar cambado, um saco velho de lona, também da pesca e estava com o equipamento pronto para o que desse e viesse. Meteu uns livros, que já lera, no saco e aguardou que Anselmo o contactasse.

O telefonema só veio três dias depois;

− Olá Fernando. Já descobrimos o tipo. Anda lá para os lados de Marvila. Há lá um centro de apoio da Misericórdia onde ele vai comer. Anda acompanhado por uma mulher também sem-abrigo. Estão alojados numa casa abandonada, mas tomaram providências para não serem surpreendidos. Os nossos homens viram-se aflitos para os descobrirem. Só a sua grande experiência os levou a localizarem o poiso deles. Tens que te aproximar através do centro de apoio. Não forces nada. Faz com que as coisas corram normalmente. Ganha-lhe primeiro a confiança.

− Vou fazer para que tudo corra bem. Conta comigo para proteger o homem. Vai ser um exercício interessante de psicologia. O facto de ter companhia feminina vai complicar um pouco. Como agora tem companhia e anda desconfiado, vai ser mais difícil ganhar-lhe a confiança. Mas fica descansado que vou conseguir.

− Sei que sim. Quando pensas começar?

− Vou preparar tudo para amanhã. Hoje ainda vou fazer um reconhecimento. Envia-me a morada por “mail”.

− OK. Toma cuidado contigo.

Cerca de uma hora depois, Fernando conduzia o seu potente BMW para o lado oriental da cidade.

Passou primeiro pelo centro de apoio para se familiarizar com a topografia do local. Referenciou um parque automóvel relativamente perto e passou pela viela onde ficava situado o abrigo do homem que iria tentar proteger. Depois de ter decorado toda a topografia regressou a casa e preparou-se para a sua missão que iniciaria no dia seguinte.

Pelas onze da manhã saiu de casa e conduziu até ao parque que escolhera na véspera. Deixou lá o carro não sem antes ter escondido uma chave presa do lado de dentro de um dos guarda-lamas. Não se podia dar ao luxo de fazer de sem-abrigo com uma chave de BMW no bolso. O telemóvel ia ser uma chatice. Não podia prescindir dele para o caso de ter que comunicar com Anselmo. Teria de arriscar.

Dirigiu-se ao centro de apoio e entrou.

− O meu caro amigo é novo por aqui. Nunca o tinha visto. Referiu o funcionário que controlava as entradas.

− Estou há pouco tempo nas ruas. Acabei as poucas provisões que tinha. Espero que me deixe almoçar. Já não como desde ontem.

− Aqui recebemos toda a gente. Vá buscar o almoço e sente-se onde tiver lugar.

Fernando pegou num dos pratos de alumínio e foi até ao balcão onde lhe serviram frango com esparguete. Olhou à sua volta e viu logo Alberto e Sara. Correspondia exactamente à descrição que Anselmo lhe fizera. A mulher que o acompanhava ainda tinha bastante bom ar, apesar de mal-arranjada e estar vestida com roupa pouco cuidada. Ambos ainda tinham um aspecto lavado. Havia uma vaga na frente dos dois e Fernando aproveitou. Notou que Alberto lhe lançara um olhar de soslaio. Era novo ali e naturalmente o homem tomava os seus cuidados. Durante a refeição não trocaram uma palavra. Fernando notou que tanto Alberto como a companheira tinham guardado o pão da refeição. Provavelmente serviria para sossegar o estômago antes de dormirem. Fernando verificou, com alguma surpresa, que a comida estava apetitosa e bem confeccionada. No fim da refeição dirigiram-se para uma sala lateral onde nalgumas mesas se jogava a sueca. Alberto e Sara sentaram-se numa das mesas livres e Sara tirou dois livros do saco de papel que trazia. Fernando tirou também um livro do bolso do sobretudo e dirigiu-se à mesma mesa pedindo licença para se sentar. Alberto olhou e sem nada dizer apontou-lhe uma das cadeiras livres. Estiveram ali umas duas horas. A certa altura Alberto fez sinal a Sara e levantaram-se os dois dirigindo-se para a porta. Fernando continuou a ler. Teria de ter muito cuidado na aproximação. Via-se que o homem estava muito desconfiado e seria difícil ganhar-lhe a confiança. Provavelmente teriam de passar alguns dias até isso ser possível.

Quando o dia já esmorecia, o funcionário do centro de apoio mandou sair toda a gente apesar dos protestos quase gerais. Fernando dirigiu-se até à viela que já conhecia e deitou-se logo no início, junto duma parede e debaixo de uma escada de serviço, em ferro, já meia desfeita. Foi até aos caixotes e arranjou uns cartões. Enrolou-se na manta que tirara do saco e preparou-se para dormir. Só muito tarde conseguiu adormecer e mesmo assim acordava quase de hora em hora. Valeu-lhe ser um homem ginasticado e forte. A rigidez do solo e algum frio começaram a fazer os seus efeitos. Já de manhã a claridade não o deixava dormir e por outro lado teria de se manter alerta para ver quando os vigiados sairiam. A viela não tinha saída e, caso não saíssem pelas traseiras, teriam de passar por ali. De facto, assim aconteceu, Alberto e Sara saíram e levaram algum tempo a fecharem a porta de modo a parecer não ter sido utilizada. Fernando fingiu que estava a dormir e, com os olhos semicerrados viu Alberto dirigir-se a ele.

Assim que o homem lhe tocou na manta para lhe ver o rosto, Fernando deu um salto fingindo-se surpreendido e agarrou-lhe o braço com alguma violência. Alberto recuou e tentou libertar-se.

− Óh! Desculpe. Acordei sobressaltado pensando que me iam assaltar. Disse Fernando. – Mas estou a conhecê-lo. Você estava ontem no centro. Estivemos a ler juntos na mesma mesa.

− Quem é Você e o que faz aqui? Perguntou o sem-abrigo.

− Fernando sorriu. Que pergunta! Olhe, faço o mesmo que Você, tento descansar e dormir, o que ainda não consegui muito. Passei muito frio. Tenho que arranjar outro poiso mais confortável. Conhece algum?

Alberto não lhe respondeu directamente à pergunta, dizendo apenas; − Tenha cuidado com os sítios que escolhe para dormir. Há aí alguns viadutos que dão melhor guarida. Seja prudente, estes sítios são perigosos, anda por aí muito tarado capaz de tudo.

− Estarei alerta. Disse Fernando.

Depois dos dois se retirarem Fernando pensou que este incidente tinha sido bom. Ao almoço teria um motivo para poder meter palavra com o casal.

Escondido atrás dos caixotes do lixo Fernando pegou no telemóvel e ligou para Mariana.


VIII

 

Tobias bateu à porta do gabinete e mal ouviu o “entre” entreabriu-a dizendo:

− Chefe! Temos um caso de homicídio. E sabe que mais? É um sem-abrigo.

Anselmo deu um salto levantando-se abruptamente.

− Não me digas. O Alberto?

− Julgo que não Chefe, mas deve ter a ver com o caso. O tipo foi morto no viaduto onde atiraram com o dinheiro.

− Ainda lá está?

− Sim Chefe. Mandei para lá já a nossa brigada. Devem estar à sua espera. O médico legista e os homens do laboratório também já foram. Vamos?

− Vai buscar o carro. Vou só fazer um telefonema.

Anselmo ligou para Fernando, deixou tocar um pouco e como não atendesse desligou. Fernando veria a chamada dele e certamente ligaria logo que pudesse.

Saiu e meteu-se no carro com Tobias ao volante e colocou o pisca azul no tejadilho. À chegada ao viaduto dirigiu-se logo para o local onde um aglomerado indicava que algo de estranho se passara. À volta, muitos curiosos tentavam espreitar, mas nada viam. O corpo encontrava-se entre uma carrinha velha, ali estacionada certamente há muitos dias, e um dos pilares centrais do viaduto. Estava meio coberto por um lençol e os peritos já arrumavam o material. Anselmo procurou o médico legista.

− Olá Doutor, então o que temos aqui?

− Inspector Anselmo, como vai? Olhe! É um pobre diabo maltrapilho e malcheiroso. Deve estar morto aí há umas dez horas, mas só lá poderei calcular melhor a hora da morte.

− O que o matou?

− Porrada! Deram-lhe forte e feio. Ainda tem uma mordaça na boca. Também o torturaram com queimadelas de cigarros. O tipo não aguentou e teve uma crise cardíaca. Deveriam querer saber alguma coisa. Que poderá um mendigo destes saber?

− Penso que sei do que se trata, mas tenho de investigar um pouco.

Anselmo calçou umas luvas de borracha e afastou o lençol. Tirou a mordaça da boca do homem e meteu-a num envelope de plástico. Dentro da boca da vítima estava qualquer coisa. Anselmo pediu uma pinça aos técnicos da judiciária e puxou. Era outro lenço, este preto e não verde como o primeiro. Guardou-o noutro envelope e deu ambos a Tobias. O morto, além de um pão ressequido, nada tinha nos bolsos. Estava sem meias e os sapatos estavam completamente degradados.

− Quem descobriu o corpo? Perguntou ao PSP que estava junto.

− Foi aqui este amigo. E apontou um sujeito de cor que aparentava algum nervosismo.

− Então conte lá. Como deu com o homem?

− Bem Senhor Inspector. Saí ali do Bingo e vim aqui fazer uma “mija”. Perdi umas massas e vinha tão desorientado que me esquecera de a fazer lá dentro. Já não estive para voltar atrás. Este sítio é muito concorrido ao fim-de-semana para beber uns copos e comer umas “sandochas” ali nas barracas. Esta noite estavam fechadas e não havia movimento. Quando passei atrás da carrinha ia pisando o homem. Apanhei um susto dos demónios, até dei um salto. Olhei depois com mais atenção e pareceu-me algo de estranho. Apesar de ter tropeçado nele, o gajo nem se mexeu. Aproximei-me mais e vi que tinha a cara bastante “amassada”. Pareceu-me morto. Fui ver se encontrava uma autoridade e por acaso passou um carro patrulha. Mandei-os parar e trouxe-os aqui.

− Sabe que horas eram mais ou menos?

− Pouco passava das cinco. Saí por essa hora.

− Mexeu em alguma coisa ou viu algo junto à vítima.

− Nada Senhor Inspector. Não toquei em nada. Tenho muito respeito pelos mortos e não me sinto nada bem junto deles. Posso ir-me embora.

− Só depois de deixar a identificação ali ao agente Tobias. Mantenha-se na cidade pois pode ter de ser contactado.

Anselmo demorou mais meia hora a verificar a cena do crime. Junto à parede havia alguns pingos de sangue e no chão também algumas manchas que pediu à equipa técnica para analisar. O chão em volta estava seco e não havia vestígios nem marcas de calçado.

Um pequeno objecto brilhou debaixo da greta entre o pilar e o solo. Com a pinça conseguiu sacá-lo não sem algum custo. Era um emblema com a bandeira da Roménia. A mola de prisão tinha saltado. Anselmo ainda a procurou durante um bocado, mas ao fim de uns minutos desistiu. Meteu o emblema noutro envelope e fez sinal a Tobias para irem embora.

A bandidagem de leste andava metida nisto. Teriam de redobrar os cuidados. Anselmo não era xenofobista, achava que todos eram cidadãos do mundo e tinham o direito de viver onde quisessem. Só não entendia era que um indivíduo deixasse a sua terra para se dedicar ao crime em terra alheia. Aí era radical. Pensava que quem metesse a pata na poça, deveria ser imediatamente recambiado ao remetente com proibição total de voltar. Bandidos já havia muitos na sua terra, não precisávamos de mais.

Ao entrar para o carro o telemóvel tocou. Era Fernando.

− Então Anselmo há novidades?

− Há e das grandes. Mataram um mendigo sem-abrigo no mesmo sítio onde o Alberto dormia quando do assalto. Torturaram o gajo, mas o tipo morreu com uma crise cardíaca. Por alguns indícios recolhidos há gajos de leste metidos nisto. Estes tipos são muito perigosos. Tens de redobrar de cautelas. Há algo de novo para me dizeres?

− Por enquanto não muito. Já cheguei à fala com o Alberto e agora ao almoço vou tentar estabelecer maior contacto. Passei uma noite do caraças e estou todo partido. Já não dormia no chão desde a tropa.

− Aguenta. Não queres escrever histórias policiais? Então não te queixes. Tens de viver os factos para os conheceres. Não é só descrever. A maioria dos escritores descreve mal essas coisas porque não as vive. Tu estás em vantagem. Abraço. Se tiveres novidades liga-me logo possas.


IX

 

Fernando almoçou na mesa em frente à de Alberto e Sara. O casal comeu rapidamente trocando apenas uma ou outra frase. Via-se que Alberto estava um pouco nervoso. Mostrava-se atento a todas as pessoas que entravam, seguindo-os com o olhar até se convencer de que não haveria perigo. Fernando também não notou nada de anormal. Após a refeição, dirigiram-se como de costume para o local de lazer e dedicaram-se à leitura. Fernando esperou que na pequena sala as mesas ficassem todas ocupadas. Com o livro na mão, aproximou-se da mesa de Alberto e Sara e pediu licença para se sentar.

− Desculpem, mas como são os únicos que já conheço, sinto-me mais confortável junto de vocês, além de que a maioria tem muito mau aspecto e o cheiro não é lá muito agradável. Não se importam, pois não?

Alberto fez sinal que sim com a cabeça ficando a observar o seu interlocutor.

− Verifico que você é novo nisto. Vê-se a sua falta de hábito e jeito para lidar com a situação de sem-abrigo. Por outro lado, não é muito normal aparecerem por aqui indivíduos com a sua maneira de falar e tom de voz. Diga-me que faz aqui? Anda há pouco tempo nisto ou move-o qualquer outro interesse?

− O meu caro também não tem pinta para tal e eu não o interroguei. Há pessoas que mudam de vida por variadíssimos motivos. Mas não tenho quaisquer escrúpulos de falar no assunto, a minha mulher trocou-me por outro e não aguentei. Para mim a vida deixou de ter interesse. Andar a matar-me a trabalhar para viver condignamente com a mulher que se ama e depois ser assim traído…

Nessa altura Sara, que até ali parecia desinteressada do que os homens diziam, começou a dar mais atenção à conversa.

Fernando continuou: − Não aguentei. Resolvi abandonar tudo até ganhar coragem para sair daqui e tentar refazer a vida em qualquer outro lugar. E você? Porque anda nisto?

− Não foi bem isso. Não fui capaz de tomar conta dos meus. Para lhes dar má vida preferi sair. Já arranjou melhor sítio onde ficar?

− Ainda não.

− Eu e a Sara estamos numa casa abandonada lá naquele beco onde dormiu. Há lá espaço para si. Se quiser poderá ocupar uma das divisões.

− Não quero ser pesado nem tirar-vos a privacidade. Vocês são um casal e eu um homem só.

− Não tem importância, já vi que é uma pessoa civilizada e lá dentro há portas que se fecham.

− Bem, aceito até encontrar algo para mim. Não quero criar-vos problemas.

− Problemas é o que nós temos mais. Apareça quando quiser. Tem é de encontrar alguma coisa para comer à noite. Quando chegar bata na porta com três pancadas primeiro e depois mais umas quantas repenicadas.

− Lá estarei. Vou providenciar algo.

Fernando, nessa tarde, foi até ao carro e mudou de roupa. Ajeitou o cabelo e aparou um pouco a barba com a máquina de pilhas que tinha sempre no porta-luvas. Foi até um supermercado e comprou umas latas de conservas, bolachas, três pacotes de leite, pão, algum fiambre, um paio e uma garrafa de tinto. Voltou ao carro e trocou novamente de roupa.

Assim que escureceu foi até ao beco e bateu na porta da forma combinada. Quando Alberto abriu, Fernando reparou que a mesma se fechava de modo a parecer que nunca fora aberta.

− Vejo que tomaram providências para passarem despercebidos. Receiam algo?

− Sim. Já lhe conto. Reparo que o meu caro traz provisões. Assaltou alguém?

Fernando sorriu e respondeu: − Não! Saí de casa, mas tenho algum dinheiro. Ando com um cartão multibanco escondido aqui no casacão. Enquanto durar não vamos passar fome.

Dizendo isso, colocou as compras em cima de um caixote.

− Podem servir-se à vontade. É como se fosse vosso.

Puxou por um canivete suíço e começou a cortar umas fatias de pão e umas rodelas de paio. Abriu uma lata de atum e a garrafa do vinho.

− Como não há copos vamos ter que partilhar o mesmo gargalo. Espero que não se importem. E agora, enquanto petiscamos, digam-me, de que têm medo.

Alberto sentiu que podia confiar naquele homem. Aquele olhar e a forma aberta como se exprimia, não enganava ninguém, estava ali um tipo fixe. Pegou no canivete e, com a lâmina, tirou um bocado de atum que colocou numa das fatias de pão. Deu um gole na garrafa e começou a contar a sua história.


X

 

Razvan era conhecido no “meio” pelo Romeno. Viera para Portugal fugido da polícia do seu país que o procurava por assalto e roubo. Felizmente não chegara a ser totalmente identificado, mas se por lá continuasse estaria certamente lixado. Aqui em Portugal não tivera dificuldade em juntar-se a três tipos que viviam de roubo e assaltos, mas ainda eram um pouco crus no “negócio”. Com ele aprenderiam a “trabalhar” fazendo “serviços” mais sofisticados e lucrativos. Só que a falta de calo daqueles maçaricos fizera com que o primeiro assalto, que até correra bem, acabasse mal. Aquele safado do Toino tinha dedo leve no gatilho e logo foi atirar no segurança. Nada pior que ter de atirar em alguém. E agora, perseguidos pela “bófia”, tiveram de livrar-se do produto do trabalho.

Na casa do Toino, os quatro bebiam vinho e trincavam uns couratos com azeitonas, trocando acusações pelo fracasso obtido.

− Logo tinhas de atirar naquele tipo. − Disse o Romeno com o seu sotaque característico. – Agora temos a bófia à perna e o crime passa de apenas roubo para homicídio.

− Não sabemos se o gajo “lerpou”. – Disse o Toino. – E depois se não atirasse o tipo apanhava-me. Era um grande matulão e não podia com ele. Teve de levar.

− Nunca mais levas uma arma. És perigoso.

− Agora não interessa discutir isso. – Disse o Franzino. – Não fomos identificados e isso é bom. Espero que não tenham deixado indícios pessoais no carro que abandonámos. Temos, mas é de encontrar o tipo que nos ficou com a “massa”. Esse sem-abrigo intelectual não pode ter-se esfumado.

O quarto elemento tinha estado calado até ali. Era um matulão de um metro e noventa e pesava aí uns cem quilos. Não aprovara a união do grupo com o Romeno e não se sentia nada à vontade a receber ordens dele. Mas o Romeno sabia da poda e poderia ser útil. Iria aguentar, mas ele que tivesse cuidado e não exorbitasse. Se isso acontecesse teria de se haver com ele.

− E tu ó Hercules, que tens para dizer? - Perguntou o Romeno.

− Olha, digo que a culpa foi tua. A liderança não é só dizer o que fazer. Temos de prever os percalços e construir cenários do que poderá acontecer e prever actuações para cada cenário possível. O Toino não foi industriado para aquela situação e actuou como entendeu. Agora não se lhe podem atirar pedras.

− Sim senhor. Estás a sair-me um autêntico professor. Já agora diz lá, o que achas que deve ser feito?

− Em primeiro lugar temos de encontrar o tal sem-abrigo que dormia por ali e depois temos de certificar-nos que o tipo ficou com o dinheiro. Nada nos diz que não possa ter sido outra pessoa a achar o saco.

− E qual é a estratégia?

− O melhor será ir lá ao viaduto e procurar saber mais coisas sobre o tal pedinte, assim como nos disseram que o gajo dormia ali, também nos podem dizer como o gajo é. Depois, com uma descrição mais pormenorizada, será mais fácil procurá-lo. Até podemos pagar a alguns tipos para o descobrirem para nós. – Referiu o Hércules.

− Não convém muito andarmos os quatro por ali a indagar. Os “bófias” não são estúpidos e estão alerta. – Pois. O Franzino tem razão. Temos de ser prudentes. Por azar, aquele malcheiroso que por lá estava logo havia de morrer. O gajo não aguentou umas pancaditas. Era fracote. Além disso nada tinha a ver com o tal intelectual. Aquele nem seria capaz de ler os letreiros de autocarros quanto mais ler livros. O pior é que passámos a criminosos e agora estamos lixados. Se nos apanham será muito grave para nós.

− O Franzino é aquele que passa mais despercebido. Por mim acho que deve ser ele a lá voltar. – Disse o Toino um pouco a medo.

− Eu? Porque não tu? Também não és muito maior do que eu.

− Vai mesmo o Franzino. – Disse o Romeno acabando com a discussão. – Vais lá e tentas saber características do intelectual. Entretanto aqui o “professor” Hércules vai encarregar-se de arranjar uns sem-abrigo e “untá-los” para que procurem o intelectual assim que tivermos mais pormenores descritivos.

Hércules assentiu com a cabeça. Começou a pensar que mais tarde ou mais cedo teria de livrar-se daquele Romeno.

− Temos também de encontrar um lugar para a nossa sede. A casa de cada um de nós não é segura, pois se identificarem algum, as nossas residências passarão a andar vigiadas.

Resolveram sair um de cada vez para não darem nas vistas.


XI

 

Fernando ouviu atentamente a história que já conhecia. Assim que Alberto terminou, resolveu intervir.

− O que acabou de me contar pode ser muito perigoso. Os meliantes que fizeram o assalto vão acabar por encontra-lo, e mesmo que diga que não estava lá naquele fim de tarde, eles não vão acreditar e podem partir para a violência para o obrigarem a falar. Se for agarrado, não tenha pejo em utilizar o localizador que a polícia lhe deu, mas faça-o apenas quando o poder fazer sem ser notado. Temos de preparar uma forma dos tipos, se aparecerem, não darem com a Sara, pois poderão exercer sevícias sobre ela para o obrigarem. Muitos homens são bem estóicos e aguentam muito, mas aguentarão pouco ao verem alguém a sofrer por eles e então com mulheres, pior.

− Há um sótão aqui por cima. – Disse Alberto. – Reparei numa abertura que há na cozinha. Vamos lá acima ver se tem condições para servir de esconderijo.

Dirigiram-se os três à cozinha. Fernando, como mais alto, subiu a um caixote que servia de mesa e num pulo, conseguiu agarrar-se às bordas da abertura. Com um golpe de rins e força de braço, elevou-se conseguindo penetrar no sótão. Alberto e Sara repararam como o homem era ginasticado. O sótão ocupava toda a casa e não possuía qualquer divisão. O telhado, ainda em bom estado de conservação, pouca luz deixava entrar através das telhas. Num dos topos encontrava-se um velho armário de três portas meio desconjuntado. O móvel estava encostado ao esconso do tecto e deixava espaço atrás onde uma pessoa como a Sara se poderia esconder. Era preferível ficar atrás do armário do que dentro dele, assim poderiam deixar as portas abertas para que quem olhasse de longe poder ver que nada continha. Agora era só treinar a Sara para subir e passar a abertura do tecto. Desceu e, acompanhado de Alberto começaram a iniciar Sara. Fernando, mais forte que Alberto, subiu ao caixote dando a mão a Sara para que subisse também. Agarrou-a pelas pernas, abaixo do rabo, e elevou-a sem dificuldade até a cabeça da mulher entrar na abertura.

− Agora, coloque os braços e cotovelos por dentro e tente elevar-se.

Sara fez o que Fernando lhe dizia e não teve dificuldade em subir.

− Veja ao fundo à sua direita um velho móvel que lá está com as portas abertas. Se tiver de se esconder, é atrás do armário que se vai colocar. Talvez aí não a procurem quando virem o móvel aberto. Agora vai ter que treinar a descida pois terá de o fazer sozinha e o caixote não vai estar aqui para não dar indicação de que alguém subiu. Fernando deslocou o caixote para junto da parede e Sara começou a tentar a descida.

− Primeiro agarre-se com as mãos e passe as pernas deixando-as escorregar até ficar agarrada só com os antebraços fazendo força com os cotovelos. Isso mesmo. Agora deixe-se deslizar devagar até ficar pendurada agarrando-se só com as mãos. Está a ir muito bem. Vai ter que largar-se. O salto não é grande, talvez pouco mais de metro e meio. Deixe cair os sapatos e caia sobre as pontas dos pés flectindo as pernas mal toque o chão. Vá, coragem. Isso.

Fernando não pôde deixar de olhar para as pernas de Sara ainda muito escorreitas e bem-feitas.

Sara chegou ao chão sem problemas, desequilibrando-se apenas um pouco sendo amparada por Fernando.

− Se tiver que fazer isto, e se perder o equilíbrio, é conveniente deixar-se cair enrolando sobre um quadril. É assim que fazem os militares, principalmente os paraquedistas.

Sara teve de sacudir-se sendo ajudada por Alberto que lhe deu um beijo na face.

− Linda menina. Se eu for agarrado e tu te conseguires livrar, vai à Judiciária e procura pelo inspector Anselmo. Ele saberá o que fazer.

Os três saíram da cozinha e prepararam-se para dormir.


XI

 

Maria Clara estava à espera da sua amiga para a substituir na loja. Estava na altura certa de ir buscar os filhos à escola. Àquela hora o centro comercial tinha poucos clientes e já há uns tempos que não entrava ninguém para ver a mercadoria quanto mais para comprar.

O dia até nem tinha corrido mal e tinha feito algumas boas vendas. A sua amiga estava bastante satisfeita com ela e Maria Clara dava graças à providência por ter conseguido aquele emprego. O que ganhava, mais a pensão que continuava a receber do Alberto, era o suficiente para as despesas e ainda dava para amealhar qualquer coisita e dar uns mimos aos miúdos. Sentia a falta do seu homem e pensava constantemente nele. Como gostaria de o ter junto de si. Sabia que o Alberto estaria muito mentalmente em baixo por não poder viver com eles, principalmente com os filhos, mas a opção fora dele e Maria Clara nada poderia fazer. Se as coisas se tivessem passado agora, teria de certeza agido de outra forma. Presentemente era tarde e a vida modificara-se imenso.

Estava tão absorta nos seus pensamentos que nem deu pelo homem que se aproximou do balcão. Quando o olhou, reparou logo na arma que empunhava à frente do corpo de forma a não ser visto da porta.

− Se é dinheiro que quer, dou-lhe o pouco que tenho aqui na caixa, o produto do dia já o depositei pois vou sair agora. – Maria Clara tentava mostrar-se calma, mas as pernas tremiam-lhe por dentro.

− Não quero dinheiro nenhum. Quero-te a ti. Vamos já daqui direitos à escola dos teus filhos. Está lá um amigo meu à espera deles. Já sabemos quem são. Não faças qualquer acto mal pensado senão são eles que vão sofrer.

Maria Clara sentiu-se desfalecer. Quem seriam estes homens que a queriam a ela e aos filhos? Dinheiro não deviam querer pois ela não o tinha, nem quiseram o dinheiro da loja. Seria alguma coisa com o Alberto? Em que negócios andaria metido? Conhecia bem o seu marido para saber que não se meteria em algo ilegal. Era uma pessoa do mais honesto que conhecia e não se meteria em negócios escuros. Deveria estar em maus lençóis para a virem buscar a ela e quererem também os filhos.

Maria Clara pegou na mala e passou para o outro lado do balcão. As pernas tremiam-lhe e mal se segurava em pé. Pegou nas chaves e preparava-se para fechar a porta quando o meliante lhe disse:

− Deixa isso. Não temos tempo a perder. – Ao mesmo tempo tirou-lhe o telemóvel e deixou-o em cima do balcão.

Caminharam, ela à frente e o tipo atrás, tinha metido a arma no bolso e segurava-a por um braço encaminhando-a por entre os poucos clientes do centro.

Já cá fora, aproximaram-se de um carro tipo “jeep” com um tipo ao volante que arrancou mal entraram.

O condutor seguiu devagar até ao colégio dos miúdos onde pararam junto dos outros carros de pais que também esperavam os filhos.

− Menina. Vais até ao passeio, junto ao portão, encaminha os putos para aqui. Não tomes qualquer atitude precipitada porque estamos de olho em ti e neles. Sossega os miúdos explicando o que se passa para que não façam asneiras e que sigam as nossas instruções. Não queremos gritaria nem perguntas. Se não houver crise não haverá problemas, mas um passo em falso e poderemos tornar-nos muito duros.

Maria Clara estava a viver algo que nunca pensara vir a acontecer-lhe. Parecia-lhe tudo um sonho ou um filme que estivesse a representar. Mas os factos eram concretos e estavam a acontecer com ela bem acordada e viva.

Foi até ao portão e viu os filhos virem ao seu encontro. A empregada sorriu-lhe e ela retribuiu. Os filhos pararam junto dela, baixou-se e falou com eles tentando parecer o mais serena possível. Os miúdos ouviram-na com muita atenção e seguiram-na de mão dada até ao carro onde obedientemente entraram olhando bem os dois homens directamente nos olhos.

O rapaz notou a diferença de tamanho entre o condutor, tipo franzino, e o outro um pouco mais forte. Notou também o volume que a arma fazia, presa no cinto dentro da camisa por fora das calças. A rapariga, mais tímida, agarrou-se ao braço da mãe com mais força do que desejava. O tipo grande mandou o rapaz sentar-se junto ao condutor e sentou-se no banco de trás com a mulher e a filha. O rapaz sentiu o cheiro a suor dos dois energúmenos. Não deviam tomar banho há dias.

Seguiram pela cidade e Maria Clara notou que se dirigiam à baixa. Entraram na Mouraria e pararam junto a um portão de uma garagem que o matulão foi abrir. Entraram e levaram-nos para um gabinete feito em armação de madeira e alumínio, só com uma porta e sem janelas. No interior apenas uma mesa vazia e várias cadeiras. Na mesa deixaram uma garrafa de água.

− Vão aguardar aqui. Estaremos lá fora.

Depois de ficarem sós, Maria Clara sentou os filhos e fazendo-lhes festas na cabeça sossegando-os.

− Não sei o que se passa, mas isto deve ter a ver algo com o vosso pai. Também não sei onde está nem em que negócios anda metido. Espero que esteja bem, mas palpita-me que em breve vamos saber. Temos de ter paciência e aguardar com serenidade. Sei que é difícil de conseguir, mas vocês vão ser capazes.

O rapaz levantou-se e começou a dar a volta à pequena dependência. Olhava todos os painéis de madeira encaixada nas tiras de alumínio. Reparou que um pouco acima da sua altura, um dos painéis estava mal encaixado e uma réstia de luz entrava iluminando o pó existente. Puxou uma cadeira e espreitou. Por cima dos tejadilhos de dois carros que se encontravam na garagem, vislumbrou o tipo franzino sentado junto a uma bancada, lendo o jornal. A porta exterior estava fechada e a luz estava acesa. Pelos vidros existentes entre o telhado e as paredes entrava pouca claridade.


XII

 

Fernando não conseguia dormir. Na sala ao lado, do lá de lá da porta fechada, ouvia-se um ressonar leve de Alberto que dormia junto de Sara. Pensava, vendo-se no papel de sem-abrigo. Seria que, se acaso falhasse na vida, conseguiria abandonar a mulher e os filhos? Muito mal se sentirá um homem quando chegar à conclusão de que falhou e não consegue prover às necessidades familiares. Certamente não passará bem, mas daí a abandonar tudo e fugir… No caso de Alberto, uma vez que optou por viver sem dinheiro e na rua, acabou por fazer com que o abandono dos seus revertesse em melhores condições de vida para eles. Mas muito triste deveria estar.

As suas cogitações nocturnas foram interrompidas pelo ruído de latas a bater. Levantou-se num ápice e quase bateu em Alberto que também ouvira o alarme. Rapidamente acordaram Sara e elevaram-na até à abertura do tecto. Fernando pegou num bocado de barrote que tinha junto da parede e voltou-se a tempo de ver um tipo que avançava para ele. Deu-lhe com o barrote num joelho e homem dobrou-se com a dor. Um pontapé certeiro nos queixos derrubou o intruso que ficou semi-inconsciente. Outro indivíduo que entrara atrás lutava com Alberto conseguindo derrubá-lo. Fernando correu em seu socorro. Uma enorme pancada na nuca mergulhou-o em escuridão.

Acordou com enorme dor na cabeça. Sara estava dobrada sobre ele e colocava-lhe um pano molhado na nuca.

− Custaste a acordar. Grande pancada levaste. Os tipos levaram o Alberto. Desci depois de os ouvir sair e vi-te aqui caído. Resolvi acordar-te primeiro antes de fazer qualquer coisa. Penso que os dois poderemos fazer mais do que um só.

Fernando levantou-se, ainda a custo, e dirigiu-se para o seu cubículo. O seu saco ainda lá estava e o telemóvel também. Os tipos devem ter saído apressados e não revistaram nada. Ligou imediatamente para Anselmo.

− Está? Sou eu. Fomos atacados e levaram o Alberto. Ainda tivemos tempo de refugiar Sara. Derrubei um, mas fui atacado por trás com uma pancada na tola. Deram-me forte. Vamos para aí.

− Sim, agora é o melhor a fazer. − Disse Anselmo − Alberto ainda não accionou o localizador, não deve ter tido oportunidade. Vamos esperar que o faça em breve. Recebemos aqui na judiciária uma comunicação de uma tal Manuela, amiga e patroa da mulher do Alberto. Quando chegou à sua loja do centro comercial onde a amiga trabalha, encontrou-a aberta e sem ninguém. O telemóvel dela estava sobre o balcão, o que é muito estranho. Temeu o pior e nós também.

− Porra! Será que a apanharam? Se foi assim vão servir-se dela para pressionar Alberto. Temos de agir rápido.

− Agora temos mesmo de esperar, sem a localização é como procurar agulha em palheiro. Vem para aqui e traz a Sara, não pode ficar só.

− OK. Vou já e na mecha.

Fernando desligou e disse a Sara que apanhasse as coisas dela e o seguisse.

A mulher olhava boquiaberta para ele começando a somar dois e dois, mas nada disse. Pegou na trouxa recolhendo o pouco que estava de fora e juntou-se a Fernando.

Já no parque de estacionamento, Fernando abriu o BMW fazendo sinal a Sara para entrar. No caminho foi explicando a Sara quem era e o que estava a fazer para auxiliar a judiciária. A rapariga ouviu tudo e nada comentou mantendo-se em silêncio até chegarem à polícia.

Já no gabinete de Anselmo, depois de se abraçarem, o polícia chamou Tobias.

− Leva esta senhora e arranjem-lhe um quarto. Vai ser nossa hóspede por uns tempos, mantê-la-emos informada do que se passar. Garanto-lhe que vamos encontrar Alberto e caçar esses meliantes.

Depois de levarem Sara, Anselmo voltou-se para Fernando, dizendo:

− Pena as coisas não terem corrido tão bem como queríamos.

− Pois foi. Deram-me forte e feio e acabei por não ser muito útil para o Alberto, mas se não estivesse lá teria sido muito pior e agora vocês não sabiam o que acontecera ao homem.

− Vai a casa, sossega a Mariana, toma um banho e volta para aqui. Quando localizarmos os gajos vais connosco. Vou também preparar o Antunes para nos acompanhar. Como agora já há um crime de morte, também estou no caso.

− Então até já. Volto rápido.

Fernando chegou a casa e não estava ninguém. Mariana ainda não tinha saído da faculdade e teria de ir buscar os miúdos à escola. Tomou um banho, vestiu-se decentemente e preparava-se para sair quando chegaram.

− Então caro “Watson” [3], como correm as tuas investigações?

Fernando agarrou-a pela cintura e pregou-lhe um prolongado beijo.

− Mal, muito mal. Não encontrei ainda a heroína dos meus sonhos e vim até aqui para te levar.

Mariana libertou-se fingindo que lhe batia.

− Aldrabão! Só te sentes bem longe de mim, ainda peço o divórcio por abandono do lar. Qualquer dia os teus filhos nem te conhecem.

Francisco e Isabel olhavam a cena enternecidos. Sempre estiveram habituados à ternura do pai e da mãe que nunca lhes esconderam, erotismo e amor que sentiam um pelo outro. Correram para os dois e abraçaram-se os quatro.

− Pai. Já tínhamos saudades. Por onde andaste?

− Depois conto-vos tudo. Agora tenho de ir rapidamente até à judiciária ter com o Anselmo. Estamos a meio de uma investigação muito importante e se não actuamos agora pode ser a morte do artista. Certamente estarei cá ao jantar. Conto com isso, mas nunca se sabe. Depois comunico. Adeus aos meus três amores.

No caminho para a judiciária, Fernando já pensava no nome que iria dar ao seu próximo livro. “O Caso do Sem-abrigo” parecia-lhe bem.


XIII

 

O Toino e o Franzino entraram na Garagem com a carrinha. Lá dentro esperavam-nos o “Hércules” e Razvan sentados junto da bancada.

Abriram a porta traseira da carrinha e Alberto saiu de mãos amarradas com o casaco pelos ombros. Felizmente os bandidos tinham-lho posto pelas costas quando lhes disse que não poderia sair sem ele, uma vez que era atreito a constipações e alergias quando apanhava frio. Durante o trajecto tentara apertar o localizador, mas as mãos amarradas atrás das costas não lhe deram qualquer hipótese. Assim que tivesse oportunidade tentaria.

Os homens abriram a porta do gabinete em frente e Alberto viu a mulher e os filhos. O rapaz correu para ele, mas foi agarrado antes de poder tocar-lhe.

− Larguem o meu pai. Ele não fez nada. Deixem-no.

Alberto ficou petrificado. Os tipos tinham-nos apanhado. E agora? Seria obrigado a falar ou então fariam mal à sua família.

− Que querem de mim e dos meus? Eu nada tenho. Fiquei sem emprego, sem ocupação e com uma firma falida. Resolvi viver na rua para dar mais liberdade e possibilidade de sobrevivência à família. Deixem-nos em paz!

O Toino aproximou-se e deu-lhe um estalo com as costas da mão pondo-lhe um lábio a sangrar.

Razvan levantou-se e começando a dar passos com as mãos atrás das costas, falou:

− Não te armes em parvo. Só queremos saber onde guardaste a massa.

− Qual massa? Não sei do que falam.

Levou outro estalo na boca e desta vez mais forte. A violência do estalo fê-lo dar dois passos atrás. Maria Clara soltou um grito abafado e apertou os filhos contra si. Razvan continuou:

− Sabemos que estavas debaixo do viaduto quando atirámos com o saco para lá. O que lhe fizeste?

− Quando foi isso? Já não estou no mesmo sítio desde a semana passada. Estava a ser demasiado conhecido e não me deixavam em paz. Mudei para o outro lado da cidade. Não sei do que falam.

Razvan olhava o homem tentando perscrutar-lhe o interior. Não sabia se falava verdade, mas estava convencido de que não. Realmente não era ele que estava no local e o que estava lá morreu sem nada dizer, mas pelas perguntas que fizeram por ali, o sem-abrigo intelectual ainda estaria naquele lugar quando do assalto. Tinha que ser ele. Continuou, com aquele sotaque meio afrancesado:

− Sabemos que eras tu que lá estavas. Apanhaste a massa e piraste-te. Temos de dar conta dela aos tipos acima de nós para quem trabalhamos. Se não falares, a tua mulher e filhos vão sofrer.

A cabeça de Alberto fervilhava com os pensamentos a cem à hora. Tinha de lhes dar qualquer coisa senão os seus seriam molestados e ele não aguentaria isso. Tinha urgentemente de encontrar uma solução para premir o localizador, depois seria uma questão de tempo até a polícia aparecer. Lá fora não ficara ninguém, os salafrários estavam convencidos que o esconderijo era seguro e não tomaram providências, não seria difícil libertarem-nos a polícia tinha métodos modernos de actuação e certamente tomariam providencias para não ferir ninguém.

Resolveu mudar de táctica e tomou uma decisão.

− Bem. Sei quando estou a perder. Escondi a massa num cofre da estação do Rossio, mas a chave está na casa onde me apanharam. Vou levá-los lá, mas gostaria primeiro de estar só com a minha mulher e filhos. Dêem-me meia hora sozinho com eles.

− Tens dez minutos. Entra para o gabinete.

Alberto virou-se para que lhe tirassem as cordas dos pulsos. O Franzino olhou para Razvan e este fez que sim com a cabeça.

− Vistam-me o casaco. Estou com frio e se apanho uma constipação já não consigo sair daqui. Sou alérgico e chego a desmaiar.

Depois de solto, Alberto entrou no gabinete levando a mulher e os filhos à sua frente. Entretanto apertara o localizador.

Depois da porta fechada fez sinal de silêncio com o dedo à frente da boca e abraçou Maria Clara.

− Vamos ficar aqui até nos virem buscar. – Sussurrou. − Preciso que nessa altura simules um ataque de histerismo e faças uma cena verdadeiramente espectacular e convincente. Acabei de dar um sinal para a polícia e temos de lhes dar tempo. Se nos levam daqui já será mais difícil para os bófias nos salvarem.

Já lá ia um quarto de hora quando abriram a porta e levaram Alberto à força. Maria Clara atirou-se a eles gritando e chorando. Quando a empurraram, deixou-se cair e simulou um ataque.

− Que fazemos? Esta gaja ainda nos morre para aqui e estamos metidos em mais sarilhos. – Disse o Franzino.

Razvan não se deixou levar por aquela cena.

− Deixem-na. Isso passa-lhe.

Meteram Alberto na carrinha com o “Hércules” ao volante. Razvan empurrou Alberto para o meio e fechou a porta.

− Os teus ficam aqui com o “Franzino” e o Toino. Se tentares alguma coisa eles têm ordens para tratar deles um de cada vez e, não penses que é balela pois já o fizemos mais do que uma vez e mais uma menos uma não faz qualquer diferença.

Alberto estremeceu. Se acontecesse alguma coisa a Sara e aos miúdos nunca se perdoaria. Sabia que o localizador estaria a emitir e certamente iriam segui-los. Teria de ganhar tempo.

Chegaram à viela e Alberto entrou em casa seguido pelos dois homens que deixaram a carrinha a trabalhar.

Já dentro de casa foi até à dependência onde tinham passado a noite. Ajoelhando-se junto do rodapé, fingiu que estava a procurar. Percorreu toda a sala à volta e depois começou a levantar os cartões onde dormiram. Voltou ao rodapé e tornou a fingir que procurava.

− Então essa chave aparece ou não? – Disse o Toino já agastado

− Não a encontro. Tinha-a colocado aqui entre o rodapé e a parede, mas não está cá. Naturalmente devo tê-la metido no bolso e perdi-a. Agora vai ser uma chatice. Sei que o cofre era o nº 60, se formos ao chefe da estação ele certamente poderá dar ordem para o abrir.

− Nem pensar. Isso dará muito nas vistas e poderá levantar suspeitas. Além do mais vai ser preciso preencher papelada e não queremos deixar rastos. Aqui o “Hércules” é perito em fechaduras e tratará disso sem dar nas vistas. Vamos.

Arrastaram Alberto e meteram-se na carrinha direitos ao Rossio.

Alberto esperava que a bófia aparecesse a tempo. Caso contrário…


XIV

 

Maria Clara e os miúdos estavam de novo encerrados no gabinete. O pequeno Francisco, em cima da cadeira, espreitava os dois meliantes que tinham ficado de guarda. Jogavam placidamente às cartas. Um ruído leve, acima das suas cabeças, fê-lo olhar para a parede contrária. Um homem tentava cortar o vidro abaixo do telhado, com um diamante de vidraceiro. Dali não seriam certamente os bandidos.

Assim que uma abertura lhe permitiu a passagem, Fernando meteu a cabeça e sorrindo fez-lhes sinal de silêncio, depois, mostrando uma destreza de ginasta, segurou-se a uma viga, pendurou-se e deixou-se cair sem ruído.

Sussurrando, informou-os de que a polícia iria entrar pela porta da frente e depois estariam livres.

Maria Clara perguntou por Alberto. Fernando sossegou-a. Estavam a tratar do assunto e dentro da situação.

Ouviu-se um estrondo e a porta ondulada da garagem saltou para cima dos carros. Uns dez agentes, aproveitando a surpresa, entraram de armas aperradas e caíram em cima do Franzino que tentava tirar a arma do cós das calças. O Toino correu para a porta do gabinete e abriu-a, mas foi recebido com um tremendo murro de Fernando que o atirou inanimado para os braços de um agente.

− Boa Sr. Fernando vejo que além de ginasta também é bom no boxe. O Inspector Anselmo é um homem de sorte por ter um amigo assim que o ajuda.

Fernando sorriu.

− Procuro manter-me em forma, ajudar os amigos é o meu lema. A propósito, onde pára o Inspector?

− Vai atrás dos tipos que levam o Alberto, devem estar a chegar ao local onde pensam prendê-los. Nós somos da intervenção da PSP que foi por ele requisitada. Já o conhecemos bem e gostamos de trabalhar em conjunto.

− Ainda bem. Vou levar a senhora e os meninos à judiciária e o Inspector que me ligue e me indique em que local estão. Espero chegar a tempo.

Anselmo seguia os bandidos três carros atrás do deles. Acompanhavam-no Tobias e dois agentes da brigada de capturas. Numa carinha atrás, sem qualquer identificação, seguiam 6 agentes da brigada anticrime da PSP.

A carrinha dos bandidos estacionou numa abertura, meio no local próprio, meio na passadeira de peões. Pelos vistos devia ser carro roubado pois não se importavam com as multas. Os dois homens seguiram com Alberto no meio e dirigiram-se à estação até ao sítio dos cofres. Pararam junto ao nº 60 e o Toino tirou do bolso um molho de chaves e gazuas. Razvan ficou com Alberto e olhava de soslaio para todos os lados. Não havia, felizmente, grande movimento na área e os poucos passantes nem olhavam para quem estava. Alberto dizia mal da sua vida. Os tipos iam abrir o cofre e depressa verificariam que tudo não passara de mentira. Esperava que, entretanto, a polícia já tivesse libertado os seus. Se morresse também não faria grande falta, mas Maria Clara ficaria pior com a pensão diminuída.

Ouviu-se uma voz num megafone: “Polícia! Fiquem onde estão com as mãos no ar e não tentem qualquer movimento. Estão cercados!”

Razvan que, entretanto, se voltara para observar a actividade do Toino, rodou e tentou levar a mão à arma. Alberto atirou-se para o chão. Ouviu-se um único tiro. Razvan deu meia volta atirado ao chão pelo choque da bala. Acertaram-lhe num ombro fazendo saltar a pistola que segurava. Toino mantinha as mãos no ar e olhava boquiaberto para Razvan. Donde teriam saído os bófias? Não dera por nada.

Depois dos bandidos manietados, Anselmo foi ter com Alberto.

− Olá. Parece que a cavalaria, desta vez, chegou a tempo. A sua mulher e filhos estão na judiciária à sua espera. Alberto começou a chorar e deixou que o Inspector lhe passasse um braço pelos ombros.

Uns paramédicos de uma ambulância do INEM chegaram e cuidaram do ferimento de Razvan. Dois polícias acompanharam-no na ambulância. Toino, devidamente manietado, foi conduzido pelos agentes da PSP. Lá fora um dos PSP tomou conta da carrinha.

Alberto seguiu no carro com Anselmo.

Tobias conduzia sorridente.

− Chefe. Esta operação foi um êxito.

− Pois Tobias, até aqui tudo correu bem, mas ainda temos muito que trabalhar. Estes não são os peixes graúdos. Parece-me que haverá gente importante atrás de tudo isto. O dinheiro roubado era “massa” que estava para ser transportada para o banco de Portugal. Só alguém graúdo poderia estar a par desta operação. Teremos de apertar estes gajos até descobrirmos. Não vai ser fácil. Normalmente só um conhece quem está acima e mesmo esse pode não ser o cabecilha. Às vezes até ninguém os conhece. A nós só nos cabe saber quem despachou o vagabundo lá no viaduto. Para o Antunes ainda vai haver muito trabalho. Nós dar-lhe-emos a nossa ajuda possível.


XV

 

Três meses depois Anselmo e Fernando almoçavam no restaurante com as respectivas companheiras.

− Os vossos miúdos, onde estão?

− Com os Avós. – Respondeu Mariana. – Passam lá o fim-de-semana para matarem saudades e brincarem com os cachorros como de costume. Aqueles cães são os companheiros de brincadeiras lá na quinta.

O caso do sem-abrigo veio à baila.

− Então como é que estão as coisas sobre o assalto ao banco? Já se sabe quem foram os mandantes? – Perguntou Fernando.

− Ainda não. O julgamento dos quatro meliantes é já para a semana e os tipos ainda estão em prisão preventiva. O “Hércules” vai responder pela autoria material do crime do outro sem-abrigo e o Toino por tentativa de homicídio na pessoa do segurança do banco. Razvan responde pela responsabilidade dos actos pois chefiava o grupo. Foram todos acusados de associação criminosa. O Franzino é o que tem menos acusações. É um pobre diabo que só faz o que lhe mandam e mal.

− E o que disseram sobre os mandantes?

− Nada. Continuam a dizer que a ideia foi deles. Pensamos, ou por outra, estamos certos, que mentem. Vamos esperar pelas sentenças. Depois poderemos jogar com a oferta de alguns perdões se contarem a verdade. Normalmente essa táctica dá frutos.

− Hum…! Não me cheira. Estes romenos são duros de roer e não dão facilmente com a língua nos dentes.

− Vamos a ver. – Disse Anselmo não muito convicto.

− E o Alberto? Perguntou Ana. – Voltou para casa?

− Voltou. A mulher conseguiu convencê-lo. Parece que se ofereceu para lhe comprar um computador com as suas poucas economias. O tipo é um bom informático e tem conseguido arranjar uns trabalhitos através da Internet. Está a ter sucesso e a ganhar uns dinheiritos. Já pagou o computador à mulher e qualquer dia tem de arranjar uns tipos para trabalharem com ele. Já não dá vazão às encomendas.

As duas mulheres sorriam de satisfação. Nada melhor do que um caso de amor que acabe em bem.

− E a Sara? Que lhe aconteceu? – Perguntou Mariana?

− A Sara, assim que soube que a família de Alberto estava na judiciária à espera dele, pediu para se retirar e voltou para as ruas. Deixou-lhe apenas o livro que estava a ler e Alberto lhe emprestara. Alberto contou-me em segredo que mantiveram uma curta relação, mas nada ia contar à mulher. Seria muito doloroso para ela. Maria Clara também não lhe fez perguntas sobre o tempo que estivera fora. Achou que não tinha o direito de o traumatizar com isso. Enfim, parece que tudo acabou em bem. Para eles, claro, porque para nós ainda estamos a meio. Temos que chegar ao fim disto.

Acabando de tomar os cafés, pediram a conta pagando a meias. Tinham decidido que entre os quatro seria assim. Como o faziam muitas vezes, não dava jeito nenhum hoje pagas tu amanhã pago eu.

Despediram-se e cada casal foi para sua casa. Já no carro, Fernando e Mariana continuaram a falar do caso.

− Vê lá tu, Fernando, como são as coisas. Um homem anda uns meses fora de casa e tem de se envolver logo com outra, naturalmente a mulher, que foi abandonada, não se envolveu com ninguém.

− Não o sabemos. – Disse Fernando. – Mas é bem provável que não. As mulheres são bem mais fortes. Suportam muito melhor a solidão e não se deixam levar com facilidade. Já os homens, quando sós, ficam completamente perdidos, como garotos abandonados na rua. Se aparece alguém que os acarinhe, facilmente se deixam envolver e o sexo surge sem que vejam nisso traição. Estou quase ciente que Alberto nunca deixou de gostar da mulher. Sara foi um apoio, um porto de abrigo.

− Pois meu descarado. Naturalmente fazias o mesmo, meu sem-vergonha.

− Eu? Nunca te deixarei. Vais ter que me aturar até ser carqueja e enrugado. – Disse Fernando metendo-lhe a mão na perna com bastante à mostra, pelo subido da saia quando se sentara.

− Está quieto, meu safardana. Vocês são todos farinha do mesmo saco.

Fernando encostou o carro junto ao passeio e abraçou a mulher beijando-lhe os lábios com sofreguidão.

− Deixa-me chegar a casa e já vais ver com que mulher vou fazer amor.

Mariana deixou-se levar agarrando-o por trás do pescoço e meteu-lhe, despudoradamente, uma mão entre as pernas.

Em casa, entraram a olhar ternamente um para o outro, mas com uma centelha de erotismo nos olhos, despiram-se, foram para a casa de banho e depois de lavados caíram na cama abraçados num longo beijo.

Entregaram-se completamente, sem tabus nem restrições. Sem as crianças em casa podiam dar largas a todos os excessos. Aproveitaram. Duas horas depois, exaustos, deram um beijo apagando a luz.


XVI

 

Fernando, aproveitando o fim-de-semana, levantou-se cedo deixando Mariana a dormir. Depois de tomar banho, vestiu um fato de treino e foi dar uma volta pela cidade. Gostava de deambular pelas ruas olhando as pessoas com quem se cruzava. Foi assim que conseguiu a maioria das ideias que complementaram os livros que escrevia. Sabia que não tinha grande talento para a literatura e como tal, uma vez que gostava de escrever, dedicara-se ao romance policial. O reencontro com o seu amigo Anselmo, companheiro do liceu, agora inspector da judiciária, proporcionara-lhe ter vivido e continuar a viver casos reais. Cogitava na vida e no porquê das pessoas enveredarem pelo caminho do mal e da podridão. Não aceitava, mas compreendia que o homem pudesse enveredar, muitas vezes pelo caminho da violência. O Ciúme, os desencontros amorosos, as traições, as palavras amargas, poderão fazer um ser humano exorbitar e entrar em violência verbal e até física, mas viver do mal dos outros? Assenhorearem-se do alheio? Matar por prazer? Violar? Maltratar crianças? Como era possível? Nestas alturas vinha-lhe à cabeça que a maioria dos indivíduos que assim procediam eram os chamados tementes a deus. Cometiam os maiores pecados e depois corriam até a um padre confessando-se e obtendo uma absolvição que os consolava, até uma próxima vez.

Para ele, a ideia de deus era inconcebível, tão inconcebível como o fantasma da sua avó andar lá por casa a tomar conta de tudo e todos programando a vida deles. A maioria das pessoas crê num deus pessoal que tudo vê, tudo controla, tudo programa. Alguns intelectuais, não acreditando nisso, acham que ao homem foi dado o livre arbítrio, mas que existirá um deus cósmico, muito acima dos humanos, que com a sua batuta rege os princípios universais. Os maçónicos, normalmente anticlericais, chamam-lhe o grande arquitecto. Carl Sagan diz, “isto é um mundo de idiotas”. Ao conhecer-se cada vez mais o universo, ficamos com consciência que a terra é um grão de areia no cosmos. Por que raio havemos nós de ter um deus? O que faz ele nos planetas desabitados? O que fez ele durante os milhares de milhões de anos em que não houve seres humanos? Pois! A mente humana tem muita força e cria deuses para se poderem perpetuar além da morte. Não aceitando o fim de tudo, criam uma outra vida obra de deuses. Estava farto de dizer isto, mas tirando a família e meia dúzia de amigos, os outros olhavam-no como se do demónio em pessoa se tratasse.

Parou a observar um melro que transportava matérias de construção para o seu ninho. Aqui estava a natureza e as suas leis. Todos os seres tratavam da sua reprodução e não precisavam de deus para nada. Só o homem, na sua ignorância, o criara.

Assobiando baixinho reparou que já estava bastante longe de casa. Mariana já devia ter acordado e tinha que tomar o pequeno-almoço com ela. Estugou o passo, mas o seu cérebro continuou a pensar.

Este último caso do sem-abrigo ainda não terminara. Havia mandantes e certamente grandes tubarões. Será que lhes conseguiriam chegar? Lembrou-se que, durante os interrogatórios, o “Hércules” demonstrara alguma animosidade contra o Razvan. Este era o chefe do pequeno bando, o estrangeiro com a mania de em tudo mandar, aquele que acha que tudo sabe e é o mais inteligente. O Toino e o Franzino eram tipos menores, pouco inteligentes e incultos. Este “Hércules” era mais vivo, esperto e senhor de alguma sabedoria. Pensou; “vou telefonar ao Anselmo para explorarmos esta rivalidade”. Ligou o telemóvel.

− Está, Anselmo? Olá rapaz. Andava aqui a fazer um pouco de caminhada e lembrei-me de saber se por acaso já exploraram a rivalidade existente entre o Razvan e o “Hércules”?

− Como sabias que eu estava por aqui? Apesar de ser domingo dei cá um salto para pôr papéis em ordem Estás-me a sair cada vez mais um “Watson” precioso. Quanto ao que me perguntas, ainda não o fizemos, mas já tinha pensado nisso. Segunda-feira é o julgamento. Após as sentenças vamos apertar com eles. Talvez a promessa de redução de penas dê resultado, mas não me cheira muito, o Razvan é macaco velho e não acredito que tenha posto os outros ao corrente do nome do ou dos mandantes máximos. Até talvez nem ele os conheça. Vamos a ver. Depois da faculdade passa pela “judite”. Conversaremos sobre o assunto.

Após desligar, Anselmo pensou que teria de falar ao Antunes.

Segunda-feira logo de manhã, bateu à porta do gabinete do seu colega e entrou.

− Olá rapaz, como vai o caso do assalto ao banco? Tens novos indícios ou está tudo na mesma?

− É melhor quando as investigações andam cá por baixo. Tenho mais êxito junto dos bandidos de meia tijela, do que quando nos metemos com tubarões da alta. Aí tudo empanca. Refugiam-se atrás de todas as influências, inclusive das leis. Estas já são elaboradas à medida deles, e como há dinheiro para pagar a bons advogados, não lhes conseguimos chegar. Falei com todo o mundo lá do banco. Informei-os que só dali podia ter saído a informação do transporte daquele dinheiro. Deixaram-me interrogar toda a gente, mas nada deu resultado. Havia montes de gente a saber do facto. Desde directores a chefes da segurança e guardas. Agradeceram muito à judiciária o ter apanhado a massa tão rapidamente. Informei-os que fora um tipo, que nada tinha a ver connosco que, devido à sua honestidade, nos entregara a massa que os bandidos abandonaram quando foram perseguidos. Parece que há umas alvíssaras para o tipo. Acho que devias informar o tal Alberto para passar por lá.

− Isso são óptimas notícias, se há tipo que merece esse é um deles. Assim que puder passo por lá. Quanto é o prémio?

− Julgo que 1%. Devem ser cerca de uns 30000 euros, o que já vai ajudar bastante o rapaz a refazer a vida.

− Boa. Vou passar lá hoje ao fim do dia. Talvez até o acompanhe ao banco, se tu não quiseres ir, claro.

− Ok. Vai tu com o tipo. Eu estou farto deles.

− Então vou. Depois conto. Até logo ou até amanhã.


XVII

 

Alberto acabou o que estava a fazer e desligou o computador. Pensava na sua mulher e como fizera bem em regressar a casa. Aquela aventura fizera-o reconsiderar. Por pior que as coisas parecessem, deveriam enfrentar juntos as adversidades. Maria Clara era uma mulher fantástica. Soubera reagir ao mau momento que passara após o seu abandono. Agora ajudara-o e não fizera perguntas. Aquele interregno seria para esquecer. Pensou em Sara. Onde estaria? Continuaria lá na casa abandonada? A sua relação com ela fora uma espécie de prémio de consolação, mas não deixara marcas. De qualquer modo haveria, um dia destes, de a procurar.

O ter voltado também para junto dos filhos foi como acabar com um sufoco. Era como naufragar e ter conseguido atingir a praia. Os miúdos também não cabiam em si de contentes e rodeavam-no de atenção e carinhos

Resolveu sair e passar no centro comercial. Almoçaria com Maria Clara.

Tocou o telefone e Alberto atendeu.

− Está? É o Sr. Engenheiro Alberto Moura?

− O próprio.

− Olá Alberto, daqui Anselmo.

− Ah! Inspector. Como vai?

− Tudo bem, precisava falar consigo. Posso passar aí em casa lá pelas 18H30?

− Temos muito gosto. Se poder traga o Fernando. Gostava de o voltar a ver. Além de meu colega, foi um excelente guarda-costas e devo-lhe muito.

− Vou ligar-lhe. Se ele puder acho que também fará muito gosto em revê-lo. Então até às 18H30.

− Cá os esperarei. Até logo.

Anselmo e Fernando tocaram à porta de Alberto eram precisamente 18H30. Maria Clara recebeu-os efusivamente beijando os dois homens.

− Os meus dois salvadores. – Uma lágrima brilhava-lhe no canto dos olhos.

Alberto apareceu em seguida abraçando-os comovido. Os filhos do casal, ligeiramente atrás, esperavam a sua vez de cumprimentarem os recém-chegados.

− Vamos sentar-nos e tomar um aperitivo. O que é que bebem? – Perguntou Alberto.

Levaram-nos para uma salinha modesta, mas decorada com muito bom gosto. Maria Clara serviu as bebidas numa mesa de centro frente a um “maple” duplo, onde os convidados se sentaram. Alberto ocupou um “maple” individual e Maria Clara puxou para junto deles, um cadeirão de braços.

Anselmo iniciou a conversação; − Então como correm as coisas? Contente pelo retorno a casa?

− Olhem, amigos, se tudo se tivesse passado agora, nunca faria o que fiz. Cheguei à conclusão que as dificuldades são para passar a dois. Foi o medo de deixar mal os meus, que me levou àquele desespero. Agora as coisas estão a resolver-se graças aqui à minha doce Maria Clara.

Ao dizer isto, Alberto tomou a mão da mulher e beijou-a, deixando-a sem jeito e ligeiramente enrubescida.

− Ainda bem que tudo acabou da melhor forma – disse Anselmo. – Temos uma enorme novidade a dar-lhes. Vão receber um prémio do banco. É de 1% sobre o montante recuperado, o que ainda dará uma boa maquia. Penso que, não sendo uma fortuna, dará para refazerem a vossa vida.

Alberto e Maria Clara ficaram com cara de espanto e nada conseguiam dizer.

− Então? – Exclamou Fernando. – Não precisam ficar assim. É um valor que premeia a honestidade. É um exemplo para outros. Nos tempos que correm muito poucos, ou mesmo ninguém, fariam o mesmo.

− Só fiz o que achei justo. Confesso que a ideia de ficar com o dinheiro me passou pela cabeça, mas depois a consciência não me deixou.

− Ainda bem que não o fizeste. – Referiu Maria Clara. – Seria difícil viver com esse peso. Além de que seríamos perseguidos por esses bandidos e não poderíamos recorrer à polícia. Não teríamos estes amigos para nos defender.

Anselmo continuou. − O banco vai marcar um dia para fazerem a entrega do cheque. Eu e Fernando gostaríamos de estar presentes. Vão estar reunidos todos os administradores e directores e, profissionalmente, terei todo o interesse em observá-los. Talvez algum deixe escapar algo que nos dê qualquer indicação importante.

− Porquê? Pensam que alguém do banco estará por detrás de tudo isto?

− Não pensamos, temos a certeza. Só que não sabemos se é alguém graúdo ou miúdo. Cá para mim deve ser um dos grandes. Quando receber a comunicação do dia e hora do acto, entre em contacto. Depois seguiremos juntos. Penso que deve ir só. Não convém misturar nisto a sua mulher. Não podemos dispersar a nossa atenção.

− Bem, vamos acabar os nossos “whiskys” e depois vamos embora. – disse Fernando. – Tenho a Mariana e os miúdos à espera para jantar.

− Pensei que quisessem jantar connosco. – Disse Maria Clara. – Fiz um rolo de carne que dá para todos. Não querem ficar?

− Obrigadíssimo. Teríamos muito gosto, mas não vínhamos a contar e as nossas mulheres esperam-nos em casa. Teremos outra oportunidade.

− Então vai ficar já assente. – Disse Alberto. – Depois de receber o prémio convido-vos, e as vossas lindas mulheres para jantarmos num restaurante que escolherei. Combinado?

− Claro que aceitaremos. E agora vamos.

Levantaram-se e despediram-se. Alberto chamou os garotos que educadamente vieram até à porta despedirem-se também.

Já na rua, os dois amigos comentavam que tinham tido a sorte de conhecer uma excelente família. Iria ser bom continuar com aquela amizade.


XVIII

 

Razvan, na sua cela, pensava apenas na oportunidade de evasão. Não tinha saído da Roménia para vir acabar os seus dias numa prisão portuguesa.

Lá, na terra natal, os tempos tinham-lhe sido adversos. Os seus pais nunca conseguiram passar da cepa torta e viveram quase em miséria permanente. Apesar das propagandas de Nicolae Ceausescu, a Roménia nunca passou de um país atrasado e pobre governado por uma ditadura. Lembrava-se de querer trabalhar e não ter onde. Saíra da escola e começara a roubar para levar alguma coisa para casa. Vira a sua irmã prostituir-se para conseguir comer e ajudar os pais. Resolvera sair de lá e ainda bem que o fizera. Aquela colagem à União Soviética não trouxera as benesses que tinham sido apregoadas. Em Lisboa as coisas tinham corrido bem até ali. Agora estava preso e ninguém se estava a interessar por ele. O mandante estava a fugir às suas responsabilidades. Contratara-o, tinha de lhe dar apoio. Ai dele que não o fizesse. Levaria o tempo que fosse preciso para se vingar. O tipo talvez pensasse que ele não fosse capaz de o identificar. Lembrava-se perfeitamente de quem o foi contratar. Depois das coisas acordadas seguira-o e identificara a pessoa com quem fora ter. Era um director bem considerado no banco, pelo menos assim parecia. O tipo deveria ter ânsias de enriquecimento rápido e planeara aquele assalto com bastante pormenor, mas as coisas nunca são exactamente como se pensam. Às vezes, ou quase sempre, há imponderáveis. Não tivera tempo de arregimentar pessoal bem “credenciado”. Os tipos que conseguira reunir eram fracalhotes de cabeça e viu-se o que deu. Se não tem havido aquele tiro, não se tinha dado a confusão e não haveria a oportunidade, como se verificou, de terem accionado o alarme. Logo haveriam de ter atirado o maldito saco do dinheiro para cima de um sem-abrigo intelectual. Mas aquilo tudo não ficaria por ali. Tinha de fugir e o melhor era começar a engendrar um plano de fuga. Sabia que o “Hércules” também estava preso naquela ala. Não confiava muito nele pois via-se que o gajo tinha a “pedra no sapato” quanto à sua liderança, mas não tinha outro aliado e sempre era melhor contar com um tipo esperto e inteligente, além de que era forte e desenrascado. Contaria com ele para a fuga. Os outros dois eram atrasados mentais, mais valia nada lhes dizer. Na primeira oportunidade contactaria com o matulão. Dormiria sobre o assunto. De manhã tomaria uma atitude. Muito cedo chamaram-no para interrogatório. No corredor viu o “Hércules” a entrar para o gabinete contíguo. Na sala dos interrogatórios estava o inspector Antunes. Não lhes diria nada. Continuaria a manter a versão de que o assalto tinha sido da sua iniciativa. Hora e meia depois, como se não alterasse o seu depoimento, levaram-no para outra sala onde o deixaram só. Pouco depois introduziram lá o “Hércules” e voltaram a sair. Razvan conhecia a técnica. Juntavam os dois para que começassem a conversar e deixassem escapar alguma coisa. Razvan sentou-se de costas para o vidro que ele sabia ser um espelho transparente. Com os dedos fez sinal ao “Hércules” que percebeu a mensagem. Falaram de trivialidades, mas “Hércules” percebeu de que teriam de voltar a falar e de assuntos sérios. Após uns trinta minutos vieram busca-los e levaram-nos para as suas celas. À noite Razvan foi transferido para a cela do “Hércules”. Lá estava o processo, ficariam juntos até se denunciarem. Razvan fez uma inspecção rápida à cela e certificou-se que não havia espelhos, mas sabia que certamente estariam lá uma ou duas câmaras escondidas. Haveria de dar com elas e eliminá-las-ia.


XIX

 

O Dr. Carlos Vidal era um homem na casa dos cinquentas e tal anos, alto, desembaraçado, cabelo todo branco e olhar vivo. No banco, como director, era apreciado pela administração pela sua competência, mas não muito querido pelo pessoal. Demasiado austero, não se ligava em demasia aos empregados e falava-lhes com alguma altivez. Para algumas empregadas, principalmente para as mais vistosas era ele bem atencioso roçando as raias do atiradiço.

Sentado na secretária de mogno, olhava fixamente o computador procurando as notícias na Net. Já há uns dias que não falavam do roubo e isso preocupava-o. Como director responsável pela transferência do dinheiro para aquela agência, sabia que estava na mira dos detectives da PJ. Os tipos eram espertos e tinham muita experiência. Teria de ter muito cuidado para não se trair perante eles. Tinha de mostrar muito tacto. O facto de não ter tratado directamente com os executantes, dava-lhe uma certa segurança e o seu homem de confiança nunca o trairia. Carlos Vidal estava perto da reforma e pensava sair aos sessenta. Levaria para casa uma boa pensão, mas muito pouco para as suas ambições. Contava com o dinheiro roubado para a sua velhice sem problemas e com uma boa vida. O divórcio iria deixá-lo quase falido. A sua mulher, como boa advogada, certamente aproveitaria as suas traições para tramar-lhe a vida. Iria exigir-lhe couro e cabelo e não teria outro remédio senão ceder. A filha apoiava-a, iria ficar só. Agora, pensava no azar que tivera. O seu fiel Abelardo falhara na contratação do pessoal. Foram completamente ineptos e perderam a massa. Teria de dar outro golpe. Da próxima vez não poderiam falhar.

Levantou-se e dirigiu-se ao gabinete contíguo onde a sua secretária punha os arquivos em ordem;

−Joana faça o favor de ligar ao Presidente do Conselho de Administração e pergunte-lhe se me pode receber o mais depressa possível.

Carlos Vidal poisou a cabeça nas mãos e reviu toda a sua vida. Fizera tudo ao contrário. Chegara a um bom lugar no banco e ganhava bem, mas não chegara para a mulher por quem se apaixonou. Bela, elegante, de boas famílias, habituada a tudo o que era bom sem nunca ter tido faltas na vida. Cedo começou a pedir-lhe dinheiro além do que lhe colocava na conta à disposição. E não era tão pouco como isso. Mas nunca chegava. De nada valia falar com ela e dizer-lhe que estavam a gastar em demasia. – “Sabes que estou habituada a ter uma boa vida, não casei com um bancário bem colocado para passar de cavalo para burro”. Carlos não conseguia dizer-lhe não, o dinheiro ia saindo mais do que entrava e em breve começaram as dívidas. A vivenda, os três carros, as férias no hotel do Algarve, a filha já a querer vestir como a mãe e estimulada por esta, gastava sem restrições. Alguns empréstimos foram suprindo as faltas quando as reservas acabaram. Mas tinha de estoirar. Pensara muito antes de se meter no golpe que preparara, mas, entretanto, Laura pedira o divórcio. Já o apanhara em escapadelas. As mulheres apanham os homens pelo “cheiro”. Cheira-lhes e pronto. Carlos notara-a esquisita e esquiva já há uns tempos. Na cama já não se encontravam com tanta frequência e percebia-se um afastamento. Mandara segui-la e foi confrontado com a realidade. Laura arranjara um amante. Soubera tudo sobre o outro. Mais novo dois anos do que ela, era filho de um milionário com lugar nos conselhos de administração de várias firmas da indústria eléctrica pesada. O pior de tudo é que Laura aproximara a filha do outro. Saíam juntos e pelo que lhe disseram a rapariga parecia dar-se muito bem com o tipo. Confrontara Laura com a verdade e ela não negou. Friamente pediu o divórcio e disse-lhe que a filha ficaria a viver com ela. Prepara tudo muito bem. Carlos Vidal portou-se com dignidade. Só disse: – “Tudo bem, mas têm que sair já hoje”.

Quando Joana entrou para lhe dizer que o chefe máximo estava pronto para o receber, levantou-se de um salto sem saber muito bem onde estava. Deixara-se levar pelas suas cogitações.

Entrou no gabinete do presidente do conselho de administração sem bater à porta. Monteiro Castro, banqueiro desde que lhe cresceram os dentes, era seu amigo e sempre o tratara quase como filho.

– “Olá Carlos! Que te traz por aqui. Estás com má cara. Que se passa?”

Carlos Vidal sentou-se e, lentamente, foi pondo o amigo ao corrente do que se estava a passar com a sua família. Quando acabou Monteiro Castro estava de sobrolho franzido.

– “Achas que tem mesmo de ser assim? Não poderá haver uma reconciliação?

– “Depois de tudo isto já não é possível. Nunca supus a Laura capaz de me trair. Nós nunca consideramos as nossas como traições, já as delas… Agora não a suportaria mais. O tipo é bastante mais novo do que eu e tem montes de dinheiro. É um “Bon vivant” e dará à Laura tudo aquilo de que ela gosta, e o pior é que já me conquistou a filha também”

– “O que pensas fazer?”

– “Em primeiro lugar antecipar as minhas férias. Preciso de um tempo só para assentar a cabeça e começar a colocar as ideias em fila. Foi esse o motivo principal da minha vinda aqui. O serviço está em ordem e não há, no mês mais próximo, nenhuma operação que necessite a minha presença. Os assuntos correntes podem muito bem ser geridos pelo meu adjunto. “

– “Ok. Vai lá. Quanto tempo precisas?”

– “Quinze dias chegam.”

– “Correcto. Trata de ti.”

Monteiro Castro levantou-se e abraçou Carlos levando-o até à porta. Já no gabinete, Carlos Vidal tirou umas coisas da gaveta da secretária e deu as últimas instruções a Joana. – “Chame o meu adjunto. Tenho de lhe dar uns recados pois vou estar quinze dias de férias.”

Já no carro Carlos Vidal pensava no que iria fazer. Tinha de ter cuidado pois o assalto não estaria esquecido e a “Judite” andaria em cima do assunto. Pensou que tinha várias hipóteses:

1ª – Sair do país. O Brasil seria uma boa opção, mas para isso precisava de dinheiro.

2ª – Organizar outro assalto e partir depois.

3ª – Comprar uma espingarda, dar um tiro na cabeça de Laura e suicidar-se em seguida. Pois! E a filha?

Deixou-se de pensamentos estúpidos. Matar porquê e para quê? Eles que vivessem como lhes apetecesse. Não se deixaria tomar pela raiva. Ainda era novo e podia muito bem refazer todo o seu modo de vida. A porra do dinheiro é que estava ali a estragar tudo. Tinha que urgentemente falar com Abelardo.


XX

 

Razvan e o Hercules estavam dentro de um carro roubado e aguardavam em silêncio. Após terem feito a ligação directa, limitaram-se a percorrer duas ruas e estacionaram num pequeno parque junto a mais umas dez viaturas. Praticamente estavam na área da penitenciária. Ninguém suspeitaria que estariam tão perto. Aguardariam pela manhã. Por essa altura as buscas já estariam bem longe deles. Só que não poderiam recorrer às suas casas ou de amigos conhecidos para se abrigarem. Certamente seria nesses locais onde incidiriam mais as buscas. Razvan interrompeu o silêncio e disse em voz baixa:

– Sei quem foi o mandante do nosso frustrado assalto. Pela manhã iremos para junto da casa dele e apanhamo-lo. Vamos pô-lo contra a parede. Ou nos dá segurança e alojamento ou tratamos-lhe da saúde.

Enquanto esperavam pela madrugada, Razvan foi pondo o companheiro ao corrente de quem era Carlos Vidal. Havia também que tratar de que o seu intermediário, Abelardo, se mantivesse caladinho e cumprisse apenas ordens do seu “patrão”.

Carlos Vidal saiu de casa em fato de treino e preparava-se para começar a correr quando os dois homens o ladearam.

– Olá Dr. Não se assuste e ninguém lhe fará mal. Se não se importa entre aqui neste carro pois temos de conversar um pouco e nós não podemos andar por aí com estes fatos de presidiários, que não sendo às riscas, dão um bocado nas vistas.

Rapidamente Carlos Vidal associou os homens ao assalto. Afinal Abelardo não fora assim tão eficiente e fora localizado. Agora não haveria outro remédio senão ceder. Entrou passivamente no automóvel e disse:

– Estou à vossa disposição. Sou todo ouvidos.

– Pois é Dr. aquilo correu mal e fomos dar com os costados na cadeia. Ninguém abriu o bico e pode estar descansado. Aliás só eu sabia que o Sr. é que estava por detrás disto. Agora sabemos os dois, aqui o Hércules é seguro. Precisamos de roupas e de alojamento. Também necessitamos de algum dinheiro para compras. Um carro também dava jeito pois este é roubado e daqui a umas horas já estará a ser procurado. Depois de passar algum tempo e assim que as coisas sosseguem mais, estaremos à disposição para qualquer outro “trabalho”.

– Está bem. É justo. Vou trazer-lhes um pequeno “Smart” que utilizo quando me desloco em Lisboa sem ser no carro do banco. Depois vamos para uma casa de campo que tenho nos arredores. Irei lá depois levar roupas dinheiro e comida. Quando eu trouxer o carro, esperam que vá buscar o meu. Depois cada um conduz um carro e teremos que abandonar este num local onde não se possa relacionar com a minha residência. Vamos deixar passar um tempo e depois faremos novo golpe. Mas uma coisa terá de ficar bem acordada entre nós, depois de distribuirmos o produto, separar-nos-emos e vocês vão à vossa vida e não mais entrarão em contacto comigo. Só assim teremos contracto. Caso contrário nada feito.

– Aceitamos apesar do Dr. saber que não está lá muito em condições de exigir. Ninguém sabe que estamos aqui e podemos em qualquer altura tratar-lhe da saúde. Assim como assim já estamos lixados e não teremos nada a perder.

– OK. Sei isso, mas acordo é acordo e espero que cumpram. Agora vou buscar o carro.

Hércules, que até aqui se mantivera calado, disse:

– Dr. Repare bem no meu físico. Lembre-se de arranjar roupas a condizer.

Já na casa de campo, que felizmente ficava num terreno bem desviado da estrada e não tinha vizinhança perto, Razvan e Hércules ficaram à espera que Carlos Vidal voltasse com roupas e comida. Estavam esfomeados. Tinham deixado o carro roubado numa localidade que não ficava em caminho e quem o encontrasse nunca saberia para onde se dirigiram. Nem se preocuparam em limpar as impressões digitais. De qualquer modo, o carro tinha sido roubado tão perto da prisão que certamente o conotariam com a fuga.

Carlos Vidal regressou com as roupas, três sacos com géneros e alguma comida já feita.

– Fica aqui algum dinheiro e um telemóvel. Comprei dois descartáveis. Ficam com o nº do meu e eu do vosso. Só devem falar-me para este nº. Agora vão estar por aqui uns tempos. Não dêem nas vistas e se por acaso alguém vos fizer perguntas, digam que estão a fazer umas obras para mim. Quanto menos saírem melhor e nada de se andarem a pavonear pela localidade. Quanto ao próximo golpe, teremos que esperar. O outro ainda está muito fresco e tenho que pensar bem para organizar as coisas. Desta vez tem que correr muito melhor sob pena de sermos todos agarrados.

Conduzindo de regresso a casa, Carlos Vidal pensava que estava lixado. Abelardo falhara. Agora teriam de se organizar para saírem desta embrulhada.

Quem o mandou meter-se numa destas. Deveria ter tido uma vida diferente. Quem dera poder voltar atrás com um emprego mixuruca das 9 às 18, chegar a casa tratar da horta, ver um pouco de TV e cama. Quis subir, ter um alto cargo no banco, casar com uma mulher culta e da alta. Olha o que lhe saiu. Sempre a viverem acima das possibilidades, a gastarem mais do que podiam. Ao que chegaram. A própria filha saiu uma deslumbrada, a querer sempre mais do que tinha, saídas à noite com os amigos, copos e farras. E vá lá que não lhe deu para as drogas. Também foi só o que faltou. Sempre que tentou pôr cobro a algumas situações que considerava excessivas, a filha refugiava-se na mãe que a apoiava. Desistiu e passou a ser aquele tipo que dormia lá em casa, mas a quem não ligavam nenhuma, mas o certo é que quando o dinheiro não chegava para tudo aquilo, era a ele que recorriam e exigiam a reposição do “status quo”. Agora estava naquela situação e elas tinham abandonado o barco. Tinha que sair desta. Precisava arquitectar um plano.


XXI

 

O salão nobre estava quase cheio com convidados e pessoal do banco. Alberto estava acompanhado por Anselmo e Fernando com as respectivas mulheres, com um pouco de persistência lá convencera o inspector a levar Maria Clara. Esta não queria perder a cerimónia nem por nada e ficara amuada quando soube que não iria. O Presidente do Conselho de Administração abriu a sessão com um breve improviso em que enalteceu a honestidade e agradeceu a Alberto que, mesmo numa má fase da vida, colocou a sua honra ao de cimo conseguindo fugir às tentações. Monteiro Castro fez também um elogio à polícia, nas pessoas dos Inspectores Anselmo e Antunes que rapidamente apanharam os meliantes perpetradores do assalto. Uma bonita secretária trouxe um cheque que Monteiro Castro entregou a Alberto com um abraço.

– Estes 35000 euros são 1% do produto do roubo totalmente recuperado. Que sirva para melhorar um pouco a vossa vida. Gaste-o com o mesmo discernimento que mostrou em toda esta insólita situação.

Alberto agradeceu em poucas palavras e não falou muito para não se deixar levar pela emoção. Depois dos aplausos, retiraram-se para uma sala contígua onde foi servido um beberete. Anselmo aproximou-se de Monteiro Castro e informou-o de que gostava de ser apresentado a todos os administradores e directores ao que Monteiro Castro acedeu de imediato reunindo-os e apresentando-os um a um. No fim Anselmo perguntou:

– Estão todos ou falta algum?

– Só falta um que pediu licença esta semana. Acabou um processo de divórcio e separação pelo que ficou bastante abalado. Foi descansar por duas semanas. É o Dr. Carlos Vidal que além de meu colaborador é meu amigo. Terá tempo de o conhecer.

– OK. Muito bem. Não faz diferença. Conheci praticamente todos.

Alberto, Fernando e as três mulheres conversavam discretamente. Ana referiu que aquele seu marido não tinha emenda, estavam todos descontraídos, mas ele estava sempre em trabalho e de olho alerta, não lhe escapava nada. Que estaria por ali a cheirar no meio dos grandes do banco?

– É o seu espírito “Sherlokiano”. Olho vivo e ouvido atento. Sabemos que não está satisfeito com o desfecho da investigação e está certamente a tirar nabos da púcara – disse Fernando.

– Pois. Isso sei eu muito bem. Espero que não dê cabo da paciência dos senhores.

– Bem. Vamos, mas é cavar daqui e continuar em minha casa onde podemos conversar mais à-vontade e mais tarde trincar qualquer coisa. Vamos sacar o Anselmo – disse Fernando avançando em direcção aos dois homens que falavam entre si.

Mais tarde, depois de terem ido buscar as crianças, os três casais estavam descontraidamente conversando na sala de Fernando enquanto os garotos se entretinham no quarto de um deles a jogar “vídeo-games”.

– Vocês repararam na quantidade de altos cargos que existem naquele banco? — referiu Anselmo. – Estavam lá todos menos um. Parece que um dos directores teve recentemente um processo de divórcio e precisou de ir duas semanas de descanso. Fiquei com os nomes deles todos e vou pôr o Tobias a descascar as vidinhas deles inclusive as dos administradores. Quero saber ao pormenor a vida de cada um. Cada vez estou mais convencido que não foram aqueles gatos-pingados os cabecilhas daquele roubo. Deve haver alguém graúdo por trás. Diz-me o meu faro que um daqueles tipos estará implicado. Só alguém dentro do banco poderia saber do transporte daquele dinheiro. Estas coisas não são discutidas por porteiros.

Fernando levantou-se e já junto da janela, voltou-se e disse: – Essa cabecinha não pára até descascares tudo e saberes toda a verdade. Acho bem. As coisas ou se fazem bem-feitas ou não se começam. Se precisares de ajuda já sabes, contas comigo.

– Ok Amigo, mas como sabes o processo agora não é meu. Tudo o que descobrir por mim tem que ser comunicado ao meu colega Antunes, o caso é dele, a mim só tocam cadáveres. Sou uma espécie de antecâmara da morte. Vou até à Judiciária, tenho por lá muito que fazer. Ana, se não te importas leva o carro para casa, como não é longe, vou a pé para colocar a cabeça em ordem e sempre faço um pouco de exercício, esta barriguinha está a dar cabo de mim.

Anselmo despediu-se de todos e saiu. Cá fora esperava-o um ameno final de tarde de fim de Primavera. O céu apresenta-se com algumas nuvens e os raios de sol, já bastante baixos, passavam por entre elas. Alguns melros ainda cantavam preparando-se para recolher. Era fantástico como Lisboa tinha tanto melro. Já disputavam a comida que encontravam, com pardais e pombos e até nas esplanadas se aproximavam dos humanos para disputar alguma comida que caía das mesas. Estavam a ficar demasiado urbanos e a mudar os seus hábitos alimentares.

Anselmo andava devagar e ia cogitando no caso. Pensava que um graúdo do banco era o cabecilha, mas não se tinha metido naquilo dando-se a conhecer aos executores, alguém tinha um intermediário por conta, teria que falar com o Antunes sobre isso.

Quando chegou ao gabinete o Tobias comunicou-lhe a fuga dos dois meliantes.

– Como foi isso? Agora deixam fugir prisioneiros perigosos? Não esqueçamos que esses tipos estão ligados a um crime de morte e podem voltar a cometê-lo. Nunca se sabe o que sairá daí. Vão certamente tentar contactar alguém de fora para poderem esconder-se. Já se sabe como escaparam?

– Pormenores ainda não sabemos – referiu Tobias – Parece que cá fora roubaram um carro que já foi encontrado. Está agora a ser visto pelos técnicos. Devem ter apanhado qualquer outro meio de locomoção, mas nas imediações não houve nenhum furto de viatura. Alguém se encontrou com eles.

– Está cá o Antunes? – perguntou Anselmo – Tenho que falar com ele.


XXII

 

Desde que soubera do falhanço do assalto, Abelardo nunca mais falara com Carlos Vidal, agora Carlos queria falar com ele. – Que se estará a passar? Será que quererá meter-se noutra? – pensava Abelardo. Gostaria que o seu “alferes” não se metesse em mais alhadas. Desde a tropa que Abelardo tinha por Carlos Vidal uma dedicação quase canina. Vidal salvara-lhe a vida numa situação deveras perigosa quando na instrução com tiro de armas reais, ficara preso numa rede arame farpado e uma granada de morteiro caíra junto dele sem explodir. Vidal, com risco da própria vida, não conseguindo desprendê-lo, pendurou-se de cabeça para baixo até chegar com os braços à granada que ficara dentro de um fosso de esgoto muito estreito, em cimento e, apenas com um canivete suíço, conseguiu retirar a espoleta da granada sem que a mesma explodisse. Só depois puderam chamar os sapadores para o soltarem do emaranhado em que estava. Desde aí ficaram amigos e tornou-se no seu fiel companheiro para todo o serviço. Daria a vida por ele. Agora o seu “alferes” estava na mó debaixo e precisara dele. Recrutara aqueles “mânfios” para um servicinho que correra mal, seria que Carlos Vidal quereria tentar de novo?

Actualmente Abelardo era motorista de longo-curso numa boa firma de transportes e ganhava o suficiente para se sustentar a si, á mulher e dois rapazes. Não precisava de Carlos Vidal para nada, mas era incapaz de recusar-lhe qualquer pedido.

Não haveria nada que fizesse com que abandonasse o seu amigo que, além de lhe ter salvo a vida lhe continuou a dar a sua amizade, o amparou na vida civil e lhe arranjou aquele emprego

Carlos Vidal esperava por ele dentro do carro num parque de estacionamento. Ao chegar fez-lhe sinal que entrasse para o outro lugar da frente. Abelardo entrou e apertou calorosamente a mão do seu “superior”.

– O meu “alferes” o que manda?

– Tens de te deixar disso – disse Carlos – Chama-me Carlos ou Vidal, como te der mais jeito, mas já não estamos na tropa. Isso do alferes tem de acabar.

– Meu “alferes”, peço desculpa, mas é o hábito, vais ser difícil mudar, mas vou tentar.

– Então faz força para isso. Temos coisas a fazer. Vou contar-te o que se passou para ficares a conhecer todos os pormenores.

Carlos Vidal pôs Abelardo ao corrente sobre a fuga do Razvan e do Hércules, como eles o localizaram e contactaram e tudo o que se seguiu depois.

– Temos de resolver muito bem o que fazer. Por mim não me metia em mais nada, mas tenho que sair do País, mais tarde ou mais cedo a Judiciária vai chegar até mim e aí já nada haverá a fazer. Só que estou sem dinheiro. Como sabes estou em processo de divórcio o que me deixa ainda mais vulnerável e mais teso. Preciso que vás alugar um carro a uma firma desconhecida, seria bom que não usasses o teu nome. Temos de substituir o “smart” que está na vivenda, está em meu nome e pode alguém meter o nariz. Preciso também que alugues uma casa isolada nos arredores. Procura não deixar rastos. Paga dois ou três meses adiantados. Depois vamos os dois buscar aqueles sevandijas e transferi-los para a nova localização até eu decidir o que vou fazer. Vou dar-te o nº de um novo telemóvel que adquiri. O meu deve estar ou pode vir a estar sob escuta. Quando tiveres tudo pronto liga-me. Quanto tempo vais estar por cá sem teres de sair para algum serviço longo?

– Só saio daqui a três dias, temos tempo.

  Agora vai-te embora. Um beijo meu para a tua mulher e para os miúdos.

– Adeus meu Alf… bem… Carlos. Não sei se vou ser capaz de me habituar a este tratamento. Amanhã já devo ter tudo em ordem. Eu telefono.

Ah, – Disse Carlos – Não deve ser natural porque ainda não foste referenciado pela bófia, mas toma cuidado para não seres seguido. Há um inspector, aliás dois, que andam de olho nisto e são vivaços. Toma cuidado.


 

XXIII

 

Após três dias de silêncio Abelardo ligou a Carlos Vidal, já tinha alugado o carro e a casa. Fora buscar os homens e já os transferira. Escolhera uma localidade nos arredores de Lisboa dado que os tipos não queriam ficar longe. Seria necessário não deixar correr muito tempo ou teriam de arranjar papéis falsos para aqueles meliantes se poderem movimentar. Carlos Vidal disse-lhe que a partir dali seria ele a decidir e a contactar com os tipos. Agradeceu-lhe a colaboração e pediu-lhe para não o contactar nos tempos mais próximos. ­– Vai para casa para junto da tua mulher. Faz o teu trabalho e envereda por um resto da tua vida com honestidade. Esta nossa aventura foi um erro.

Após desligar, marcou o número do telefone que tinha deixado a Razvan. – Olá, sou eu. Nada de nomes. Vocês vão ter que ter paciência. Vamos ter de deixar acalmar as coisas. Estou a tratar de arranjar papéis falsos para vocês. O meu braço direito já me deixou a morada e assim que os tiver ou que seja necessário deixar-vos dinheiro, passarei por aí. Só me devem ligar em caso urgente. OK?

Carlos assim que desligou, saiu de casa para almoçar. Teria de arranjar uma nova empregada pois a que tinha saiu com a sua mulher.

Como ainda era um pouco cedo deu um pequeno passeio a pé e sentou-se num banco de jardim aproveitando uma sombra. Recordou o que tinha sido a sua vida, lembrava-se dos tempos de infância, na aldeia. O pai tinha umas terras e vivia do pouco que davam, mas tendo poupado, resolveu abrir um pequeno comércio de hortaliças que lhes dava para viverem. A mãe cuidava da casa e tratava-o a ele, filho único, com esmerado desvelo. Fizera a primária com distinção sem, contudo, deixar de brincar e conviver com os colegas de escola. Lembrava-se dos banhos nos rios, todos nus, dos impropérios das mulheres que por ali lavavam a roupa, das caçadas aos pássaros, das fogueiras nos santos populares, na missa aos domingos, a que não ligava muito, mas tinha de acompanhar a mãe. Recordava quando entrou no Liceu e depois para a faculdade. Licenciara-se e viera viver para Lisboa. Recordou a morte do pai, após um maldito AVC que pouco depois o levou. Vendera a pequena propriedade e estabelecera uma pensão vitalícia para a mãe que também não durou muito. Viu-se órfão cedo de mais e não voltou à sua terra. Aquilo já nada lhe dizia por muito mudada que estava. Fizera amizades, apaixonara-se e casara. Tivera pequenos empregos até que conheceu Monteiro Castro. O banqueiro cedo se apercebeu da sua queda para o negócio bancário e arranjou-lhe aquele emprego. O casamento não corria bem e algumas aventuras foram a consequência. A ânsia de protagonismo e a futilidade da mulher acabara por o levar ao crime. Agora estava arrependido. Não tinha espírito de criminoso. Logo por azar o assalto que tão bem pensou, tinha dado raia e um homem morrera. Agora estava num dilema. Ou fazia novo assalto ou fugia, mesmo com pouco dinheiro. Bem, pensaria nisso depois do almoço.

Carlos Vidal almoçou num restaurante perto de casa. Era cliente assíduo e os empregados já o conheciam. Estranharam por o verem só, mas educadamente não o interpelaram por isso. Também não estava nos planos de Carlos Vidal pôr a nu a sua vida privada. Enquanto comia, o nosso homem, tomou uma decisão. Tinha que sair de tudo isto da melhor forma. Seria triste ter de refazer a vida noutro lugar, mas teria de ser. A não ser assim ficaria toda a vida a remoer em tudo o que fizera de mal. Por sua causa um inocente morrera. No final das contas a coisa ficara-se só pela intenção porque o roubo não resultara e o dinheiro fora recuperado. Carlos gostaria de ter conhecido o sem-abrigo que fora capaz de não se apropinquar com três milhões e quinhentos mil euros que lhe foram parar às mãos vindos do céu. Há realmente gente honesta. Resolveu que só haveria uma solução, deixar o país e refazer tudo de novo noutro local. Fugiria para o Brasil. Quem ficasse por cá que se lixasse. Eram meliantes profissionais e se fossem novamente capturados eram ossos do ofício. Pensou na sua filha. Iria ter imensas saudades, mas ela optara por seguir a vida da mãe. Que fosse feliz. Talvez um dia pudessem rever-se.

Saiu do restaurante, meteu-se no carro e dirigiu-se a uma agência de viagens pouco conhecida. Comprou uma passagem para o Rio de Janeiro para dois dias depois. Ao sair do estacionamento pareceu-lhe ver um carro que saiu ao mesmo tempo. Será que já o seguiam? Não poderia ser. Nada o ligava àquele assalto a não ser pertencer aos quadros do mesmo banco. Pelo sim pelo não resolveu fazer uma experiência. Foi direito a casa e quando ia a estacionar, deu uma guinada e acelerou virando para um sentido proibido. Teve a sorte de se cruzar com um carro só ao fim da rua e esgueirou-se por um triz. O carro atrás dele ficou bloqueado.

Não havia dúvida, estava a ser seguido. Ao chegar a casa ligou o computador e através da Net alterou a passagem para o dia seguinte. Poderia ser que se alguém o tivesse seguido e através da agência conseguisse saber o dia da viagem, talvez não se lembrassem que a mesma poderia ser alterada.

XXIV

Anselmo saiu do carro e teve de se identificar perante o condutor que vociferava por quase ter sido abalroado por dois carros em sentido contrário e em alta velocidade. Após os devidos esclarecimentos lá seguiu para a Judiciária, entretanto, ligou para o seu amigo Fernando.

– Amigão, eu tinha razão, o Carlos Vidal é o nosso homem. Como sabes, fiquei desconfiado por ele ter sido o único que não compareceu à cerimónia da entrega do prémio ao Alberto. Investigámo-lo e seguimo-lo. Ficámos a conhecer o Abelardo e prendemo-lo. Não durou muito a confessar tudo. O tipo tem uma adoração especial pelo Carlos. Já referenciámos a casa onde estão os fugitivos Razvan e Hércules. Conto contigo para me ajudares a detê-los. Aqueles dois não te conhecem e podes ser muito útil pois se bateres à porta ficarão na dúvida de quem serás. Eles estão à espera de papéis falsos, poderás fazer-te passar pelo enviado do Carlos para lhes entregar os documentos. Nós estaremos lá para o resto. Vai ter comigo ao meu gabinete. Poderemos estabelecer lá o plano de ataque. Um abração.

Anselmo, sorriu para o seu ajudante. Tobias retribui-lhe o sorriso com uma expressão de orgulho no seu Chefe. Chegaram à Judiciária e Anselmo dirigiu-se ao gabinete de Antunes a quem fez uma descrição das suas diligências pedindo-lhe desculpa pela sua ingerência no seu caso. Os dois inspectores eram amigos e como tal Antunes aceitou a ajuda sem quaisquer constrangimentos.

Pouco depois Fernando chegou e os três homens começaram a gizar um plano para surpreenderem os fugitivos já localizados.

Foram gizando a táctica a empregar na captura dos dois fugitivos. Anselmo, como mais velho, apoiava muito todos os mais novos e era por todos considerado. Passara por vários pelouros dentro da Judiciária e pela sua argúcia e poder dedutivo fora colocado nos homicídios, departamento que já chefiava há tempos.

  – Ainda bem que chegaste, Fernando. Estamos aqui a pensar que vais ser tu a entrar em casa dos gajos. Vais-te apresentar como enviado de Carlos Vidal para tratares dos papéis falsos. Vais levar uma pequena máquina fotográfica que levará dentro um microfone. Tens que ir desarmado pois certamente vais ser revistado. Nós estaremos cá fora. Já pedimos a colaboração da GNR que vai disponibilizar um pelotão de operações especiais para cercarmos a casa e fecharmos a rua se for necessário. Destaquei um agente para vigiar a casa de Carlos Vidal. Pensamos que poderá tentar sair do país. Julgo que ainda pensa que não foi descoberto, mas como ultimamente o seguimos, pode até ser que tenha dado por isso. E agora vai para casa. Convém não dizer nada à Mariana para não a preocupares.

– Já vi que tens tudo planeado, só gostava de saber como me safar se os tipos derem pela marosca e me quiserem limpar o sebo. Sem qualquer arma como me safo?

­– Já te livraste de outras e não precisaste de armas para nada. Usa os punhos, tens arcaboiço para isso.

– Pois, está bem. Se me acontece algo vais ter que aturar a Mariana.

– Estaremos lá. Logo que houver qualquer sinal de perigo nós daremos por isso através do microfone e cairemos em cima deles num ápice. Não terão tempo sequer para tomar qualquer atitude de resistência.

– Esperemos que sim. Também, não me posso queixar, meti-me nisto voluntariamente e agora tenho de aguentar. Lá vou arranjar mais matéria para outro romance. Vou-me embora. Ficarei a aguardar ordens.

Fernando despediu-se dos dois homens e saiu. Anselmo ficou a pensar que realmente esta ajuda do seu amigo era perigosa. Se algo corresse mal os seus superiores não iriam gostar nada e a sua carreira poderia ficar em risco. Fernando era um amigo, um tipo vivo, inteligente e muito esperto. Não os deixaria mal.


XXV

No dia seguinte Anselmo Ligou para Fernando e informou-o que era chegada a hora de agarrar os meliantes. Teria de ser amanhã pelas nove da manhã dado que Carlos Vidal tinha passagem marcada para o Brasil pelas três da tarde e teriam que estar no Aeroporto para o deter.

– OK, rapaz. Vou-me preparar, já tenho uns impressos do arquivo de identificação, que levo numa pasta, levarei a máquina com o microfone. Entretanto, espero que a vossa entrada se faça na altura certa para ver se saio desta sem me magoar. – Muito bem! – disse Anselmo – Estaremos atentos, não te preocupes.

Assim que Anselmo desligou, Fernando escolheu umas calças, casaco e também uns óculos de aros pretos sem graduação, para dar a ideia de um tipo manga de alpaca que ganharia a vida a trabalhar para tipos fora-da-lei.

Entretanto, no dia seguinte; entre Razvan e Hércules, as coisas não andavam lá muito bem. Os dois bandidos estavam a ficar nervosos pela inactividade e esperavam impacientemente notícias de Carlos Vidal. Hércules, principalmente, era o mais nervoso até porque suportava mal a presença de Razvan. Aquele Romeno, com o seu ar superior, contundia-lhe com os nervos. Assim que dessem o próximo golpe, afastar-se-ia dele e nunca mais o quereria ver por perto. Esperava ficar com uma boa maquia e daria o salto para qualquer outro país onde ninguém o conhecesse. Deixaria aquela vida e gostaria de pôr um negócio que desse para viver sem muitas dificuldades.

Hércules estava nestas conjecturas quando tocou a campainha. Razvan, de um salto, pegou na arma que tinha sempre à mão. Junto à porta e fez sinal de silêncio a Hercules. Espreitou pelo ralo e viu um homem alto, de óculos e bem vestido, com uma pasta na mão. A campainha voltou a tocar segunda vez e Razvan perguntou: – Quem é?

– Chamo-me Fernando e venho da parte do Sr. Carlos Vidal para começar a preparar uns documentos que me foram pedidos para duas pessoas.

– Quando abrir a porta entre e coloque-se virado para a parede com as mãos visíveis.

Fernando cumpriu as ordens e entrou virando-se imediatamente, no interior, ficando de cara para a parede.

Razvan chamou Hércules e passou-lhe a pistola. Revistou Fernando de alto abaixo, tirou-lhe a pasta da mão, a máquina fotográfica do pescoço, verificando que a pasta só continha papéis e a máquina era vulgar e normal. Deu-se por satisfeito e mandou Fernando entrar.

– Bom dia meus senhores. O Sr. Carlos Vidal encarregou-me de vir aqui começar a tratar dos vossos novos papéis. Para o efeito vou começar por vos tirar fotografias, necessárias aos documentos, depois tenho que apontar várias coisas, como a vossa altura, cor dos olhos e tirar-lhes a impressão do vosso indicador direito. Dentro da pasta está uma almofada de carimbo para esse efeito. Vamos aproveitar aqui a parte da parede branca para fundo das fotos. Ajudem-me aqui a afastar esta mesa. Depois do espaço desobstruído, os dois homens colocaram-se à vez junto da parede e Fernando tirou as fotos.

Entretanto, Fernando foi memorizando os cantos à casa. A porta da rua dava directamente para a sala onde se encontravam. Ao lado da porta havia uma janela grande tapada com um cortinado escuro. Fernando esperava que a janela não fosse gradeada. Na parede do fundo, à direita, havia outra porta que certamente daria para um quarto. Como não havia mais entrada nenhuma a casa de banho seria com serventia para o quarto. Fernando, enquanto, tratava dos dados de Razvan, notou que Hércules dava razão à alcunha. O tipo era realmente um colosso e, pela aparência, devia ter mesmo uma força hercúlea. Reparou também que, o matulão, de vez em quando ia até a janela e espreitava para fora afastando a ponta da cortina. Este último estava mais nervoso do que o romeno, que aparentava calma. Por onde e como entrariam os militares da GNR? Deviam já ter preparado um plano de ataque, mas Fernando não tinha sido posto ao corrente. De repente uma explosão, mais de luz do que de som, atirou com a janela para cima deles. Ao mesmo tempo um clarão deixou-os praticamente cegos. Fernando, que suspeitava o que tinha acontecido, conseguiu fechar os olhos a tempo. Quando os abriu viu vários vultos encapuçados que entravam pela porta entretanto arrombada. No meio do fumo e dos destroços da janela reparou que o Hércules se levantava tentando esgueirar-se pela porta do quarto e ao mesmo tempo deitava a mão à pistola que voara até à parede. Fernando atirou-se de pés para a frente, escorregando pelo chão, dando com um pé na cara do gigante antes que este conseguisse a arma. Hércules deu um berro e atirou-se literalmente para cima de Fernando que se sentiu esmagado com o peso daquele mastodonte. Conseguiu rodear-lhe o pescoço com os braços tentando um torniquete de modo a cortar-lhe a respiração, mas o monstro não deu sinais de fraqueza e respondeu com um safanão que atirou os quase cem quilos de Fernando a uns dois metros de distância. Hércules saltou em cima do seu opositor e agarrou-o pelas costas prendendo-lhe os braços. Fernando nada podia fazer e estava a ver que iria sucumbir. Foi então que uns seis militares caíram em cima daquela fera e Fernando conseguiu libertar-se ofegante quase sem respiração.

Razvan tinha sido dominado e encontrava-se algemado. Hércules foi manietado de pés e mãos não sem antes ter distribuído uns socos e pontapés que deixaram alguns militares muito maltratados.

Quando as coisas serenaram, apareceram Anselmo e Antunes sorridentes a dar umas palmadas nas costas de Fernando.

– Então? Pelos vistos estás farto de brincar aos polícias e ladrões. Desta vez, se não chegássemos a tempo bem levavas para o tabaco.

– Fernando, sorridente, mandou-o à merda. Vai-te lixar. Devias ter vindo tu para veres o que era lidar com aquele brutamontes. O gajo tem mais força do que um urso pardo e luta como um gorila.

– Não querias aventura? Pois aí tens. Aventura não é só dar. Tens que aprender a encaixar umas bordoadas. E agora toca para a “judite” que temos de engaiolar estes meliantes. Amanhã serão presentes ao Juiz e terão de certeza as penas agravadas. Vamos todos almoçar porque de tarde vamos deter o Carlos Vidal.

Anselmo e Antunes agradeceram aos militares do Corpo de Intervenção da GNR e estes retiram-se para as carrinhas. Entretanto, Tobias já tinha metido os prisioneiros num dos carros da Judiciária. Os inspectores seguiram atrás, noutro carro. Fernando seguiu no carro dele que se encontrava estacionado um quarteirão mais à frente. Dissera a Antunes que já não iria participar na detenção de Carlos Vidal. Amanhã telefonaria para saber como tudo decorrera.


XXVI

Antunes foi para a porta de embarque do voo para o Rio de Janeiro enquanto Anselmo se dirigiu ao “Check in” mostrando o crachá e perguntando pelo passageiro Carlos Vidal. A moça procurou na listagem.

– Sr. Inspector. Temos aqui uma passagem cancelada em nome desse Sr., foi alterada para ontem e esse passageiro já seguiu para o Rio.

Antunes esteve quase a soltar um palavrão mas coibiu-se perante o olhar da rapariga. ­– Bolas! Fomos enganados.

Já nos carros, os dois inspectores riam-se da sua falta de lembrança de não terem pedido a colaboração dos serviços do aeroporto logo que tomaram conhecimento da compra dos bilhetes. Tinha sido uma falha grave, mas nunca suspeitaram que Carlos Vidal estivesse de sobreaviso. Agora estavam lixados. Os brasileiros nunca o repatriariam.

Entretanto, já no Rio de Janeiro, Carlos Vidal dirigiu-se ao banco para onde tinha efectuado uma transferência das suas economias. Não era uma grande quantia, mas daria para sobreviver durante os primeiros tempos. Com a sua experiência e habilitações decerto conseguiria empregar-se. Depois trataria de comunicar com a filha da qual tinha imensas saudades.


XXVII

Anselmo, Antunes, Fernando e Alberto, acompanhados das respectivas companheiras, jantavam à volta de uma mesa redonda num restaurante Chinês. Entre eles tinham-se estabelecido relações de franca amizade e falava-se do caso com abertura e alguma alegria.

– Pois meus Caros. Apesar de não termos apanhado o manda-chuva, toda esta operação até correu bem. – disse Antunes.

– No fim, graças ao Alberto, a massa recuperou-se. Tivemos um guarda do banco ferido e uma baixa de um pobre sem-abrigo que teve o azar de ir dormir para o mesmo local onde o saco do dinheiro foi atirado para cima do Alberto. – referiu Anselmo. – O pobre homem era um desgraçado que já não viveria muito devido ao estado de degradação em que se encontrava.

A Maria Clara, com a voz um pouco embargada e de lágrima no olho, apertava a mão do marido, referindo: –  E eu recuperei o meu marido e a nossa filha um pai.

­–  E eu – disse Mariana. – Fiquei com um marido de costelas amassadas e cheio de nódoas negras. É bem feito para não andar a brincar aos polícias e ladrões. Desde que se armou em escritor policial e resolveu viver os enredos dos seus romances que passa a vida todo amassado. Qualquer dia vou ter que pedir indemnização à Judiciária.

– Talvez não seja preciso. Com o jeito que tem para estas coisas, o Fernando tem é que deixar a faculdade e vir para a “judite”. Faz lá falta. – disse Anselmo.

– Claro, era só o que faltava. Gosto muito da minha actividade, não só como docente, mas também como ter a possibilidade de fazer ciência. A minha colaboração nas actividades da Judiciária, só foram possíveis graças à tua amizade. A propósito, como reagiram as chefias à fuga do Carlos Vidal? – perguntou Fernando.

– Olha! – exclamou Anselmo. –  reagiram melhor do que esperávamos. Ficaram um pouco decepcionados, mas como se recuperou a massa e se apanharam os operacionais, vá lá não foi completamente um insucesso. De qualquer modo o Carlos Vidal foi apenas o cérebro e até parece que não queria fazer mal a ninguém. Rodeou-se foi de alguns facínoras que não executaram o golpe como ele pretendia.

– Qualquer dia – referiu Fernando – somos conhecidos pelos Gauleses. Tal qual como nas aventuras de Asterix e Obelix, terminamos as nossas aventuras à volta mesa, só nos faz falta um bardo para amarrarmos e pendurarmos no candeeiro.

Todos riram e Fernando aproveitou para acabar com a festa. – E agora, vamos todos para casa pois bem precisamos de descansar e este jantar já vai em hora adiantada.

Os convivas levantaram-se e, à porta, fizeram as despedidas com promessas de continuarem a encontrar-se com regularidade.

No caminho, Anselmo aproveitou para descansar Sara sobre as investigações policiais.

– As pessoas têm tendência para pensar que todas as investigações são tipo Hercule Poirot ou Perry Mason. Claro que os escritores se baseiam em casos em que o detective principal tem de ser um tipo arguto, de inteligência superior, psicólogo de pensamento ágil para conseguir penetrar nas mentes e delas tirar elementos que o levem a descobrir assassinos. Isso é literatura, claro que há casos difíceis, mas na sua maioria os criminosos não são assim tão mentais. Os manuais de procedimentos têm quase todos os exemplos necessários para se conseguirem resultados rápidos. Colher indícios, referenciar, pessoas, capturar um ou dois, interrogar, etc. Neste caso, como os operacionais não denunciaram o mandante, tivemos que pensar um pouco para identificar quem poderia ser. Poucas pessoas, no banco, sabiam do transporte do dinheiro. Bastou saber quais os directores que tratavam desse assunto. Um deles não apareceu na entrega do prémio ao Alberto. Caíram sobre ele as nossas primeiras suspeitas. Segui-lo, saber com quem falava, saber um pouco da sua vida privada, foi fácil. Apanhar o Abelardo também. A partir daí foi rotina. Usar o Fernando foi da minha responsabilidade, sabia os riscos que corria, mas também sabia do gosto que ele faz em viver estas aventuras para as escrever. Felizmente tudo correu bem. Não apanhámos o mandante, mas ele também não levou o produto do roubo. Foi um tipo que optou pelo crime para mudar de vida. Mudou realmente, sem a massa, mas não teve outro remédio. Espero que tenha sorte lá no Brasil e que não caia mais em tentações. Como vês, na maioria das investigações, quase todos os procedimentos são rotina.

– Sei disso – disse Sara. – Mas não deixa de ter os seus perigos e eu não quero ficar viúva cedo de mais.

Anselmo fez-lhe uma festa na face. – Está descansada. Normalmente quem corre mais perigo são os PSP e guardas da GNR. Nós somos os generais que atrás das tropas engendram as estratégias.

Entretanto, Fernando conduzia em silêncio para não incomodar Mariana que cabeceava a seu lado e ia pensando no Caso do Sem-Abrigo.

Como as pessoas eram diferentes, mas como também, ao mesmo tempo, viviam episódios idênticos reagindo-lhes de forma diversa.

Um homem honesto que, face a adversidades da vida, para não causar grandes traumas à família, resolve abandoná-los e viver nas ruas por vergonha de não ter sido capaz de prover decentemente às suas necessidades. Acaba por viver uma aventura em que se vê envolvido sem ter sido esse o seu propósito. Devido à sua honestidade é recompensado e consegue voltar para junto dos seus que o recebem de braços abertos. Um outro, que vence na vida, consegue um bom emprego, tem um casamento que não dá certo devido à futilidade da mulher que quer tudo e cada vez mais, acabando por contagiar a própria filha e por enganar o marido. Face a tudo isto decide divorciar-se, mas em vez de ficar por ali, envereda na senda do crime. Duas formas de actuar completamente diferentes em face de condicionalismos da vida. O primeiro fica com os seus e feliz, o segundo acaba só, num país diferente, onde certamente, só com muita sorte conseguirá ser feliz. Fernando pensava que a natureza humana era demasiado complexa e a vida cheia de vicissitudes e que as reacções às mesmas se regiam conforme as idiossincrasias de cada um.

Chegado junto da sua residência, estacionou e acordou a sua mulher com um suave beijo na face. Ajudou-a a sair do carro e praticamente fê-la entrar em casa meia adormecida com a cabeça no seu ombro. Assim que se deitou, Mariana adormeceu profundamente. Fernando sorriu por ver que a sua mulher, pela primeira vez, tinha bebido um pouco mais do que a conta. Despiu-se, vestiu um roupão e foi até ao escritório. Sentou-se à secretária, ligou o portátil, abriu uma folha de “Word” e escreveu como título:

O Caso do Sem-Abrigo

 

 

 

 

 

 

 



[1] Ver “Anselmo Inspector de Polícia”.

[2]  Ver “Pedras Negras de Vermelho”.

[3] Médico amigo e ajudante de Sherlock Holmes nos romances de Connan Doyle.