segunda-feira, 15 de junho de 2020

O HOMEM

Escrito em tempos conturbados e troicanos com governos que nos delapidaram os proventos.

(reflexões de um cidadão comum)

(Publicado no Boletim da APE nº 229/13)

 

O homem deambulava pela rua de mãos nos bolsos observando os passantes tentando descobrir os pensamentos de cada um através das expressões e do porte de cada qual. Seria que tinham os mesmos anseios que ele? Seria que gostavam das mesmas coisas?

Seriam cultos? Teriam instrução? E teriam gosto em aprender, em saberem coisas? Ele tinha essa ânsia, essa vontade, esse gosto, mas do que lhe servia isso, se o facto de gostar de saber, de aprender, não lhe dava qualquer poder, quer económico quer de estatuto, continuava o mesmo, sem dinheiro, sem poder de compra, sem proporcionar aos seus aquela vida que gostariam de ter, de ver espectáculos, de sair e frequentar bons restaurantes, de vestir e comer bem sem grande trabalho e sem esforço. Que lhe servia saber discutir meia dúzia de assuntos, acabava tornando-se chato contraditando quase tudo o que os outros diziam, as pessoas falam de tudo e sobre tudo pela rama cometendo montes de erros, mas não gostam que lhos emendem e ele não era capaz de se conter e ainda por cima era um ateu convicto gostando de conhecer e entender os porquês e princípios das religiões, coisa que os crentes normalmente não fazem nem procuram esclarecer-se estando-se nas tintas para os quês e porquês bastando-lhes a fé que lhes incutiram desde o berço não se perguntando se todas as lengalengas que papagueavam tinham algum fundamento e serventia. Olhando os seres andantes de ar macambúzio deslocando-se de e para lado nenhum, perguntava-se se teriam dúvidas sobre o que pensam acreditar ou se não acreditando também duvidariam da descrença. Naturalmente sim, mas talvez não se preocupassem muito e o mais certo seria a porcaria de vida que levavam e o esforço que faziam para sobreviverem não lhes dar sequer tempo para pensarem quanto mais duvidarem de alguma coisa.

Gostava de escrever, mas não tinha grande talento para ficcionar e colocar no papel algo que não fosse trivial, que desse que pensar, que tivesse substrato. Andava e imaginava histórias e cenas para passar ao papel, mas chegava a casa e o que pensara já não lhe parecia suficiente para despertar a atenção de alguém e todo o escritor escreve para que o leiam. Por mais que digam que se pode escrever só por e para exercício da mente, todos anseiam que algum leitor se interesse e lhe faça elogios ou críticas construtivas que o levem a escrever mais e melhor.

No computador estavam montes de escritos inertes, estáticos, inactivos, que lhe apetecia apagar, mas não tinha coragem por serem da sua lavra e do seu esforço, mas que não conseguia mostrar a ninguém por achar-lhes sempre falta de qualidade.

Lia muito e bons autores e quanto mais o fazia mais verificava que aquilo que escrevia não se poderia comparar ao conteúdo sério daquelas obras.

Continuava andando e de repente acordava daquelas divagações interioristas dizendo para si próprio que a sua vida fora cheia, plena de acção, aventura, trabalhos bem-feitos, estudos bem-sucedidos, enfim, realizações que não o deixaram mal, mas que não o realizaram totalmente. Agora, aposentado, já sem acção directa em trabalhos remunerados, procurava realizar serviços para organizações não lucrativas como clubes e associações de que fazia parte o que lhe transmitia alguma sensação de utilidade. Estava no último terço da sua vida e sabia já não lhe restar muito tempo para se afirmar sobre o que fosse.

Também, infelizmente, não soubera gerir os parcos proventos que ganhara de modo a poder agora usufruir de um pouco mais de sossego económico. Infelizmente, o seu país nunca fora capaz de garantir aos que o serviram com risco das próprias vidas, o suficiente para poderem ter uma velhice calma e serena até ao fim dos seus dias. Mas, também sabia que muitos estavam em circunstâncias bem piores e a história mostrava que sempre fora assim.

Passou junto de uma igreja com os crentes saindo da última missa talvez convencidos de que estavam mais protegidos e acompanhados por um deus que faziam protector e pessoal, como se não houvesse neste mundo mais nada com que se preocupar. A fé serve para isso mesmo, é uma forma dos que pouco têm se convençam que vão ser ajudados a ter mais e dos que muito têm fiquem convencidos que nunca nada lhes faltará e os seus proventos e patrimónios aumentarão e ninguém nada lhes tire. Poucos são os que nada pedem para si ou que orem pelos outros que sofrem com a ganância dos que já tudo possuem, mas que ainda mais querem, sugando-lhes o esforço a mente e a vontade.

A maioria dos seres mortais constrói o seu mundo com fronteiras demasiado curtas e o que está para lá não lhes interessa por não lhes dizer respeito. Mas a humanidade é imensa e a maioria sofredora e despojada de quase tudo, sem educação, sem capacidade de sobrevivência e em meios hostis que lhes encurtam a vida e castram os pensamentos. Para que vivem então? Mais valia não nascerem só que isso não é programado e a natureza é fértil em produzir seres que apenas servem para alimento de outros seres, que mais fortes os sugam para sua própria sobrevivência. É assim com todos os animais e o homem não é diferente, mas, por ter entendimento que associa ideias, tenta sobreviver contra tudo e contra todos lutando com todas as armas de que pode dispor, causando batalhas que a ninguém aproveita. Os outros, aqueles que tudo obtêm por exploração dos mais fracos, quando lhes negam a possibilidade do saque, criam motivos para actuarem pela força começando guerras colocando as culpas na parte contrária normalmente mais fraca ou totalmente indefesa. Onde está um deus nessas alturas? Quem defende ele?

Ganham sempre os maus morrem os bons, mas serão mesmo bons? Naturalmente não são, se lhes derem azo de ficarem com os bens e proventos dos maus, acabam tão maus como eles.

O passeio estava a terminar, olhou de novo para os passantes, mas nada viu, voltaram a ser apenas seres que se deslocavam sem pensamento e nexo, nem sempre a aura envolvente dos humanos revela idiossincrasias ou então era ele que já não as perscrutava.

Há realmente momentos para tudo, mas também tudo muda e de repente, pois aquilo que se pensa sente e vê muda totalmente um segundo depois com a alteração de visão, local ou estado de espírito…

 


quinta-feira, 11 de junho de 2020

Interstellar


Filme visto há uns tempos. Escrevi sobre ele e publiquei no Boletim da APE. Resolvi agora colocar aqui a minha crítica.


(Publicado no Boletim 237 de 2015)

 

Não sou grande adepto de ficção científica. Procurei sempre fugir dela quer em filmes, banda desenhada ou livros. A excepção foi o estupendo filme de Stanley Kubrick “2001 Odisseia no Espaço”. Este excelente filme foi uma fuga total aos estereótipos do género. O filme que dá origem a este escrito, “Interstellar”, despertou a minha atenção por alguma crítica que li, levando-me a quebrar um pouco esta minha aversão à ficção científica. Não dei o tempo por perdido, e foi muito tempo, 2 horas e 40 minutos de projecção que se passam num ápice. Mesmo as cenas mais lentas e demoradas não cansam pela ânsia do espectador ao que a seguir virá.

Vê-se que Christopher Nolan, realizador do filme, é um fã de Kubrick, mas descanse o leitor que este filme não é só Kubrick, mas sim o seguimento de um certo espírito de Kubrick num filme diferente. Aqui, Nolan explora muito o ser humano como mesquinho, destruidor, provocador de cataclismos capazes de pôr em risco a vida na Terra, mas por outro lado um ser sentimental agarrado a conceitos morais e familiares, munido de uma capacidade de aventureirismo científico que o leva a tentar encontrar outros mundos onde a humanidade possa sobreviver.

A junção de sentimentos com ciência está muito bem entrosada nesta película e, quem tiver interesse em conhecer alguma coisa sobre o universo e as suas leis, algo de Einstein e de Stephen Hawking, consegue perceber muito bem a odisseia que o filme mostra. Quem não entender nada disso vê o filme como uma boa aventura inter-espacial com personagens dotadas de sentimentos humanos e esperança na continuação da vida. Realmente “wormholes” (buracos de minhoca ou vermes), buracos negros, teoria quântica e domínio da gravidade, não é propriamente para toda a gente, mas não é preciso perceber muito disso pois no filme também não se explicam as coisas de modo a serem entediantes.

Não interessa expressar aqui o argumento mas, no entanto, aqui fica um cheirinho:

 Cooper (Matthew McConaughey), um engenheiro espacial e ex-piloto da NASA, viúvo, dedica-se agora a cultivar milho em larga escala, numa tentativa de produzir alimento para uma população terrestre que já não consegue sustento suficiente num planeta devastado por catástrofes ambientais, onde a seca, os ventos e nuvens de pó tudo secam e devastam. A sua relação com os filhos é excelente e muito próxima mas, acaba convidado por um cientista a retomar a pilotagem de naves com vista a prosseguir investigações iniciadas por três cientistas que tinham partido para três planetas nas proximidades de Saturno, que tinham deixado de transmitir notícias. A sua filha Murphy (Mackenzie Foy, excelente papel) adolescente, sofre com a separação e pede ao pai que não parta, mas o amor entre eles não segura o astronauta que pretende encontrar novo poiso para continuação da espécie humana. A viagem com alguns companheiros, entre eles Brand (Anne Hathaway) a filha do cientista chefe do processo (Michael Caine), acompanhados do super robot-computador Tars (aqui está um elemento kubickiano, uma espécie do computador Hall de 2001) é atribulada mas atinge o objectivo. Cooper, sempre com a ideia de reencontrar os filhos, inicia o regresso vindo a reencontrar a filha, já numa estação na órbita de Saturno como plataforma para o novo mundo entretanto já possível pela resolução, por parte de Murph, da equação em que o professor Brand trabalhava. Só que Murphy está 60 anos mais velha do que ele, apenas poucos anos mais velho, devido à distorção temporal (teoria da relatividade de Einstein) pelo atravessar do buraco negro Gargantua.

A tentativa de procura de um final feliz, mesmo ao estilo americano, foi do que menos gostei. Mas valeu a pena. Filme a não perder.

 


O Padre Ruy


 Esta andava perdida, mas merece estar aqui:

 

Ruy Correia Leal, filho de um general, na altura comandante da antiga Escola do Exército, apareceu nos Pupilos do Exército como padre capelão. Logo de início o nosso padre mostrou-se totalmente diferente daquilo a que os padres nos habituaram. Além de ser um rapaz novo, era companheiro da rapaziada, acompanhava-nos à praia, jogava futebol com a malta e já dizia o seu palavrãozito de quando em vez. Eu, com 17 anos e no meu 1º ano de contabilistas, começara a pôr em causa a minha fé que, até ali, sempre devotara ao Deus que desde muito pequenino me ensinaram a adorar e respeitar. O meu pai, agnóstico, pedia-me para acompanhar a mãe, minha avó, à missa todos os domingos, além da escola e do estado novo que nos obrigava a frequentar a catequese. Aborrecia-me ter de empinar todas aquelas rezas, melopeias que tinham de ser ditas sem falhar uma vírgula, mas por outro lado, encantavam-me os textos bíblicos e as histórias fascinantes da bíblia das escolas. Sabia quase de cor todos os trechos desde Sansão aos irmãos Macabeus e quejandos. Curioso que era li muita coisa de vários autores, muitos deles ateus convictos que se interrogavam e punham em causa todas as religiões. Não é fácil deixar de acreditar em algo que nos vem sendo inculcado desde criança e, como tal, tinha grandes conversas com o padre Ruy solicitando-lhe explicações para aquilo que eu pensava e para as dúvidas que tinha. De princípio, o nosso padre ainda teve alguma paciência para comigo, mas quanto mais difíceis se tornavam as minha perguntas, a atitude do nosso capelão começou a mudar. Além de nada conseguir explicar-me com alguma coerência, começou a embirrar comigo e a tomar-me de ponta. Ora dúvidas em cima de dúvidas, leitura de livros de ciência que muito iam explicando tornando corriqueiro e lógico o que até aí era considerado divino, afastaram-me completamente da religião e dos deuses. Mas aconteceu pior. Por essa altura eu já namorava uma moça, desde o ano anterior, mais velha do que eu três anos. Um dia de Inverno, mas bonito, depois de um passeio pelos campos, chegados a casa, com o frio enrolámo-nos demais e, palavra puxa palavra festinha puxa festinha acalorámo-nos e …

Se fosse hoje era caso corriqueiro, mas naquele tempo foi complicado. Cheio de problemas, resolvi fazer do padre Ruy meu confidente pensando que os seus conselhos me seriam úteis mas, qual quê, a partir daí se já não me podia ver pelas minhas convicções cada vez mais ateístas, pior ficou tratando-me quase abaixo de cão e dando-me não conselhos, mas só proibições que nada me ajudaram e, quando eu lhe mostrava que o que estava feito já estava e, portanto, a continuação dos factos seria natural, as minhas canelas sofreram as pancadas que o piedoso padre me aplicava com a biqueira das pesadas botas que usava.

O meu pai, pessoa de pensamentos já bastante avançados para a época, acabou por ser muito melhor conselheiro. Naquela época a rapaziada pelava-se por ver umas revistas de raparigas pouco ou nada vestidas e fazíamo-lo às escondidas guardando ciosamente essas pecaminosas folhas. Apareceram naquela altura os primeiros calendários com umas pequenas em “topless”

mas bastante compostas com uns calções curtos bem decentes. Em casa, o meu pai arranjou um e eu pedi-lho para mostrar à rapaziada pilónica. Foi um êxito e perante tal, resolvi colar as folhas nas contracapas dos meus cadernos. Um dia, num estudo presidido pelo padre Ruy, estava eu deleitosamente olhando as minhas ninfas quando fui surpreendido pelo padre com olhos em brasa, tipo mefistofélico. As carteiras eram abertas e as minhas pobres canelas pagaram pelo desaforo por mim cometido contra a moral pública. Quando ingenuamente lhe disse que aquilo era bonito e nada tinha de mal além de que me tinha sido oferecido pelo meu próprio pai, não houve qualquer deus ou semideus que me safasse de mais caneladas e algumas galhetas. Que me perdoem os meus camaradas pilões que gostaram do padre Ruy, mas aquilo não era um pedagogo nem um capelão para uma escola como o Pilão. Levei muitas galhetas de oficiais e professores. Todas profícuas e nenhuma me deixou rancores. As do padre Ruy nunca perdoei. Para conclusão da história digo que não casei com aquela namorada. Ao fim de quatro anos, já era alferes, acabámos o namoro por incompatibilidade de feitios além de que já colocado nas Caldas da Rainha me apaixonei por uma “baixinha” muito bonita. Essa também passou à história devido à minha ida para Timor em 1959. No regresso, à terceira foi de vez e encontrei aquela que ainda hoje é minha companheira. O padre Ruy já faleceu, mas não o esquecerei e não pelas suas boas obras. Se alguém se sentir ofendido com este meu escrito paciência, não foi essa a minha intenção.

 


O que me veio à memória perante um túmulo histórico.


Escrito após uma visita ao túmulo do fundador dos Pupilos do Exército 




(Publicado no Boletim da APE 240 de 2016)

 

Os Pupilos do Exército prestaram homenagem ao seu Fundador General Xavier Correia Barreto, perante o seu mausoléu no cemitério dos Prazeres em Lisboa. A Associação dos Pupilos do Exército, como sempre, esteve presente. No final da cerimónia dirigi-me, juntamente com o Fernando Pires, Ernani Balsa, Ribeiro da Silva e outros, para a porta de saída e acabámos por ficar retidos junto de uns simpáticos gatinhos que apanhavam sol pachorrentamente estendidos em cima de uma plataforma ali estacionada. Os bichanos não escaparam aos olhos dos nossos “profissionais” da fotografia, Pires e Balsa, que os fixaram em vários ângulos e eu pensei logo na nossa querida “Piloa” Ana Oliveira, que tanto gosta dos bichanos. Enquanto isto, eu e o Ribeiro da Silva comtemplávamos um jazigo que ostentava o nome de “Capitão Henrique Carlos da Mata Galvão”, tendo o Ribeiro da Silva proferido a seguinte frase: “O que vocês contemplam na vossa frente é História”.

Esta frase deixou-me a pensar em Henrique Galvão e, talvez pelo meu espírito um pouco aventureiro, o que me veio imediatamente à cabeça foi o livro que ele escreveu em conjunto com Teodósio Cabral e Abel Pratas “Da Vida e da Morte dos Bichos”.

Tinha regressado de Timor com uma perna partida num acidente de moto, encontrava-me no Hospital Militar da Estrela e acabara de conhecer a minha futura mulher, sobrinha de um antigo amigo do meu Pai que me visitara. Esse futuro “tio” por afinidade,, era um homem dedicado aos livros e plantou em cima da minha cama uma biblioteca que eu pensei levar pelo menos uns três anos para ler toda. Dos muitos livros destaquei cinco volumes da obra que acima refiro, levado, como é sabido, pelo meu entusiasmo pela caça, a qual sempre pratiquei desde adolescente, continuei em Timor e pensava continuar a praticar, tal como veio a acontecer pela vida fora, até hoje.

Henrique Galvão foi um aventureiro e a sua vida foi plena de episódios que assim o classificam, mas não se atirava irresponsavelmente para todo o tipo de situações de ânimo leve. Não, Henrique Galvão foi um aventureiro consciente. No início da sua carreira foi apoiante de Sidónio Pais, acreditou nos ideais da revolução de 28 de Maio e foi Salazarista ferrenho. Cedo o ditador o desiludiu e cedo também se tornou seu opositor, combatendo-o ferozmente, o que o levou à Pide, à prisão e à demissão do Exército. Era assim que o sisudo e retrógrado ditador que nos governava tratava os seus opositores. Henrique Galvão refugiou-se na embaixada da Argentina e conseguiu asilo político na Venezuela, voltando a aparecer no episódio do sequestro do paquete Santa Maria, a que deu o nome de “Operação Dulcineia”. Por este nome se pode inferir o seu espírito quixotesco.

Mas não foi para falar da sua vida política que comecei este texto. A sua vida aventureira em “Portugal Colonial”, inspirou a sua veia literária, tendo escrito vários livros brilhantes sobre a vida nas colónias africanas, a sua antropologia e zoologia.

O livro “Da vida e da Morte dos Bichos” é para mim a sua obra máxima e com ele muita coisa aprendi e me serviu para as minhas futuras caçadas, quer em Angola, quer em Moçambique.

O seu amigo Abel Pratas era, como ele, um caçador desportivo. Já Teodósio Cabral era diferente. Caçador profissional, caçou durante anos em Moçambique à moda dos “Boers”, a cavalo seguido por uma carroça puxada a bois onde transportava o equipamento e a comitiva de auxiliares indígenas. Atirador exímio, costumava dizer que para se aguentar uma carga de um elefante solitário era necessária uma presença de espírito para, no meio dos carris, esperar pelo rápido, partir um farol com um tiro, recarregar, partir o outro e saltar para o lado no último instante. Talvez um pouco exagerada, esta frase. Já tive um elefante a carregar para mim e companheiros e não foi preciso tanta destreza. Foi pois com Teodósio Cabral e Abel Pratas que ele caçou durante meses e foi com eles que escreveu o seu livro. No prefácio, Galvão agradece a Teodósio Cabral todos os seus ensinamentos e refere que sem ele e o seu conhecimento profundo dos animais,, o livro não tinha sido possível. Teodósio Cabral, segundo Galvão, era um “gentleman” que sabia viver no mato caçando durante seis meses seguidos e em seguida, na civilização, usar um “smoking” e frequentar a alta sociedade. O seu conhecimento dos animais não era apenas por os conhecer olhos nos olhos, mas também daquilo que deles aprendeu nos tratados de zoologia e literatura sobre fauna africana.

Deste trio de caçadores, investigadores e intelectuais, saiu aquele que eu considero o melhor livro sobre caça e fauna africana. Dividido em 5 volumes:

 

Volume I -Elefantes e Rinocerontes 

Volume  II – O  Hipopótamo , a Girafa, o Crocodilo, os Javalis 

Volume III –  O Leão

Volume IV – Búfalos, Gorila, Leopardos, Antílopes, Etc.

Volume V (Extra-série) - Narrativas de caça Grossa em África

 

Uma leitura deliciosa que me amenizou a estadia hospitalar e me deu imenso conhecimento que mais tarde me foi muito útil.

A título de curiosidade; tive uma tia, Maria Emília Borges Tello, que não conheci por ter falecido muito nova, que foi casada com Carlos Henrique Malta Galvão, irmão do “nosso” Henrique Galvão.

 

 

 

 


Birdman (A Inesperada Virtude da Ignorância)

(Publicado no Boletim da APE nº 241 de 2016)

 

O homem sempre teve o desejo de se transmutar. O actor não é mais do que o indivíduo que sente necessidade de largar o seu ser normal e transformar-se em diversas personagens. No palco ele muda a sua personalidade e, muitas vezes até se transforma naquilo que é realmente, deixando para trás o seu ego de todos os dias, uma representação permanente. Riggan Thomson (Michael Keaton) foi durante anos protagonista de Birdman, uma figura de super-herói que se tornou um ícone, herói na imaginação dos espectadores. Após três filmes, recusa-se a interpretar um quarto, resolvendo voltar ao teatro tentando demonstrar a si próprio que pode ser um grande artista sem Birdman e realizar-se como actor, encenador e produtor. Mas a dúvida persegue-o, assim como o seu próprio personagem que a todo o momento o questiona, pondo em causa a peça que tenta encenar e representar. A voz de Birdman persegue-o e angustia-o. Nesses momentos de dúvida e frustração é dado a fúrias que o tornam até capaz de fenómenos de telequinésia e levitação, fazendo voar objectos que lança contra as paredes. Com ele contracenam vários actores a quem esteve ligado, tais como a sua antiga e também a actual companheiras, pessoas que não o ajudam a encontrar o que pretende, mas antes pelo contrário lhe causam ainda mais constrangimento e ansiedade. A sua própria filha é sua colaboradora tentando dar-lhe algum sossego de espírito mas ao mesmo tempo colocando-lhe culpas por aquilo que não foi e deveria ter sido. Um desses colaboradores é Mike Shiner (Edward Norton), excelente na interpretação, não ficando nada atrás de Micael Keaton, num papel de um excelente actor, também ele demasiado misturado como homem e actor que se diz, em cena, mais verdadeiro e honesto do que na própria vida. Tudo isto num jogo de sentimentos e exploração de pensamentos só possíveis pelo intrincado cérebro humano. Bom seria que o nosso cérebro não se tivesse desenvolvido ao ponto de criar desejos e mitos. Os deuses não existiriam e a vida seria simples e linear. Riggan, cada vez mais endividado e falido, duvidoso de si próprio, cheio de temores pela incerteza do sucesso, cada vez mais atormentado por Birdman, que lhe aparece (durante uma viagem de táxi) e o leva a voar dizendo-lhe “tu és Birdman e só assim te realizarás”, resolve pôr termo à vida aproveitando a última cena da peça de Raymond Carver  " O que falamos quando falamos de amor ", um suicídio do personagem principal perante o adultério da sua companheira, substituindo a arma fingida por uma verdadeira mas, talvez por inépcia ou arrependimento à última hora, apenas atinge o próprio nariz. Já no hospital e com o nariz refeito, é visitado pela filha que lhe leva flores e pela primeira vez, tem para com ele um gesto de ternura. Assim que a filha sai, Riggan olha o nariz no espelho e sorri. Vai até a janela abrindo-a, e tal como Birdman lança-se no espaço. A filha ao regressar ao quarto espreita pela janela aberta olha primeiro para baixo e depois para cima, sorrindo. Birdman libertara-se finalmente.

Parabéns a Alejandro González Iñárritu, mexicano radicado nos USA, pelo excelente filme, filmado como se de uma única cena continuada se tratasse.

 


Vadiar


Resolvi publicar aqui alguns textos que tenho escritos e são anteriores à pandemia.


                         Hoje não houve piscina e era um dos meus dias de fazer natação.                            Um festival ou “workshop” ou qualquer coisa semelhante, ocupou o pavilhão gimnodesportivo e os utentes ficaram sem espaço.

Quando assim acontece ocupo o tempo com uma passeata aqui pelos meus sítios. Apanho um pouco do sol envergonhado, que vai espreitando entre as nuvens, e vou cogitando. Vou reparando em algumas embalagens que as pessoas deixam por aí. Quando tenho um ecoponto perto, apanho-as e meto-as onde deveriam estar.

Reparo que muitas são deixadas para servirem de bebedouro aos passarinhos. Também outras servem para colocar comida para gatos. Má prática essa. Os passarinhos sabem muito bem encontrar água para as suas necessidades. No campo ninguém lá deixa vasilhas.

Reparo também que há muito menos, ou quase nenhuns, gatos selvagens. Os que andam pelos jardins têm normalmente dono. Só que, alguns, abrem-lhes a porta e deixam-nos passear sós. São esses que se aproveitam da “caridade” daqueles que não pensam que estão a poluir o ambiente a contribuir para a proliferação das ratazanas. Essas é que aproveitam as dádivas.

Noto também que não se vêm cães vadios. Há muitos cães, mas a passear com os donos. De trela de estica encolhe lá vão eles pela relva enquanto os donos, de saquinho de plástico na mão, esperam pacientemente que os bichanos resolvam a sua necessidade de alívio intestinal. Vá lá, nisso estamos a ficar mais conscientes, mas em muitas ruas, mais escondidas, ainda temos que fazer “slalom” para não levarmos nas solas o que os donos dos bichinhos têm na cabeça. Tenho um pouco de pena dos cãezinhos por terem pouco espaço para exercício, apesar das trelas extensíveis, os bichos pouco ou nada podem correr. Um cão que viva num apartamento, tem necessidade de correr livremente. Mas, continuando a falar em cães vadios, penso que eles já não aparecem porque a CM os apanha, felizmente sem quase darmos por isso. Pobres bicharocos que já não podem vadiar.

E aqui, atendendo a esta palavra, acho que vadiar até é uma coisa boa, pois eu, quando por aqui vou andando, também estou a vadiar.

O dicionário de português refere: “Vadiar Andar à toa, passear. Levar vida ociosa. Não estudar, não trabalhar”.

É precisamente o que faço.

Esta palavra faz-me lembrar o romance de Jorge Amado; “Dona Flor e Seus Dois Maridos” em que o primeiro marido de Flor, Vadinho, de seu apelido, lhe dizia: “Flor, meu amor, vamos vadiá?”

Boa vadiação a dele, uma actividade que os cachorros, hoje em dia, só praticam quando os seus donos programam o nascimento de uma prole, normalmente com fins lucrativos. 

E assim, cogitando, vou ocupando o meu tempo vadiando por aí…