domingo, 26 de março de 2017

O Sr. Elisiário e os meus 80 anos.




Teria para aí uns onze doze anos, andava no Pilão e, aos fins de semana ou em férias, ia à caça com o meu pai armado de varapau, para ir dando umas pancaditas nas moitas, fazendo muitas vezes saltar um coelhito ou outro para o meu pai atirar e, muitas vezes errar. Lembro que caçava com o grupo, o Sr. Elisiário a quem carinhosamente todos tratavam pelo velhote. Os caçadores e eu próprio, pasmávamos como o senhor, já com 79 anos, ainda andava quilómetros a acompanhar-nos o dia inteiro. Sempre com as suas calças de cotim, uma camisa cinzenta de manga comprida e um boné de pala, o velho Elisiário lá estava no meio de nós aquando das caçadas. Com a sua espingarda calibre 12, de cães de orelhas, muito usada, já um pouco curvado, lá ia andando e atirando aos coelhos quando algum lhe passava a jeito. Não era grande atirador. Comprara a espingarda em segunda mão (eu diria terceira ou quarta) há pouco tempo, pois também há pouco largara o pau de caçador batedor. Mas o que mais me admirava era a sua estoicidade e a capacidade de caminhar por montes e vales atrás de nós como se tivesse trinta anos. No dia seguinte “o velhote” lá estava com a mesma fardamenta, equipado com uma enxada de dois bicos, a cavar a horta no quintal e a limpar a meia dúzia de árvores de fruto que possuía. “Bom dia Sr. Elisiário” dizia eu ao passar na estrada junto ao gradeamento. “Bom dia menino” dizia o nosso “velhote” nunca se esquecendo de tirar o boné da cabeça.
Lembro esta figura da minha infância a propósito dos meus 80 anos (completados hoje). Agora compreendo o Sr. Elisiário por eu próprio ainda caçar manhãs inteiras às perdizes e ser capaz de saltar os estuporados aramados sem me deixar ficar para trás da outra “rapaziada”. Se me chamassem velhote, ficaria, não diria melindrado, mas um pouco admirado, até porque muitos dos companheiros andam na casa dos setenta e picos e, quando sozinho, lembro-me do “velhote” Elisiário”.
Quando somos muito novos temos tendência de ver os outros, já adultos, como velhos. À medida que vamos crescendo e envelhecendo, essa tendência vai mudando e nós próprios nos tornamos sempre novos.
Passados alguns anos o Sr. Elisiário deixou de nos acompanhar e, eu ao passar na estrada para a estação de caminho de ferro, olhava para o quintal na esperança de o ver, mas ele já lá não estava. Faleceu pouco tempo antes de eu deixar o Pilão, teria os seus 87 anos.  Caçou, é certo mais moderadamente, quase até ao fim.
Espero ainda caçar por mais alguns anos apesar de agora menos vezes, dado que já não temos a nossa Associativa, mas ainda tenho alguns convites da “rapaziada” amiga. Espero também andar atrás das perdizes recordando o “velhote” Elisiário. Se fosse crente, e acreditasse na vida para além da morte, certamente o “velhote” estaria sentado numa nuvem de espingarda a postos, de tocaia aos coelhos celestes, provavelmente brancos.


domingo, 19 de março de 2017

A Caça


(Parte de um capítulo de O Lagarto)

– "Ó rapaz, se um dia, por qualquer motivo deixas de caçar, vais ser um infeliz."
A mulher não gostava nada dessa sua actividade. Qualquer ocupação que o marido tivesse em que ela não participasse, não era lá muito apreciada. Era uma questão de possessivismo. O marido era dela e para ela. A caça era para ele e outras companhias de que ela não fazia parte. Isso incomodava-a, mas ajudava-o preparando o petisco para o almoço que no dia seguinte ele comeria juntamente com o grupo dos outros caçadores seus companheiros de jornada. Ele bem sabia que, no fundo, aquela sua actividade, não era lá muito bem-querida pela sua mulher. Por norma ficava só quase todos os domingos durante a época cinegética e tudo que a afastasse dele entristecia-a. Por outro lado, também sabia, que tudo aquilo que lhe dava prazer, era por ela tolerado e apoiado. Trabalhava uma semana inteira numa profissão de desgaste intenso e aquela actividade ao ar livre era uma panaceia que lhe devolvia a força para enfrentar a realidade da semana seguinte. Nada lhe dava mais prazer do que aquela simbiose com a natureza, aquele descanso de alma que se sente no campo, a caminhada, o convívio com os companheiros, a companhia do seu parceiro fiel, da conversa que com ele ia mantendo durante a procura, esquecendo-se ou nem sequer tendo noção de que o bicho não responderia por palavras mas que os sinais que lhe devolvia se transformavam nas ditas que naturalmente não poderia pronunciar. A prática do tiro era outra actividade que também o preenchia apesar do pouco tempo de que dispunha para o praticar no clube, onde era sócio. O tiro na caça era uma satisfação. A arma levada ao ombro num movimento coordenado, rápido mas suave, a cara sobreposta sobre a coronha, o cano no seguimento da linha dos olhos, o seguir da peça, o passar por ela, o disparar sem parar o movimento e aquela sensação da peça abatida mesmo antes de ser atingida era um prazer quase orgástico. Mesmo quando as coisas não corriam bem e errava o tiro, não sentia frustração e logo partia para outra ainda com mais vontade na procura. Achava muito engraçada a atitude do seu cão, quando após dois ou três tiros e a peça não caía, o bichano o olhava com alguma interrogação como que perguntando: como aconteceu isto? Então o bicho foi-se? Mas logo abanava a cauda como quem lhe perdoava o erro e o incentivava a prosseguir sem esmorecimento.
Às vezes, no convívio com casais amigos, era confrontado com opiniões contra a caça numa defesa exagerada dos direitos dos animais, na defesa dos bichos selvagens e da preservação das espécies. Defesa normalmente efectuada por fundamentalistas urbanos sem terem qualquer conhecimento da natureza, do interior do país, dos usos e costumes das populações. Pessoas que cresceram arrastando rabos obesos sobre cadeiras de cafés e discotecas, que nunca viram um bicho nascer ou morrer, que se esquecem de que os bifes que deglutem sofregamente são provenientes de um animal que sofreu com o abate, que não diferenciam um coelho duma lebre, que nunca viram uma vaca sem ser em imagem ou no prato transformada em tornedó. Estes indivíduos vêm o caçador apenas como mais um predador, esquecem-se que um caçador que se preze é um amante da natureza, protege e faz renovação de espécies, faz planos de abate de forma a não causticar espécies e permitir que o desenvolvimento da próxima época seja maior que o da anterior. Esquecem que após a liberalização que se seguiu à revolução de Abril, a abertura desordenada de direito à caça, ia acabando com as espécies e que agora, com a ordenação do território cinegético, as associações de caçadores voltaram a por em ordem a actividade, estando à vista os resultados na criação e desenvolvimento da caça que tanto prazer dá a milhares de pessoas além do interesse económico que tem para o país.
Naquele dia começaram muito cedo. À chegada, após os cumprimentos, ditos e graçolas lançados aos companheiros que não via desde a semana anterior, organizaram portas e linhas, dispuseram os lugares, chamaram os cães e empreenderam a marcha. Chapéu na cabeça, aba ligeiramente flectida sobre o olho direito, para tapar do sol ainda não nascido, mas a mostrar já a sua claridade, arma cruzada à frente do peito, cartuchos inseridos, último sinal ao cachorro para moderar o andamento, iniciaram a marcha.
Poucos metros andados, a atitude do seu companheiro canino deu sinal de caça próxima. A excitação começou a apoderar-se de todo o seu corpo. Os dedos seguraram a arma que foi pondo a jeito. Os sinais eram cada vez mais de caça próxima. À paragem do cão, aproximou-se com cuidado tentando adivinhar para que lado a perdiz iria saltar. Esperou um pouco e deu voz ao cão: – Anda com ela!
O tiro atingiu a perdiz em cheio que morreu instantaneamente. Quando o seu companheiro lha deixou na mão o ciclo completou-se. Perdiz, cão e Homem tinham-se encontrado.
Ao almoço, a descrição da caça àquela perdiz, era feita com gestos e sons algo exagerados pela loquacidade um pouco provocada pela ingestão das iguarias, sempre tão saborosas quando comidas ali no monte e também por alguns vapores do bom vinho indispensável nestes almoços.
Ali, os homens provavam e demonstravam não serem matadores de bichos, mas apenas caçadores.

sexta-feira, 10 de março de 2017

Primeiros tempos em Timor


Capítulo de "O Lagarto". Mais um episódio passado em Timor, já lá vão uns anos bons...


...
O Alferes na moto com a caçadeira a tiracolo, arrancou direito à ribeira de Lautem. Ali, as rolas e codornizes eram muitas e podia, com poucos tiros, apanhar bastantes. De miúdo sempre lhe ficara esta mania da caça. Desde lagartixas a todos os bichos, logo que podia, lá se dedicava a apanhá-los com aquele vício terrível de predador sem necessidade. Naquela terra sentia-se em casa, bicharada não faltava. Horas depois com uma cinturada de rolas lá voltava para Dili. Em casa do seu amigo Pilão, bastante mais velho, que conhecera na viagem, deixava a caça, que depois de bem cozinhada pela sua mulher, servia de pretexto ao almoço em conjunto. As relações conseguidas eram absolutamente necessárias ao equilíbrio emocional de um jovem que deixara a casa paterna, namorada e amigos para servir militarmente no Ultramar. Naquela altura e tempo, jovem e ingénuo que era, não se dava conta de como as pessoas, na sua complexidade, de mentalidades tacanhas a viver em terras distantes e climas inóspitos, pensavam. Um dia, o seu amigo pediu-lhe que não fosse tão assíduo na sua casa. Quando percebeu o porquê, ficou completamente arrasado. Mas acabou por compreender. A mulher do seu amigo era uma mulata linda, terna e filha daquela terra quente. Muito mais nova do que ele, era alvo fácil das conversas maledicentes das gentes que, na maioria, incultas e desocupadas, nada mais tinham dentro das mentes que pensamentos arrasadores das virtudes de quaisquer mulheres que mais assiduamente mantinham contactos com os militares oriundos do continente, prestando serviço naquelas paragens. Mais tarde veio a perceber que muitas vezes havia razão para tal.
Em Timor, terra de muita miscigenação, proliferavam filhos, na sua maioria, de antigos deportados que Salazar para lá enviara. Estes, lá longe, deixariam de pensar em “aventuradas” políticas que poderiam pôr em causa a sua liderança num País que o ditador queria calmo, pobre, quieto e não muito evoluído, para assim não se oporem à sua liderança de homem “sóbrio, sapiente, determinado, crente, e patriota”. O “seu” Portugal, enquanto ele pudesse, “não seria palco daquelas malucadas vividas nos Países, ditos democráticos, em que os Governos eram permanentemente alvo de contestação”. Estes deportados, ao fim de alguns anos, por força da sobrevivência, tornavam-se cultivadores do belo café de Timor e, então já abastados, acabavam em membros do Conselho do Governo, apoiando o Governador salazarista, lá colocado. Os seus filhos rapazes, normalmente puxavam mais para a sua terra e suas gentes, acabando por casar com outras mulatas ou até a amancebarem-se com mulheres naturais. Pelo contrário as raparigas tinham voos mais altos, quase todas sonhando com o casamento com um branco que as levasse dali até ao sonho metropolitano, que não conheciam, mas, do que ouviam, julgavam ser o eldorado. Claro que, os militares, único alvo possível, quase sempre se aproveitavam, mas poucos se deixavam prender. As moças, coitadas, acabavam por casar com os seus iguais, muitas vezes levadas pelo romantismo e sonho. Já que não tinham conseguido o objectivo total, deixavam-se enredar em relações extraconjugais com os “amigos” que assim conseguiam fugir a uma estadia que, sem aconchego, namoro e sexo, seria forçosamente um degredo.
Quando compreendeu a situação deixou de usufruir da companhia do seu amigo em sua casa. Limitou-se a encontrá-los no clube ou noutros locais, mas fugia ao convívio mais permanente. Não soube se a mulher dele, moça encantadora e fidelíssima, percebeu a mensagem. Se sim, nunca o deu a entender.
O seu tempo passou a ser mais ocupado com a caça aos veados, a caça submarina e o convívio com os seus camaradas. Aquela terra era um Paraíso. Sossego, bicharada, paisagens de sonho, praias maravilhosas, calor... Pois... o calor... O calor é afrodisíaco, mesmo que se não queira a testosterona não deixa um homem em paz e, as raparigas começam a ser obsessão, mesmo contra tudo e todos, mesmo contra as convicções, acabando-se envolvido em casos amorosos complicados. Com ele assim aconteceu.
Parece impossível, mas aquela terra, que o Salazar se esforçava para mostrar como portuguesíssima, com um Povo Patriota e orgulhoso de ser Português, foi dos territórios do Império, o mais difícil de pacificar. Ainda no século XX, no tempo do Governador Celestino da Silva, houve campanhas militares de pacificação, com surtos ao interior, e muitas mortes entre a população dissidente.
Estava-se em 1959. Uma tentativa de sublevação fora descoberta, tendo originado, na sua repressão, dezenas de mortes, prisões e deportações. Muitos desses dissidentes, deportados para outras “províncias ultramarinas”, só puderam regressar à sua Terra após 25 de Abril. 
Mal chegado, teve de patrulhar a cidade, de noite, armado até aos dentes, prevenindo qualquer atitude mais temerária de possíveis seguidores dos então detidos. Foi nessa altura que, da Índia, chegou a primeira Companhia de soldados brancos continentais. Até aí toda a tropa era indígena sendo metropolitanos apenas os quadros. Parece impossível, mas, com a chegada desses homens, duplicou a população branca de Dili. Veja-se o que era aquela Terra!...
Felizmente, nós, com a nossa maneira simples, sortuda e desenrascada de fazer as coisas, conseguimos dar a volta à situação acabando com as veleidades dos golpistas e Timor voltou a ser o Paraíso na Terra. Ainda bem para o rapaz, que conseguiu tirar da sua estadia o melhor partido, tendo vivido boas e maravilhosas aventuras sempre bem acompanhado e acarinhado. Conseguiu partir uma perna, ter problemas com a cura durante muitos meses e, quase não deu por isso. Quando se é jovem, cheio de vida e sonhos, as contrariedades passam sem darmos por elas.

sábado, 4 de março de 2017

A partida à Mãe

Continuando a respigar alguns textos tirados de outros escritos meus, aqui fica um que faz parte do meu "best seller" (eh...he...eh...) autobiográfico "O Lagarto". Perdoem-me algum vernáculo, mas descrever brincadeiras de putos sem uns palavrõesitos, até ficava mal.
...
O puto chegou ao quintal, cagou as mãos de lama tendo antes metido o lagarto no bolso das calças com a cabeça para dentro. – Oh mãe tira-me aqui o lenço do bolso que tenho as mãos sujas...
Pobre senhora. O susto que levou deixou-a sem fala. Nem os gritos saíam da garganta. Até o puto que ria que nem um possesso, ficara depois arrependido da brincadeira não fosse dar algum trangolomango à pobre Mãe que no fundo tão carinhosa era e tão bem o tratava. Depois, pedia desculpa choroso prometendo não voltar a fazê-lo e, também com algum medo que ela fosse contar ao Pai que não era para brincadeiras.
O Pai era companheiro, tinha feito sacrifícios para que o filho estudasse num bom colégio, mas confiava nas capacidades do puto, não chateava com aquelas merdas do vai estudar olha que se não estudares não sais, não senhor lá nisso era bestial o puto lá sabia que aquilo era para seu bem e, portanto, tinha obrigação mas, se as polantices fossem grandes e passassem das marcas... mais valia fugir pois as galhetas eram fortes e bem aplicadas, no entanto lá companheiro era, iam os dois à caça e uma vez por outra até o deixava dar um tirito com a caçadeira, normalmente aos tordos poisados nas oliveiras. Recordava as paródias nas adegas dos amigos quase sempre nas provas da água-pé ficando as caçadas muitas vezes por ali por, às pernas, pesadas demais, a caminhada já não apetecer. Também lembrava as ajudas que deixava dar nas reparações caseiras e na feitura das capoeiras dos coelhos e galinhas de que tanto gostava. Não eram campesinos, antes pelo contrário, de uma família médio-burguesa lisboeta, um Avô paterno que com um curso de Farmácia se estabeleceu em Angola por onde fez andar a família cá e lá e por lá morreu, mas o Pai sempre teve a ideia de viver no campo e assim o fez. Por um lado ainda bem, pois ver passar a juventude metido num andar ou a roçar o cu pelos cafés seria o fim. Assim, apesar de próximo de Lisboa, viver no campo era uma maravilha e, por lá aprender a vida com pastores de cabras e putos de pé descalço, coisa que queria imitar mas nunca foi capaz, sempre teve uns pés de prima-dona, qualquer pedrinha lhe dava cabo da pele e lá tinha de calçar as sandálias. Maricas... maricas... gritavam eles vendo que mal conseguia correr com as sandálias ao pescoço parecia um pardalito saltitando para evitar as pedras pontiagudas que teimavam em foder-lhe os pés. - Vão para a puta que os pariu, vou, mas é calçar-me e deixar as pedras para as cabras e para vocês, cabrões. Estes epítetos eram costumeiros e não ofendiam, a linguagem era livre entre a rapaziada que não via nas palavras significados pejorativos. Aliás toda a gente sabe que as palavras à força de repetição perdem o significado. Se não acreditam experimentem. 
O que se “rénava”, as caçadas aos grilos, as passarinhadas conseguidas com ratoeiras (costelas) e fisgas. A fisga... Ainda hoje existe… era o símbolo da força, a arma de então. Normalmente feita com uma vara bifurcada de oliveira ou acácia e elásticos de câmara-de-ar que se comprava no Pai do Joca, ferro-velho abastado, mas que nunca deu nada a ninguém, e lá iam os dez tostões que a Mãe desencantava depois de muito instada. Eram uns autênticos malabaristas conseguiam acertar numa caixa de fósforos das pequenas a 20 metros de distância. As desgraçadas das lagartixas também serviam de alvo, pobres bichos. Já namorar e andar de fisga no bolso muitas vezes largando a miúda no meio duma grande beijação para tentar lixar um ou outro melro, que incauto poisava perto, era costumeiro. Muitas vezes saía-se pelas 7 da manhã e lá se ia para o campo colocar as ratoeiras. Armados de frigideira, um bocado de banha de porco, um pouco de sal e a fritada era feita mesmo ali depois da passarada depenada e arranjada com o canivete que se guardava numa cova das serras não fossem os Pais dar com ele e era o cabo dos trabalhos, armas brancas consideradas perigosas para eles ou os outros não eram permitidas. Incongruências de adultos que depois os mandavam à erva para os coelhos armados de foices afiadas ou de enxadas de bicos para tratarem do quintal. Como se o canivete fosse arma perigosa e as ditas alfaias apenas servissem para o fim em vista. Outras vezes com uma enfiada de minhocas e uma cana-da-índia, armados de chapéus-de-chuva velhos lá iam em dias de enxurrada quando a água estava bem barrenta, fazer grandes pescarias de enguias que naquele tempo proliferavam numa ribeira onde hoje só corre merda. O canivete servia para os golpes certeiros na nuca das bichas causando-lhes morte imediata impedindo assim a fuga das alcofas de palha, as mochilas daquele tempo. Desde aí o peixe de água doce, sempre lhe soube a minhocas, pelo menos ao cheiro que ficava nos dedos depois da faina.

quinta-feira, 2 de março de 2017

CAÇADAS

Em 1993, o nosso Boletim (Associação dos Pupilos do Exército) fez 50 anos. No trimestre de Out/Dez, o boletim nº 149 foi comemorativo da efeméride. O título desse boletim foi: “Os Pilões de Sempre”. Para esse boletim, muitos ex-alunos contribuíram com os seus escritos. Eu também fui convidado para o fazer e foi a primeira vez que contribuí com algo para a nossa publicação. Resolvi então escrever sobre “Caçadas”. Troquei de computador e passei os conteúdos para a nova máquina. Como foi a primeira vez que passei dados de um computador para outro, meti água e aqueles escritos foram-se. Encontrei agora um exemplar desse boletim e aproveitei para recuperar esse meu artigo. Aqui fica, no meu blog, para a posteridade.

1 – Lembranças do velho Pilão

Ainda hoje quando vejo uma lagartixa tenho a tentação de agarrar uma palha de aveia brava, elaborar um impecável laço na ponta, e dar-lhe caça imediata como fazia há quarenta e tal anos atrás no célebre muro da ribeira na 1.ª Secção.
Era um muro que exercia atracções várias. Desde a caça às ratas, em que o velho e saudoso Bily, cão fogoso e destemido que agarrava tudo o que fosse bicho, nos ajudava, passando pela serventia que tinha para o “salto”, até à caça das lagartixas, para tudo servia.
Sempre que havia oportunidade, normalmente acompanhado pelo Isca (19480251), pelo Calhau (19480247) e alguns outros que certamente o recordarão ao lerem esta lembrança, lá estava eu de palha em punho espreitando as pobres bichanas que ao sol, incautas e preguiçosas, esperavam pacientemente que as moscas se colocassem a distância necessária para que com um salto repentino lhes servissem de almoço.
Depois de várias peripécias e já com algumas lagartixas penduradas, o Isca, o mais irrequieto de todos nós, inventava um divertimento que consistia em fomentar lutas titânicas entre os pobres repteis que, enfurecidos pelo cativeiro, se tornavam ferozes crocodilos mordendo-se mutuamente. Depois, soltos e colocados novamente no muro, os bichos serviam de alvo às certeiras pedradas lançadas pelas fisgas que sempre nos acompanhavam. Os pobres animais raramente escapavam à brincadeira da rapaziada que agia sem maldade mas apenas por gaiatice.
Hoje o muro da ribeira não existe. Os imperativos da urbanização não se compadecem com velhas recordações. É sempre com saudade que passo pela 1.ª Secção e me revejo junto do muro, com os velhos companheiros à caça das lagartixas, como se os quarenta anos passados não tivessem existido.

2 – Lembranças de África

No planalto imenso a quietude era apenas perturbada pela ondulação da folhagem e pelo gritar das aves.
Semi-deitado no banco do jeep deleitava-me com a paz circundante enquanto saboreava a merenda acompanhada de cerveja enlatada já meia mole.
A hora era de paragem. O crepúsculo não permitia a visão, mas era cedo para ligar o farolim. Os homens, deitados sobre o capim, sussurravam talvez relembrando anteriores caçadas.
A escuridão caiu sobre nós. Peguei na velha 375 e fiz sinal. A paz da savana foi que quebrada pelo falatório e movimentação dos homens preparando o material. Os motores roncaram, acenderam-se as luzes, e a caçada começou.
De 375 nos joelhos, saltando a cada solavanco, ia dizendo graçolas ao Lino que, com o farolim varria todo o mato à nossa volta.
Dava gosto observar como aquele homem farolinava. Ele não via, lia no terreno e na vegetação. Com uma única passagem observava o rasto dos animais, os seus excrementos, a direcção por eles tomada e pelas ramagens sabia se os elefantes por ali tinham anbdado. A sensação de caça próxima excitava-me, o meu condutor, homem que conduzia com um olho no bicho outro na picada, disse-me: “Quando as encontrarmos já sabe, apenas um tiro e mortal como de costume. “OK” respondi “já sabes que comigo eles não sofrem.
Mal acabara de falar quando um sinal do Lino me levou a seguir o foco do farolim mostrando-me ao fundo uns olhos bem luminosos. Muito silenciosamente aproximámo-nos das pacaças já alerta pelo ruído e pela luz. Levantavam e baixavam as cabeças denotando inquietação e curiosidade. Quando persentiram o perigo arrancaram. Como que impelido por uma mola o jeep deu um salto e a perseguição começou.
De cotovelos fincados do pára-brisas, baixado sobre o “capot”, e fazendo esforços para me aguentar, apontei ao maior macho que galopava 30 metros à nossa frente. O tiro partiu. O animal atingido desmoronou-se sob um manto de poeira, enquanto os restantes se dispersavam sumindo-se na escuridão. Parámos no momento em que o pacação se levantou. Ficámos frente a frente durante alguns segundos. No silêncio que se seguiu admirei o belo animal que, com chispas no olhar enfrentava os seus inimigos. No instante em que investiu o tiro atingiu-o no coração. Aproximámo-nos. A excitação foi-se esbatendo lentamente enquanto descia do “jeep”. Olhei mais uma vez o corpulento animal abatido.
“Carreguem-no” disse para os homens que, entretanto, se tinham juntado a nós. “Dois tiros? Está a perder qualidades” disse-me o condutor com ar gozão.
Sorri-lhe e dirigi-me ao “jeep” pensando que nem um devia ter dado, mas a febre da caça tomou-me de novo e preparei-me para seguir o rasto da manada que não devia estar longe.

3 – Caçada aos facocheros

O carro ziguezagueava por entre troncos, pedras e buracos. Em cima os caçadores procuravam não acabar no chão ou com a cabeça esmagada contra alguma ramagem. Os tiros, forçosamente mal apontados, iam partindo e deixando no chão rasgos junto dos bichos. A excitação era grande. A poeira secava e entupia as gargantas. O condutor fazia prodígios para se manter na rota dos animais, que serpenteavam escolhendo os piores caminhos. De solavanco em solavanco, tio a tiro, empolgados pela correria, lá iam seguindo os porcos. Um dos animais caiu varado. O carro parou. Alguns tiros para os que fugiam, perderam-se no mato. Tremendo de emoção e excitação, os caçadores sentaram-se junto do facochero abatido. Acenderam-se cigarros. Um dos companheiros falou: “Um dia destes ainda partimos a cabeça”. Todos sorriram. Carregaram o animal, subiram para o carro e continuaram a caçada.

4 – Homens e Bichos

Homem e bicho olharam-se. Nenhum alterou a sua imobilidade. Ambos conheciam o seu valor. Homem que não foge, quando se encontram, é homem habituado à caça e não tem medo. Aquele então, olhava a direito e de forma fixa. Não era um olhar de ódio, mas de admiração e desafio. O primeiro a movimentar-se foi o bicho levantando-se pachorrentamente. Bocejou e voltou costas. O homem levantou a arma e apontou. O bicho, após alguns passos, voltou-se e fixou o adversário. Os olhares cruzaram-se. Ambos sabiam que um movimento mais agressivo podia ser a morte. Após alguns segundos, o bicho seguiu o seu caminho e a arma quedou-se emudecida.