terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

POSEIDON E NEPTUNO

Escrevi este texto já lá vão 4 anos. Penso até que já postei, parte dele, aqui. Está na altura de o recordar em honra dos amigos que nadam comigo na piscina.

Mergulhei. A coluna precisa de exercício. Aquelas picadas de Angola e Moçambique deram-lhe muito trabalho. "Precisa de músculos." Disse-me o clínico. "Para aguentar os machucamentos que isso foi tendo. As almofadas também já estão gastas. A idade não ajuda. Olhe que nadar fazia-lhe bem."
Fiz-lhe a vontade. Lá ir todos os dias ao hospital para a fisioterapia é que não vou. Antes lumbágico.
Agora, ali mergulhado, olhava, através dos óculos protectores do cloro, os ladrilhos do fundo da piscina. Os reflexos dourados provocados pela luz solar penetrada através das vidraças da grande janela e movimentando-se na água límpida, pareciam-me fulgores cintilantes desprendendo-se do nada e vindo até mim como mensagens telepáticas, mas visíveis, de um qualquer “Poseidon” de água doce. Fossem ou não missivas de um ser do Olimpo das profundezas, o certo é que me traziam uma enorme sensação de bem-estar, relaxamento e faziam-me esquecer a porcaria em que o meu País se tornara (isto em 2012). O meu pensamento, normalmente inquieto, entrava em letargia.
E pensei; “Lá está a natureza mítica do homem a criar deuses para sossego do seu cérebro irrequieto e temeroso.”
Nadei, mergulhei, procurei e nada encontrei. O deus enviador de luz calmante, não estava lá.

Ao sair da água voltei à realidade. Mas eles estavam lá.

Poseidon versus Neptuno

Poseidon estava sentado sobre um casco de navio afundado quando reparou que uma concha puxada por golfinhos se aproximava. Era Neptuno que o vinha visitar. Poseidon preparou-se para o receber. Já sabia que iam discutir. Nunca se entendiam. Cada um reivindicava a supremacia sobre os oceanos.
 Olá Poseidon – disse Neptuno. – Sentado num casco de navio? Que fazes aí?
 Este, onde me sento, foi baptizado pelos homens com o meu nome. Quem os autorizou a isso? Darem o nome do deus dos mares a uma casca de noz. Como se um simples objecto criado pelos mortais merecesse o meu nome. Para provar que sou o mais poderoso, virei-o ao contrário afundando-o. Foi giro ver todos aqueles seres mesquinhos e pequenotes a tentarem salvar a pele. Morreram quase todos e, não foram todos porque alguém tinha que ficar para contar a história. Vens tu agora, usurpador do meu trono, ou por outra, em tentativa de usurpares o meu trono, colocar algo em causa?
 Estais enganado, o rei dos mares sou eu, assim determinaram os senhores do mundo, que me criaram. Os Romanos assim o quiseram e assim será.
 Rapazola de um raio, quando apareceste já eu reinava há muito sobre os mares. Os meus criadores, os Gregos, eram os detentores das ciências, das filosofias e das artes. Os teus senhores, esses miseráveis Romanos, vieram muito depois usurpar tudo o que de bom os gregos deixaram. Criaram então deuses para substituírem todos aqueles que já por cá andavam, mas as bases são gregas e os principais deuses também. O reino dos mares é meu quer tu queiras ou não.
 Isso veremos. Fui eu que deixei ou permiti que muitos povos percorressem os mares. Fui eu o cantado por Camões e, até Fernando Pessoa, o ilustre poeta português, que me colocou em terra personificado no “mostrengo”, aquele que defendia dos mortais o cabo tormentoso, só se tornando de “Boa Esperança” depois de eu deixar passar aquele povo heróico que descobriu mais de meio mundo. Eu permiti a passagem aos homens, tu mataste-los por ignomínia. Tu que foste engolido pelo teu pai à nascença. Tu que só por bondade de Zeus foste regurgitado por Cronos. Não tens direito a reinar aqui.
 Ah! Ah! Ah! Pobre réplica de mim. A história está cheia de réplicas de deuses como tu. Foi a nossa história, que os teus pais romanos estudaram. Foi essa que copiaram para fazerem seus os nossos deuses. Fizeram-te filho de Saturno e irmão de Júpiter e Plutão. Chamaram-te deus das fontes das águas e também dos terremotos. Que tinha a terra a ver com o mar? Esses romanos eram loucos. Tenho a impressão que houve já alguém a dizer isto… Parece-me que foi o Asterix…
 Asterix? Não conheço.
 Claro! És um ignaro e uma fraude. Asterix foi um que nunca se subjugou aos teus patrões e sempre os combateu nunca lhes permitindo ocupar a sua aldeia na Gália, a Armórica. Foram homens como ele e os seus pares, os percursores da vossa queda. O pior é que outros vieram e outros deuses também criaram, tornando a nossa história em mitologia. Um dia os deuses deles também virarão mitologia e outros deuses aparecerão. Parece que a humanidade, esses pobres seres, não sabem viver sem deuses.
 Caro Poseidon, antes que os nossos tridentes se cruzem, vou dar uma volta por aí. Vai mas é para Copenhague e deixa-te lá ficar sobre um pedestal, eu volto para Florença. Fico numa das fontes que criei.
O fundo da piscina reflectia raios dourados como hexágonos que ora se alongavam ora se contraíam como raios eléctricos, chamando-me à realidade. Perdi de vista os deuses que me ocuparam a mente durante segundos e saí para o balneário. Já debaixo do chuveiro constatei que o Asterix também não tinha toda a razão. Não só os Romanos eram loucos, toda a humanidade também…


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Concerto para violino e orquestra de Tchaikovsky


(Publicado no Boletim da APE nº 223/11)

Esta é uma das mais sublimes melodias saídas do cérebro de um génio. Pyotr Ilyich Tchaikovsky

Piotr Ilich Tchaikovsky nasceu em Maio de 1840, na cidade de Kamsko-Votkinsk, na Rússia, filho de um ucraniano e de uma russa de ascendência francesa. Desde cedo começou a interessar-se pela música e aos cinco anos já aprendia algumas árias com sua mãe, num velho órgão mecânico da sua casa. Foi em São Petersburgo que o compositor teve as primeiras aulas musicais com diversos professores particulares. A família queria que fosse advogado. Cursou Direito, tendo sido um estudante aplicado e, tendo, ao mesmo tempo, sido empregado no Ministério da Justiça. Em 1863 decide dedicar-se inteiramente à música abdicando da carreira jurídica e matricula-se, por três anos, no Conservatório de São Petersburgo. Mais tarde deu aulas de Teoria Musical e Composição. Foi professor até 1878. Viaja depois pela Europa onde trava conhecimento com grandes mestres e compositores.
O Concerto para violino e orquestra foi composto em 1878 com o intuito de ser pela primeira vez tocado por Leopold Auer, um virtuoso professor de violino da época, mas, por estranho que pareça, este recusou-se a interpretar a peça por achar que a mesma era impraticável, o que deixou o compositor deveras abalado. Mas, em Dezembro de 1881, o seu concerto estreou em Viena interpretado por Adolf Brodsky que se atreveu a executá-la. Auer, muito mais tarde, viria a rever a sua posição e acabou por interpretar a peça que anteriormente rejeitara.
Tchaikovsky não teve uma vida feliz. Problemas com as suas tendências homossexuais, leva-o a escrever ao seu irmão que, para acabar com os rumores e maledicências e, também para tentar livrar-se da sua obsessão sexual, vai casar-se. Casa-se então com uma aluna do Conservatório de Moscovo, Antonina Miliukova. Esse matrimónio obviamente que não resultou, inicialmente porque a sua esposa não se interessava pelas suas composições e projectos mas também porque o compositor não conseguia livrar-se das suas tendências. Foi apresentado, por Rubinstein à baronesa Nadyezhda von Meck, que atraída pela obra de Tchaikovsky o incumbe de algumas transcrições para violino e piano mas, mais tarde, torna-se no seu mecenas, sob a única condição de comunicarem somente por carta. Essa correspondência durou catorze anos, sem nunca se terem visto. O mecenato livrou Tchaikovsky das suas dificuldades financeiras.
Tchaicovsky compôs todo o género de música e toda ela sublime. São conhecidíssimas as suas obras para “Ballet” tais como:
 Lago dos Cisnes, O Quebra Nozes, A Bela Adormecida, entre outros. Nas aberturas, a sua “Abertura 1812” dedicada à vitória russa sobre Napoleão é uma portentosa e empolgante peça musical. E nas óperas, a também célebre, “Eugene Onegin” além de várias sinfonias e concertos.
Lembro-me de, em S. Salvador do Congo, acordar muitas manhãs, ao som maravilhoso do concerto para violino, de três andamentos, interpretado por um genial violinista, de seu nome David Oistrakh, para mim o melhor executante de muitos que já ouvi interpretar este famoso concerto. Mais tarde, o seu filho, com o mesmo nome, foi também um excelente violinista, mas sem chegar ao virtuosismo do pai. Era um disco pertencente a um dos meus furriéis, apaixonado por música clássica e cantor no coro do nosso Teatro de São Carlos. Nunca me cansei de escutar esta obra sublime e ainda hoje o faço principalmente em momentos mais negativos. Recolho-me na minha sala, de porta fechada, e deixo-me envolver. Remédio santo!
Neste concerto, a primazia é dada ao solista, mas a orquestra está lá e, nos momentos certos, irrompe com uma sonoridade impressionante sobre o tema que o solista nos oferece.
Hoje na internet está lá tudo. Podem ver e ouvir grande parte do 1º andamento deste concerto pelo grande David Oistrakh, é só seguirem o “link”.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Árias, aberturas, adágios e quejandos.

Gosto de livros e gosto de música e muita coisa sobre isso já coloquei aqui no blog, o que escrevi abaixo foi publicado no Boletim da Associação dos Pupilos do Exército e, portanto, muitos já conhecem. Se sim passem ao lado. Para quem não conhece é uma sugestão para que oiçam boa música


Hoje vamos falar simplesmente de música. A música, a chamada “boa” música, é como o cinema. Assinalo a palavra boa porque boa é toda aquela de que nós gostamos, seja ela clássica, moderna, rock ou pimba. E digo que é como o cinema, porque ver um filme no sossego e ambiente de uma sala própria, não é a mesma coisa de o ver em casa na TV. Na nossa sala, jantamos, a mulher fala, o cão ladra, a porta toca, os putos berram e nós acabamos por ver o filme atravessado, perdendo normalmente pormenores de muito interesse. Com a música é a mesma coisa. Esta deve ouvir-se ou em salas de concerto ou na nossa sala sozinhos, colocando o CD no aparelho e deixar a quadrifonia espalhar o som de forma, a que o mesmo entre pela nossa cabeça. Sentados na cadeira da sala de concertos ou no sofá da sala, de olhos fechados e ouvido aberto, até podemos “ver” as notas a serem colocadas na pauta pelo compositor, identificar os naipes instrumentais, e imaginar o maestro à frente de uma grande orquestra.
É assim que gosto de ouvir a minha música, ou melhor, gostava, porque, entretanto, o laser do aparelho pifou e ainda não comprei outro. Limito-me agora a colocar o CD no computador e ligar este ao amplificador. Também resulta.
Depois deste intróito vamos então dissertar um pouco sobre árias, aberturas, adágios e quejandos, que valem a pena ouvir, daquele tipo de música de que mais gosto, que é como já é sabido, a dita clássica.
Coloquem o CD no local próprio e rodem o adágio da Thais, de Massenet e deixem-se envolver por essa linda e romântica melodia que nos deixa arrepiados pelo som sublime. Podem depois passar para uma bonita ária, como por exemplo Ó Meu Banbino Caro da ópera Gianni Schicchi, de Puccini. Desta ária existe uma muito boa interpretação de Maria Calas, mas também muitas outras de grandes sopranos. Oiçam a seguir a Serenata de Toselli, o Adágio de Albinoni, o Intermezzo da Cavalleria Rusticana de Mascagni ou o Adagietto da sinfonia nº 5 de Mahler.
Poderão também optar por obras como: As quatro Estações, de Vivaldi, a Abertura 1812, de Tchaikovsky ou a Abertura de O Morcego, de Strauss.
Todas estas músicas que aqui refiro, são excelentes exemplos que desmistificam a música clássica, mostrando quão simples, romântica e melodiosa ela pode ser como qualquer canção dita ligeira. Depois destas audições, estou certo que os meus caros amigos, que não as conheciam, ficarão adeptos e aqueles que já conhecem e apreciam, vão já para o vosso salão mais amplo, colocar o CD na aparelhagem e recordar alguma ou todas estas excelentes obras. Não ponham o som demasiado alto, não só para não darem cabo dos ouvidos, como também para que os vizinhos, menos apreciadores, não comecem a bater nas paredes. Deixem a música penetrar nas vossas consciências e vão ver como depois, estarão mais despertos, sensíveis e conscientes do que vos rodeia e abertos para compreenderem os vossos semelhantes. Se tiverem netos, poderá ser uma boa forma de iniciação à apreciação da bela música, aproveitando também para falarem um pouco sobre a vida e obra dos autores. Serão, de certeza, os ouvintes do futuro. A boa música merece ser ouvida e divulgada.
Para lhes dar um cheirinho aqui fica o link da "Meditação" da Thais numa interpretação da orquestra de câmara da nossa GNR:

http://www.youtube.com/watch?v=M6eRCT_hr1E


E o Adágio de Albinoni com lindas paisagens:

http://www.youtube.com/watch?v=XMbvcp480Y4


E ainda o belíssimo adagietto da sinfonia nº 5 de Mahler dirigido por Bernstein:

http://www.youtube.com/watch?v=bFXBR5Cd0ao

E por agora chega. Se estiverem interessados procurem os outros temas no Google.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

A Obra de Deus



Deus estava deveras aborrecido. Dera um piparote num berlinde que por ali andava e provocou uma enorme explosão de bolas, umas grandes, outras pequenas, umas quentes e luminosas, outras mais frias e sem luz, tudo aquilo se expandia e não parava, mas tudo acabava por ser entediante. Ele era o verbo, mas falar para quê e para quem? Levou, pelo menos, uns 9,5 mil milhões de anos a pensar no assunto, até que resolveu pegar numa daquelas bolas, por acaso uma das mais pequenas, e fazer dela uma obra de arte. E tanto se entreteve que nem deu pelo tempo passar. Continuava sem ter ninguém com quem falar, apesar de ser O Verbo. Ao fim, para aí, de uns 4,3 mil milhões de anitos, já farto de peixes, lagartos, ursos, macacos, etc., resolveu criar um macacóide que conseguisse falar, para que a sua mensagem fosse conhecida. Primeiro acabou com umas bichezas a que chamara dinossauros, uma vez que a sua dimensão não seria compatível com o animal que queria criar. Pegou numa imagem do tal macacóide e fez uma a que chamou homem, bastante parecido com os seus congéneres, mas o raio do bicho saiu feio e estúpido. Levou mais uns anitos e ao fim de mais uns 4,296 mil milhões lá conseguiu criar um tipo, mais bem apessoado, que já falava razoavelmente, pensava e construía umas coisitas. Para que não ficasse sozinho, fê-lo acompanhar por uma sua congénere para que se ligassem e tivessem descendência. A partir daí, o tédio de Deus foi desaparecendo. Por essa altura, já teria passado algum tempo e dos 4,296 mil milhões de anos, só faltavam uns duzentos mil anos para a época deste pobre escrito.
A este último espécime, deu o nome pomposo de homo sapiens. Este tipo foi aprendendo umas coisas boas e também outras muito más. Não lhe ligava nenhuma, matavam-se uns aos outros, roubavam-se entre si, raptavam as mulheres uns dos outros, enfim, montes de malvadezes. E aí Deus chateou-se. Escolheu um que era bonzinho e disse-lhe que fizesse uma arca (tipo barco), metesse lá um casal de cada bicheza da terra (grande bote) e que embarcasse junto com a família porque ele ia mandar chuva. E mandou tanta que cobriu o ponto mais alto da terra e lá foi tudo para o bé-lé-léu. Ao fim de 40 dias e 40 noites, o tal embarcadiço mandou uma pomba e ela voltou com um ramo de oliveira no bico (grande esperança). Devem ter-se servido da madeira da arca para fazerem casas porque nunca mais ninguém encontrou sequer vestígios do bote. O certo é que se multiplicaram, e dentro de mais uns anitos lá repovoaram a terra de novo. Mas mesmo assim Deus não conseguiu que se tornassem bons. Continuavam a fazer maldades e até houve duas cidades onde se entretiveram a copular uns com os outros, mesmo os de sexos iguais. Crime de lesa pátria, se fosse hoje, Deus ficaria muito mais lixado ainda, mas naquele tempo não havia Assembleias Legislativas para legalizarem essas más coisas, o facto era crime de lesa majestade. Vai daí Deus resolveu acabar com essas duas cidades e desta vez foi pelo fogo. Mas salvou uma família, pai, mãe e duas filhas e disse que fugissem para a montanha sem olhar para trás ou eram severamente castigados. Dizer isso a um homem, ou até a crianças obedientes ainda vá, mas dizê-lo a uma mulher feita, é coisa que não se faz. Mulher não consegue passar e não dar uma espreitadela. Foi o que ela fez e ficou transformada em estátua de sal. Sal? Porquê? De pedra ainda vá, mas de sal? No meio da montanha? E o pior é que lá ficou o pai, só com as meninas dentro de uma caverna. Ao fim de uns anos, as coitadas não tinham descendência e resolveram embebedar o pai e com ele terem relações para engravidarem. Se assim o pensaram melhor o fizeram e lá se consumou o incesto. Não percebo essa. Então Deus destrói duas cidades por pederastia e lesbianismo e depois aceita o incesto? Mau! Que raio de critério. Mas Deus queria era voltar a criar comunidades a partir de seres bons e cumpridores. Parece que nunca conseguiu. Omnipotente? Onde? Os tais homosapiens, agora já todos só chamados homens, continuaram a portarem-se mal e a não temerem a Deus. Com medo de serem novamente afogados por ouro dilúvio, que nunca mais chegou, resolveram construir uma torre tão alta que nenhum dilúvio a cobrisse. Deus zangou-se novamente e resolveu confundir-lhes as línguas, o que foi uma grande gaita. Dos resquícios dessa torre, devem ter feito muitos tijolos, pois todo o mundo continua à procura e ninguém lhe encontra uma pedrinha sequer. A partir daí foi a confusão total até aparecerem os ingleses que, como nunca conseguiram aprender qualquer outra língua transformaram a deles em língua universal. Ainda houve uns artistas que tentaram e conseguiram construir uma língua universal, o esperanto, mas os ingleses nem essa aprenderam e boicotaram tudo de novo sem apelo nem agravo. A partir daí Deus deve ter mandado tudo às couves pois nunca mais castigou a humanidade. Mas a dita humanidade, quase toda, continua agarrada a Deus e não só ao ser de quem falámos, arranjaram outros e estabeleceram-lhes diversos cultos. Se tivessem ficado por aí, vá que não vá, mas o pior é que cada culto só admitia o seu como verdadeiro e guerreava os outros. Conclusão, guerras não faltaram e nenhum dos deuses lhes valeu. Parece pois que os seres divinos se zangaram de todo com os homens e voltaram para o “dolce fare niente”. Até que apareceu um tipo chamado Abraão que nasceu em Ur cidade suméria num território, hoje chamado Iraque. Esse rapaz teve dois filhos, um de sua escrava, a quem deu o nome de Ismael e outro Isac.
O Ismael fundou a religião ismaelita ou islamita e o Isac a religião judaica. Mais tarde da Judaica nasce a Cristã e das duas nasce o mundo muçulmano através do profeta Maomé. Mais valia que estivessem quietos. A partir daí foi o granel total e Deus entrou em greve.


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

O Piolho



(Capítulo publicado no Boletim da APE nº 207/07, de um "livro" autobiográfico O Lagarto)

O bicho subia pelo cabelo com alguma dificuldade. A subida era difícil por escorregadia. O excesso de brilhantina não ajudava. Após muito esforço chegou ao cimo e tentou passar para outro cabelo. A distância era grande. O redemoinho no alto da cabeça afastava os cabelos qual rodopiar de carrossel. Como não conseguiu passar resolveu descer de novo. O rapaz não tirava os olhos do puto que, genuflectido à sua frente, era portador daquela bicheza. A mãe já lhe havia dito que nas escolas se apanhavam bichos daqueles, que era uma porcaria, que só os ciganos e os que não tomam banho é que têm. Como pode? Tão bem vestidinho que o puto estava, fato e gravata, fatinho azul-escuro. Normalmente, nas terras pequenas, as mães faziam gosto que os seus filhos fossem à missa com o fatinho de “ver-a-deus”, mas esqueciam-se de lhes dar banho ou o orçamento caseiro não lhes dava para tal e mais vale uma alma lavada do que o corpo, esse não vai para o céu. O piolho, parece que era este o nome do bicho, tentou subir outra vez e caiu desamparado. O rapaz tocou suavemente o cotovelo da rapariga a seu lado. A moça olhou para onde o dedo do rapaz apontava. Ao ver os esforços do pobre piolho, tentou parar o riso com a mão na boca e este saiu-lhe pelo nariz e com bastante ruído. O rapaz não se conteve e o riso estoirou ruidosamente apesar dos esforços titânicos para o conter. O riso é assim, quanto mais se contem mais ele teima em prolongar-se. E quando as pessoas olham umas para as outras, como cúmplices, ainda é pior. Os crentes, despertados das suas preces, já olhavam com olhos furibundos pelo sacrilégio. Uma igreja não é local para aqueles despautérios, estes miúdos não respeitam nada nem ninguém, nem tomam atenção à missa, como se alguém tomasse, era dita em latim, e dessa língua só os padres percebiam. O padre, do cimo do altar, fuzilou-os com o olhar e ordenou que saíssem da sua igreja. E agora? Era domingo de Páscoa! A Dª Eduarda, sua professora e catequista, tinha andado a prepará-lo para a comunhão solene, queria que ele brilhasse, queria-o na missa todos os domingos e ele que gostava tanto dela não a contrariava.
A professora era pequenina, não muito bonita, mas jeitosa. O marido era um também pequenino, mas com cara de macaco. O rapaz andava completamente apanhado pela atenção que a Dª Eduarda lhe dava. Ela tinha no rapaz grande esperança. Queria que ele fosse o melhor. Andava a prepará-lo para três exames ao mesmo tempo, 3.ª, 4.ª classes e admissão aos liceus, prova considerada muito difícil e que exigia muito do rapaz. Depois de todos saírem ele ficava mais duas horas. Era dessas horas que mais gostava, tinha a professora só para ele. Ela sentava-se na carteira a seu lado, a sua proximidade dava-lhe sensações de arrepio deliciosas. O moço esforçava-se por apreender tudo o que ela lhe ensinava. Poderia ser que assim ainda gostasse mais dele.
Agora, enquanto percorria rapidamente a nave central da velha igreja em direcção à porta, não fosse o padre irar-se e dar-lhe com o hissope na cabeça ou com o turíbulo nas canelas, perguntava-se como iria comer as amêndoas que sempre se distribuíam aos domingos de Páscoa. Maldito puto que tinha de levar um piolho para a igreja e postar-se mesmo na sua frente. O que vale é que saiu com a Mariana e ela era bem gira e dava muita bola. Já tinham andado nas dançariquices, lá no clube onde o pai era director. Apesar de ainda muito novos já dançavam muito bem e aproveitavam para se apertarem e roçarem. Assim se iam descobrindo sensualidades e anatomias escondidas.
Logo que saíram a porta, o rapaz levando a rapariga pela mão correu à volta da Igreja encaminhando-a para o átrio da sacristia, lugar resguardado das vistas de quem passava. Encostou-a à parede, junto da porta, pegando-lhe nas mãos com os dedos entrelaçados, e baixando-as de modo a conseguir encostar-se o mais possível. A moça ficou totalmente presa, mas não se mostrou incomodada. O rapaz beijava-a na cara e no pescoço roçando-lhe os lábios com os seus provocando-lhe risinhos nervosos, mas ela ia consentindo naquela volúpia que a percorria com sensações já não completamente estranhas. Com o encosto sentia-lhe o peito bastante desenvolvido para a idade. O rapaz pensava como seria bom fazer aquilo com a Dª Eduarda…Ah! Se pudesse…enquanto pensava na sua professora aproveitava a anatomia da Mariana. Estava ele a meter a mão por trás dela a caminho sabe-se lá onde, quando uma voz os fez saltar…era o safardana do sacristão que tinha aberto a porta da sacristia sem eles darem por isso. Pudera, naquela situação não se vê nada em volta…
– Que é isto? Já daqui para fora seus malandros. Vou fazer queixa ao padre, seus safadinhos. – O sacristão era coxo e tinha os olhos tortos. Metia medo ao susto. Tipo completamente execrável, bufo, misógino e completamente assexuado. Era unha com carne com o padre que dele se servia para estar a par dos mexericos da terra e dos pecadilhos dos paroquianos.
Correram desalmadamente rindo ao mesmo tempo da situação e do susto. O rapaz convenceu a moça a voltarem para a igreja, a missa já devia ter terminado e o padre já nem se lembraria deles nem da risota por causa do piolho. Assim fizeram dirigindo-se à bandeja das amêndoas que uma das velhas beatas de sacristia empunhava ainda cheia apesar das mãos ávidas que a rodeavam. O rapaz tinha a certeza que era aquela bandeja e não a fé que enchia de jovens a igreja nos domingos de Páscoa Os doces, para quem raramente os provava, eram mais atractivos do que as muito chatas e desenxabidas homilias do padre da paróquia.
A moça ainda apresentava na face o rubor das deambulações amorosas. O rapaz já só pensava o que lhe diria a professora, na escola, sobre o que se passara durante a missa. Fazia votos para que o sacristão nada dissesse ao padre pois este certamente iria meter tudo nos ouvidos da Dª Eduarda.
Quando, no primeiro dia de aulas após as curtas férias, chegou à escola, ia receoso. A professora olhou para ele quando a cumprimentou, mas nada disse. O dia passou sem problemas. Quando os outros saíram, a professora já ao lado dele, perguntou-lhe o que fora aquilo durante a missa de Páscoa. O rapaz contou-lhe do piolho e como não tinham conseguido conter o riso. Que o desculpasse, mas nunca tinha visto um piolho a fazer acrobacias como um artista de circo. Acabaram os dois a rir. Felizmente sobre o que se passara na porta da sacristia nada foi referido. O rapaz ficou contente e ao mesmo tempo todo orgulhoso por a sua professora, tão querida, lhe ter perdoado o sacrilégio involuntário.
Tão redondinha que ela era. Tão carinhosa para com ele. Aqueles óculos grossos desfeavam-na um pouco, mas a miopia não perdoava. O Rapaz só não achava muita graça à beatice do seu ídolo. Ela dava demasiada atenção ao padre e passava muito tempo na igreja, aquilo não lhe agradava, mas o marido parecia não se importar, ele também era muito crente, talvez demasiado crente...
Os exames aproximavam-se, o rapaz andava assoberbado e cansado, o esforço era grande e não sobrava tempo para quase nada. A Mariana já não lhe ligava muito, como mais velha estava a crescer muito depressa. O rapaz estava a ser passado para trás, outros, mais velhos, andavam aproveitando.
Os exames chegaram e o rapaz safou-se. Após o exame de admissão sentiu-se um homem. Iria para o liceu e seria tratado por Senhor pelos professores, pelo menos fora isso que o pai lhe dissera.
Durante as férias grandes não viu o seu amor secreto, também não lhe sentiu muito a falta, mas antes das mesmas terminarem, teve o seu primeiro grande desgosto. A sua querida professora, o seu ídolo, o seu amor secreto, tinha mandado a lei de Deus às couves e fugira com o vizinho do lado. A sua fé em Deus e na raça humana começou a fraquejar.

O liceu foi uma má opção. O rapaz não se adaptou e o Pai decidiu que o Instituto dos Pupilos do Exército seria melhor. E foi. Aí os piolhos passaram a “ganaus” e ao aparecerem davam direito à carecada da ordem sabiamente executada pelos Srs. Ferreira e Couto. Pobres bichos que sem redemoinhos para vencerem acabavam extintos não provocando mais risos descontrolados durante as missas. O rapaz, em algumas daquelas a que não conseguiu escapar, sentiu saudades de um “ganausito” fazendo acrobacias para o distrair e, para piorar as coisas, a seu lado já não havia Marianas nem Professoras. Que saudade…

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

O Casamento (Crónica social)


No belo solar dos Alarcão e Silva a azáfama era enorme contrastando com a monotonia dos dias normais. Neste dia casavam a sua jovem e virgem filha Isabel, uma linda rapariga de 19 anos que frequentava ainda a faculdade de direito. Maria Eduarda Menezes de Alarcão e Silva corria por toda a casa dando ordens aos criados para que tudo estivesse preparado. Passou pelo salão onde um copo-de-água sumptuoso estava pronto. Olhou para as mesas e não resistiu a dar os seus próprios toques, alterando o local de um castiçal aqui uma terrina de Sèvres ali, esticando um laço das camilhas acolá. Verificou os arranjos de mariscos e ficou satisfeita por olhar o trabalho artístico que, o melhor restaurante da cidade, tinha realizado. As mesas postas com um belo e antiquíssimo serviço Vista Alegre alternando com uns jarrões de Sèvres Luís XV, quase não tinham espaço por tanto cristal e faqueiro de prata. Satisfeita com o que vira retirou-se para o seu sumptuoso quarto, indo encontrar seu marido, Zeferino Ezequiel Monteiro de Alarcão e Silva, às voltas com o peitilho engomado do fraque. – Querida, ajude aqui com este peitilho. Não sei o que tem, ontem estava bom, hoje teima em encaracolar.
Maria Eduarda, com todo o carinho, endireitou o peitilho do marido ao mesmo tempo que lhe verificava as asas do fraque. – Meu querido, você está elegantérrimo. Vai ser o homem mais charmoso do casamento. Veja se não se amachuca muito durante a missa para depois aqui, no copo-de-água, estar impecável.
– Olhe querida, é melhor ir ver o que se passa com a nossa filha pois lá em cima está a costureira, o cabeleireiro, a manicura e o fotógrafo. Sei que é da praxe a noiva chegar sempre um pouco atrasada, mas convém não exagerar. Já ouvi os carros que entraram no jardim e já devem estar a chegar à porta. Antes de sair diga ao José que a orquestra deve estar a chegar e que liberte o salão grande para se poder dançar.
Pouco depois, a noiva, esplendorosa no seu vestido branco, segurando o seu ramo de flores de laranjeira, descia a escadaria da mansão sorrindo para os seus pais que no átrio juntamente com os convidados aguardavam ansiosos o divinal aparecimento. Os fotógrafos disparavam as suas câmaras e seguiam-na com as máquinas de vídeo. Descer a escadaria da porta principal demorou imenso por via de foto daqui vídeo de acolá. Meteram-se todos nos carros e o cortejo arrancou com o carro da noiva no fim. Este carro, um Rolls Royce Phantom, preto de brilho impecável, arrancou como se tivesse rodas de veludo não se ouvindo qualquer ruído do motor.
A igreja estava completamente engalanada com ramos de rosas brancas e passadeira vermelha. Na galeria superior um coro de donzelas, como que embaladas em tules brancos e rosa, entoava melodiosos cânticos. As senhoras nos seus elegantes e caríssimos vestidos de cerimónia e chapéus altamente sofisticados, olhavam-se entre si não perdendo pitada do que as outras vestiam fazendo comparações quase sempre negativas em relação aos trajes próprios.
À porta, Manuel Lencastre Azevedo de Tordesilhas e Faria, esperava ansioso a sua amada. Na espera, recordava como se tinham conhecido, como se apaixonara, como aceitara um namoro não muito prolongado mas casto, pois a moça, muito católica e temente a Deus, não aceitava mais do que simples beijos que o deixavam louco. Dizia ela que depois de casados, teriam muito tempo para se entregarem um ao outro gozando das delícias de um sexo consentido e aprovado por Deus.
O cortejo chegou. Os convidados tomaram lugar na fila em frente aos convidados do noivo. A noiva saiu e Zeferino conduziu a filha ao altar ao som da marcha nupcial de Lohengrin de Richard Wagner e entregou-a a Manuel que lhe estendeu as mãos. Ao fim de quase duas horas de missa com cânticos, homilia, eucaristia  e leitura de textos do novo testamento, os noivos saíram sob o olhar lacrimoso dos convidados. Após as fotografias dirigiram-se todos aos carros e o cortejo dirigiu-se à Mansão dos Alarcão e Silva. O dia estava soalheiro e a temperatura amena. Seguiu-se uma prolongada sessão, nos jardins, de fotografias e gravações de vídeo após o que todos se dirigiram ao palacete. Uma orquestra de dois violoncelos, seis violinos, dois clarinetes, um oboé e uma flauta recebeu as perto de trezentas pessoas ao som da Pavane de Gabriel Fauré.
Todos se dirigiram às mesas rodeando-as à procura dos seus nomes e mantiveram-se de pé até que os noivos se sentassem na mesa principal com os respectivos pais e padrinhos. Alarcão e Silva fez um gesto e o mordomo José acenou recatadamente para a porta que servia de copa. Um cortejo de empregados de jaquetas brancas com um estreito galão dourado e calças pretas, desfilou trazendo equilibradas grandes bandejas com toda a espécie de iguarias. O grande banquete começou. Do salão vinha quase em surdina o som da orquestra que tocava música clássica.
À medida que a comida ia sendo servida o vinho ia escorrendo das garrafas decantadoras. Brancos e tintos das mais diversas e prestigiadas castas desapareciam pelas gargantas dos convidados. Os peitilhos engomados começavam a querer sair debaixo dos fraques, laços e gravatas tinham tendência a desapertar-se, as vozes, de início tão em surdina, começavam a fazer-se ouvir em tons mais elevados não deixando quase perceber a orquestra que continuava a tocar Mozart e Bach. Os noivos pouco comeram e trocavam olhares lânguidos como a antever a oportunidade de ficarem sós, o que parecia nunca mais chegar. Entretanto chegou esbaforido, o irmão de Zeferino pedindo muitas desculpas pelo atraso, mas a sua namorada estivera de serviço ao banco e por via de um acidente ficara retida na urgência.
João António Jorge de Alarcão e Silva era dez anos mais novo que Zeferino e foi sempre tratado pelos pais como o “menino” que eles já não esperavam. Foi sempre um doidivanas e apesar de esperto e inteligente, por via das garotas e noitadas, não acabara a faculdade tendo arranjado um emprego mixuruca no hospital onde conhecera Sara que agora o acompanhava. Sara era enfermeira e uma rapariga moderna, desinibida e adepta do amor livre sem preconceitos. Conhecera João António, e o moço alto, ginasticado e bonitão não lhe escapou. Zeferino, convidara-o para o casamento da filha, sempre na esperança que ele nem aparecesse. Assim não aconteceu. João António não tinha fraque e nem se lembrou de alugar um. Vestiu um velho smoking já um pouco coçado, que o irmão lhe dera, e acompanhado por Sara vestida com blusa Lamé dourado e mini-saia preta brilhante, que deixava ver um par de pernas divinal. Os sapatos eram de saltos tão altos que quase a faziam da altura do acompanhante A chegada deste casal alterou completamente o ambiente, os homens reviraram-se nas cadeiras deitando olhos gulosos às pernas da acompanhante de João António, as senhoras quase se benziam ao mesmo tempo que comentavam entre si o ar desmazelado do irmão de Zeferino, enquanto as moças solteiras e casadoiras olhavam com ar dengoso o bonitão que tinha chegado estando-se nas tintas para o seu traje. Ao mesmo tempo os olhares destas para Sara eram de inveja pura.
Ocuparam os dois lugares livres à frente dos pais da noiva, que lhes estavam destinados, e começaram a comer um pouco à pressa para não fazerem esperar os convidados. Pouco depois, após os cafés, os brandy’s e os whisky’s, os convidados levantaram-se dirigindo-se para o salão onde a orquestra os recebeu com  a marcha nº 1, de Elgar, Pompa e Circunstância. Depois das palmas a orquestra iniciou uma série de valsas de Johann Strauss Jr.
Os noivos abriram o baile e depois de umas voltas foram acompanhados por aqueles que ainda se sentiam capazes de dançar. João António e Sara tentaram dançar a valsa, mas não se entenderam acabando a rir pelo total falta de jeito dos dois. Entretanto a orquestra mudou para uma série de tangos que foram aproveitados pelos mais velhos. A moçada nova começou a ficar entediada e foi-se esgueirando para as mesas.
João António disse a Sara: – Vou dar uma volta nisto. Pegou no telemóvel e marcou um nº:
 – Manel, daqui é o João. Estou aqui num casamento, mas estes gajos são uns botas de elástico que só tocam música de enterro para cotas e a rapaziada nova até já está a pensar em dar o salto para outras bandas mais animadas. Era chato para o meu irmão. Lembrei-me que poderias estar disponível e se tivesses o material na carrinha, poderias dar aqui um salto e animar isto, podes? Óptimo, traz a Rita contigo e ela que venha preparada para cantar aquelas brejeirices que ela sabe. Combinado? Meia-hora? Boa! Cá te espero na casa do meu irmão.
Passada meia-hora, o Manel e a Rita, transportando a sua pianola, faziam entrada no salão pedindo ajuda para que lhes trouxessem da carrinha o amplificador e duas grandes colunas de som. João António dirigiu-se ao maestro e falou-lhe ao ouvido após o que todos os músicos deixaram a sala.
Perante o olhar atónito dos convidados, Manel montou o material e experimentou uma nota que ia rebentando os tímpanos da assistência. Quando achou que tudo estava bem, meteu uma cassete de acompanhamento e começou a tocar cantando:
E toda malta gritou/ Até o padre ajudou/ Aperta, aperta com ela/ A banda sempre a tocar /O Povo todo a cantar/ Aperta, aperta com ela /Nós apertamos os dois/ Então aí é que foi /Aperta, aperta com ela/ Assim amor pois então /Começou nossa paixão /Nesse baile de verão. (original de José Malhoa)
Maria Eduarda, abriu a boca e não a consegui fechar. O Conde Vasconcelos de Atahide, que estava em pé, deu meia volta tão depressa que tropeçando na bengala, estatelou-se caindo com a cara no decote da D.ª Ermengarda Perestrelo, deixando cair o monóculo no exagerado decote, o que a fez soltar um estridente berro ao mesmo tempo que corava até às orelhas pelo “porra” bem audível que o Conde vociferou. Zeferino procurava o irmão tentando ver se através dele conseguia por cobro a tal blasfémia. Como não o vislumbrou no salão dirigiu-se à sala do copo-de-água, mas foi praticamente atropelado pela moçada nova que correndo saltou para o salão rindo e dançando ao som daquela música “pimba”. Entretanto o Manel mudou a cassete e a Rita cantou:
Meu amor trabalha muito
precisa de comer
preparo um pacote,
ponho de tudo um bocadinho
Eu levo no pacote
Ai eu levo, sim senhor!
Eu levo no pacote
Aí, tem outro sabor!
Eu levo no pacote
Pra gosto do meu amor!
(original de Rosinha)
A rapaziada exultava e ria, dançando e pulando. As raparigas puxavam os vestidos compridos prendendo-os na cintura mostrando as pernas. Aí a velharia, já com os vapores do álcool, começou a animar. Os rapazes despiram os fraques e arregaçaram as mangas das camisas.
Entretanto, a Viscondessa de Valmor, era abanada com o leque pela Baronesa de Aragão, enquanto o Barão lhe chegava ao nariz o frasco dos sais. Zeferino estava branco como a cal e mais branco ficou quando viu o seu genro levantar-se, pegar na mão da sua filha levando-a até meio do salão começando a dançar. A Senhora de Orleães e Gonzaga, rezava o terço ao mesmo tempo que erguia os olhos ao céu, como se pedisse perdão a Deus por os seus ouvidos estarem expostos a tais cânticos.
Entretanto, o Manel agora cantava:
Chupa Teresa!
Chupa Teresa!
Qu'este gelado gostoso,
É feito de framboesa!
Há gelado de morango
Baunilha e abacaxi
As garotas do meu bairro
Vêm todas chupar aqui!
(original de Quim barreiros)

Aí as risadas eram gerais. Até os velhotes riam a bom rir, alguns menos timoratos entraram na marcha com os rapazes e raparigas. As senhoras mais velhas saíram do salão e foram para o jardim apanhar ar comentando o escândalo.
No salão a música continuava com a Rita a cantar:
Meu amor gosta de comer
E gosta de variar de prato
Uma amêijoa suculenta
Para abrir a refeição
Ele gosta de saborear
Eu lavo a amêijoa para o meu amor comer
Eu lavo a amêijoa para ele se lambuzar
Eu lavo a amêijoa e tenho que lavar
Para lhe poder tirar todo aquele gostinho a mar
(original de Rosinha)
A festa agora estava no auge. Tanto a rapaziada como os convidados mais bebidos e desinibidos dançavam e faziam marchas dando grandes risadas e cantando fazendo coro com a Rita. Foi então que Maria Eduarda foi até junto da ruidosa aparelhagem e desligou a ficha. Depois foi junto de João António e pediu-lhe para sair juntamente com a namorada.
Os convidados começaram a sair e os Alarcão e Silva desculpavam-se como podiam. Alguns diziam: – Deixe lá. Olhe que até foi giro e divertido. A animação foi muita. Ao que Maria Antónia respondia agastada: – Animação? Diria antes, humilhação. Nunca me senti tão mal na minha vida.
Entretanto, os noivos, já em casa, por terem saído à socapa quando aquilo deu para o torto, beijavam-se ternamente. Já de roupão, depois de saírem da casa de banho, Manuel de Lencastre, abraçando aquela que já era sua mulher, dizia-lhe ao ouvido: – Aquilo foi giro e teve o mérito de teres aprendido alguma coisa. A propósito! Temos ameijoa para a ceia.


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Elefantes

 (excerto do livro "Caçador Branco")

...
As três tendas foram montadas assim como um avançado para duas mesas. Na tenda grande ficaria o pessoal, noutra, Rogério, Bwango e Tembo. A mais pequena para Ricardo e Ana. Montaram uma banca para a cozinha com os dois fogões e debaixo do avançado puseram o frigorífico a trabalhar onde colocaram água, cervejas, algumas garrafas de coca-cola, águas tónicas e gin. O camião guarnecia a traseira das tendas e as outras viaturas os lados. À frente fizeram uma boa fogueira que iam alimentando com o molho de lenha colocado ao lado. Ao escurecer acenderam os petromaxes e tiveram que aplicar mosquiteiros devido à bicharada que começou a esvoaçar à volta das luzes entrando por todo o lado. No fim, Ricardo mostrava-se satisfeito pelo trabalho realizado. Aquilo começava a parecer-se com um autêntico safari.
Ana estava exausta e recolheu-se mais cedo. Os três homens e Tembo ficaram sentados à mesa a conversarem. Pouco depois Tembo não resistiu ao sono e foi deitar-se. Os homens começaram a combinar a estratégia de aproximação para quando tivessem de enfrentar os elefantes. Ricardo não queria abater nenhum, bastava assustá-los de tal modo que não pensassem voltar para aquelas bandas. Só em caso de muito perigo disparariam contra os bichos. O elefante é um animal demasiado nobre e importante no ecossistema da zona, teriam de fazer os possíveis para não terem de liquidar qualquer deles. Havia que ter especial cuidado com as fêmeas com filhotes pequenos e especialmente com o grande chefe da manada. Esse seria o principal problema, pois que para defender o grupo seria bem capaz de atacar. Se o fizesse, teria de ser travado quer com gritos e gestos quer com tiros para o ar. Se insistisse não haveria outro remédio se não abatê-lo.
Ricardo já caçara elefantes. Todo o caçador tem sempre em mira abater o seu primeiro elefante. Mas não gostara do que fizera. É um animal demasiado nobre e, apesar de a carne ser boa para comer, é enorme e desperdiça-se grande parte. Por outro lado não há assim tantos que se possa permitir o abate mesmo em caça turística. O governo fazia muito bem em proibir e reprimir o comércio de marfim. Mas é sabido que quanto mais se proíbe, mais o produto sobe de preço no mercado negro o que faz aumentar a caça ilegal.
Quando os animais causam demasiados estragos às populações é necessário tomar medidas, mas matar, só mesmo em caso de perigo eminente ou casos de machos solitários que se tornam de tal maneira violentos que nada os segura. Nestes casos, o abate era a única solução e o governo, como era o caso, contratava especialistas assumindo as despesas.
Após as coisas terem ficado mais ou menos programadas e decididas, os homens foram-se deitar. De manhã a procura continuaria.
Ainda era noite quando se levantaram. Prepararam o jipe e o jipão. No jipe, à frente, seguiam Ricardo com Ana ao lado, Rogério, Bwango e Tembo atrás. No jipão seis homens serviam de equipa de apoio. Ana pela primeira vez levava uma espingarda de caça calibre 9,3 mas Ricardo tinha a seu lado a sua velha 375. Rogério e Bwango também usavam 9,3. Os homens do jipão não iam armados de espingarda mas levavam bombas tipo carnaval para assustar os animais.
Foi Tembo quem primeiro notou os excrementos dos elefantes. À medida que avançavam notavam-se as fezes mais frescas e fumegantes. O barulho de ramos a quebrarem-se fê-los ficar alerta. Pararam os carros e seguiram a pé formando um semi-círculo com os caçadores no meio. Aproximaram-se o mais possível, mas a uma distância ainda razoável, o grande macho que se encontrava só e a uns cinquenta metros da manada, começou a dar sinais de alguma impaciência. Os carros com os motores a trabalhar a muito baixa rotação, vinham aproximando-se como Ricardo ordenara. Poderia ser necessário retirar à pressa e só com eles a fuga seria possível.
O grande macho virou-se e levantou a tromba cheirando. Depois deu um urro e correu em direcção à manada. Nesse momento Ricardo deu sinal e o pessoal começou a acender as bombas lançando-as. As espingardas deram tiros para o ar. A manada fugiu em direcção contrária seguida do grande chefe, arrasando tudo à sua passagem e fazendo um barulho ensurdecedor. Ricardo ordenou o cessar-fogo e ficou alerta, o barulho da fuga continuava, mas ainda poderia haver perigo. Após alguns minutos considerou-se satisfeito e regressaram aos carros. Estavam a subir para as viaturas quando um grande bramido se fez ouvir fazendo estremecer toda a gente. O grande paquiderme vinha correndo na direcção deles de tromba levantada e abanando as orelhas. Ricardo gritou a Ana que se refugiasse atrás do jipão e voltou-se para o local de onde o bicho vinha, Rogério e Bwango ficaram uns vinte metros atrás e separaram-se deixando-o no meio. O grande elefante parou a uns cinquenta metros batendo as patas no chão e abanando as orelhas de tromba levantada. Ricardo deu dois tiros para o ar e fez sinal para que os outros atirassem também. O estrondo dos tiros não o demoveu e o grande macho continuou a avançar com gestos ameaçadores direito a Ricardo que era quem se encontrava mais à frente. Ana deu um pequeno grito temendo pela vida do seu homem, pegou na espingarda mas as mãos tremiam-lhe demasiado. Não seria capaz de realizar nenhum tiro de jeito. Bwango correu para ao pé de Ana. Só Rogério ficou a uns metros de Ricardo. O caçador branco meteu a arma à cara e esperou o grande paquiderme. A uns vinte metros Ricardo deu um tiro por cima da cabeça do bicho e continuou a aguardar. Os corações de todos estavam em taquicardia pela adrenalina desenvolvida e o receio marcava a cara de Ana e Bwango. Rogério esperava que Ricardo abatesse o animal e ficou na expectativa. O bicho, a uns dez metros, parou, bramiu e levantou a tromba batendo no chão com as patas dianteiras. Ricardo apontou e aguardou um curto momento. O grande animal abateu a tromba, deu dois passos atrás e soltando um grande bramido virou-se e correu direito à manada que já não se via. Ricardo depôs a arma e só então Rogério conseguiu respirar fundo.
O grande caçador enfrentara uma grande prova e dera mostras de grande coragem. Todos correram para junto dele com manifestações de carinho e apreço. Ana saltou-lhe literalmente ao pescoço apertando-o contra si e exclamando quase a chorar:
– Grande burro teimoso ias-me matando de tanto susto. Podia ter abortado.
Ricardo abriu muito os olhos.
– Quê?
...

domingo, 5 de fevereiro de 2017

A morte

(Excerto do livro autobiográfico "O Lagarto")
...
O Capitão olhava o soldado estendido no cimento. O buraco nas costas deixava ver um bocado do pulmão. Não lhe fez qualquer impressão o cadáver, estava morto e pronto. O que o impressionava era que ainda há uns dias aquele soldado, que não pertencia à sua unidade, mas era padeiro de profissão, lhe tinha vindo pedir se metia uma cunha ao seu Comandante, para trabalhar na padaria da Intendência. Dizia que estava farto das operações, que se sentia um pouco cansado e que uns dias a trabalhar na sua verdadeira profissão lhe dariam forças para continuar. Como estava com pouco pessoal, o Capitão procedeu em conformidade. Agora ali estava, morto, atravessado por uma bala calibre 50 das metralhadoras de um helicóptero. O cabo da Força Aérea resolveu descarregar uma das metralhadoras da aeronave que se encontrava estacionada no heliporto por detrás da padaria, e sacou-lhe a bala da câmara. Esquecendo-se que elas eram acopladas e ligadas electricamente, puxou o gatilho. A outra ainda tinha uma bala e disparou. O tiro passou duas paredes de tijolo, furou um forno de campanha e atingiu o pobre padeiro. Porra de sorte! Não ir para operações para descansar, se lá estivesse talvez nada lhe teria acontecido e aqui... Se não tivesse aceitado a situação de transferência... Se... merda para isto!
No dia seguinte o funeral foi rápido. O Padre era um gajo porreiro. Aquele sim, dava gosto. Brincalhão, mente saudável, não vendia religião e muito amigo de algumas paródias, principalmente se feitas na Intendência. Sempre que havia funerais o nosso Padre apressava-se a realizá-los. Dizia ele que quanto mais rápidos melhor pois assim os vivos pensavam menos na morte.
Nessa noite houve bebedeira. Os Alferes do Batalhão procuravam animar o Capitão da Intendência que estava com o moral em baixo. Fizeram-se uns pães com chouriço, que acabadinhos de sair do forno eram uma maravilha. O Padre apareceu, na padaria, de blusão, apesar do calor. Quando o despiu mostrou duas garrafas de vinho Altar que trazia escondidas debaixo de cada braço. Dizia ele que antes da bênção era como o outro. Para o Capitão tanto fazia. Servia da mesma maneira. Ao vinho juntava-se belo paio e alguns queijos. Falava-se que era uma antiga namorada, dos tempos do liceu, que nunca tinha perdido as esperanças de o reconquistar, que lhe enviava aquelas iguarias lá da terra. Que lhe teria passado pela cabeça para deixar a namorada e ir para Padre? Após uns copos, uns bagaços e alguns pãezinhos, começaram as cantorias. Um dos Aferes era de Coimbra, tocava viola e cantava bem. As baladas e fados conimbricenses despertavam saudades das terras de cada um.
– Agora vai uma pornográfica – disse um deles. Todos acompanhavam. O Padre, de boca cheia gritava:
- Eu ajudo até onde souber.
Ah! Grande Capelão! Fizeste uma boa acção em confraternizar com os homens naquela hora de tristeza.
A confraternização acabou altas horas da manhã com algumas náuseas e tonturas. No dia seguinte a vida continuou...
O Capitão soube, anos mais tarde, que o Padre tinha mandado o sacerdócio às couves e casado com a sua amada. Grande alegria sentiu. Que tenham continuado juntos a saborear belos petiscos...

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Pagaios de papel

(Excerto do livro autobiográfico "O Lagarto)

O Capitão era exímio a construir papagaios de papel. Ficara-lhe da juventude quando com canas e folhas de jornal mais cola feita de farinha e vinagre, sujava a casa toda à mãe a elaborar estrelas com longos rabos que depois ia lançar para as serras acompanhado dos amigos. O papagaio acabava sempre objecto de fisgadas certeiras sendo implacavelmente abatido como avião inimigo. No dia seguinte lá se ia chatear novamente a Mãe para disponibilizar mais farinha e vinagre e outro papagaio era elaborado com feitio diferente que, coitado, acabava de igual maneira abatido pela artilharia aliada.
Já pai, lera num jornal em Angola que iria haver um concurso de papagaios organizado pela mocidade portuguesa. Naquela época o militar, como quase todo o cidadão, andava muito afastado da política e o Salazar, não sendo do seu agrado, não interferia muito na sua vida se exceptuarmos o facto de, por ele, estar destacado em Angola em missão de soberania. Dever era dever e ali estava.
Ao ler aquilo, as reminiscências da infância trouxeram-lhe novamente a vontade de construir um papagaio. Aliciar o filho para o concurso foi fácil. O rapaz ficou entusiasmado e prestou-se a ajudar o pai na construção. Assim se fez. Compraram-se vários papéis coloridos, arranjaram-se os restantes materiais de construção, copiou-se um modelo de um livro infantil e várias horas foram gastas num fim-de-semana na construção do papagaio. Saiu obra-prima. Decorado com figuras astronómicas, luas, sóis, cometas, saturnos, etc. e com um “design” nunca antes visto, lá se foi em tarde ventosa experimentar as capacidades de ascensão do objecto voador. Com bom vento subiu a bom subir para contentamento do rapaz e do pai que correu pressuroso a inscrever o filhote no concurso anunciado. Pois… tudo muito bonito, mas o rapaz só podia concorrer se fosse fardado. Aí as coisas complicaram-se. O militar, que no seu início de estudante e antes de entrar nos Pupilos do Exército, tinha andado um ano no liceu, nunca tinha adquirido a farda da mocidade, e disso tinha escapado, agora teria de vestir ao puto a horrorosa farda da “bufa” como a organização era conhecida. Grande dilema e, ainda por cima o puto não queria de maneira nenhuma vestir tal coisa. E agora? Então um papagaio tão bonito e que tinha dado tanto trabalho não iria concorrer?
Após conferência familiar lá se convenceu a criança que era só por umas horas e a farda, emprestada para o efeito, seria despida e nunca mais utilizada. Contrariado o rapaz lá condescendeu e foi ao concurso.
O papagaio foi um sucesso. Ganhou os dois primeiros prémios de beleza e criatividade. Só que, para grande tristeza, estava pouco vento e o papagaio, enorme, custou a elevar-se e, no alto, não permaneceu muito tempo. Outros, menos bonitos, mas mais leves evoluíram muito melhor e arrebataram os primeiros prémios. Mas as duas taças foram para casa e mostradas aos amigos com muito orgulho.
Bastantes anos depois, após 25 de Abril, o rapaz mostrava aos amigos as taças e a foto fardado, dizendo no gozo: – Vêem!... Como eu também pertenci à “bufa”!
Ainda em Luanda, um outro papagaio enorme e em tecido de pára-quedas, foi construído. Pai e filho deliciaram-se, no morro da samba, a evoluir com o dito, munidos de luvas para defender as mãos dos cortes que poderiam ser provocados pelos fios devido à força que o vento lhe imprimia.


Ainda hoje, já reformado, muito mais sensato, mas ainda com reminiscências de infância, o militar se entretém com papagaios de compra muito mais evoluídos, na praia, a imprimir aos ditos evoluções artísticas para gáudio de putos e não só. Nesses momentos, as recordações e o concurso da “bufa” repovoam-lhe a memória. Mas, hoje não teria convencido o filho a “paramentar-se” com tal vestimenta. Os tempos mudam-nos o pensamento. Nem o elegante e bonito papagaio se teria sobreposto a tão nefando atavio.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Il Trovatore


Verdi com a trilogia Rigoleto, Traviata e O Trovador, transformou completamente a ópera. O que até ali era praticamente teatro musicado passou a ser canto com história em teatro. Quase não usa os recitativos, normalmente monocórdicos e demasiado prolongados, tornando toda a encenação uma melodia constante. Conhecia bem as duas primeiras, mas a terceira nunca a tinha visto na totalidade. Aproveitando as novas tecnologias a Gulbenkian e o Corte Inglês promovem transmissões em directo, a primeira do Metropolitan Opera House de New York e o segundo da Royal Opera House de Londres. Na Gulbenkian já tinha assistido às Bodas de Fígaro de Mozart e, vi agora no Corte Inglês O Trovador de Verdi. Não sendo o mesmo que assistir a uma ópera em directo, acaba por ser um bom espectáculo que, à medida que a encenação avança quase nos esquecemos que estamos numa sala de cinema acabando por nos sentirmos espectadores assistentes directamente presentes do que se passa em palco. A forma como as cenas nos são apresentadas, quase todas em “big close up”, mostra-nos até mais pormenores do que se estivéssemos a assistir ao vivo. Acabamos por nos entrosar completamente na história com uma audição completa da música e canto. Esta ópera, como quase todas as de Verdi, é uma tragédia de paixão amor, ódio, ciúme e vingança, baseada no romance do espanhol António Garcia Gutierrez.
Numa das muitas guerras civis entre os vários reinos, os ciganos da Biscaia lutavam contra Aragão. O Conde de Luna, comandante do Exército real aragonês, amava perdidamente uma dama da corte, Leonora, que por sua vez estava enamorada de um rapaz, Manrico, o trovador, que lhe aparecia cantando-lhe serenatas de amor. Uma noite, o conde tentando ir ao encontro da sua amada encontra-se com o rival e entram em duelo. Manrico tenta apunhalar o Conde, mas a mão que empunha o punhal, é segura por uma força inexplicável e acaba por não realizar o seu intento. Entretanto, com o desenrolar da história, Azucena, cigana mãe de Manrico, revela que em tempos a sua mãe teria sido condenada pelo pai do Conde, a morrer na fogueira por acusação de bruxaria. Azucena que estava com o seu próprio filho nos braços, jurando vingança ao ver sua mãe a arder, agarra num dos filhos do Conde ainda bebé e atira-o ao fogo. Quando volta a pegar no seu filho vê com horror que aquele não é o seu. Levada pelo desespero e desejo de vingança, matara seu próprio filho. Manrico pergunta-lhe: "Então não sou seu filho?” ao que ela responde “Sim tu também és meu filho”.
No final, depois de várias peripécias, Manrico é preso pelo Conde e condenado à morte. Leonora, para o salvar, promete-se ao Conde, mas envenena-se antes. Vai junto de Manrico dizendo-lhe que está salvo, mas, entretanto, morre. O Conde sentindo-se traído manda fuzilar Manrico e ordena a morte de Azucena pela fogueira. Esta antes de perecer, confessa-lhe: “Mataste teu irmão”.
As árias de Leonor são magnificamente interpretadas pela arménia Lianna Haroutounian, com uma voz de soprano bastante límpida e sonante. O Conde é interpretado pelo ucraniano Vitaliy Bilyy, um barítono de voz possante cujos duetos com Lianna são extraordinariamente bem conseguidos. Manrico é interpretado pelo americano Gregory Kunde, com uma bonita voz de tenor, mas quanto a mim talvez o mais fraco de todos os interpretes. Surpreendeu-me a excelente “performance” da georgiana Anita Rachvelishvili, no papel de Azucena com uma possante e límpida voz de “Mezzo soprano”.
Os coros dos ciganos principalmente o célebre “Anvil Chorus” coro da bigorna, o coro dos soldados do 3º acto e o salmo “Miserere” no final, são soberbos.
A encenação é do alemão David Bosh, que transforma o libreto de Salvatore Macaranno colocando-o numa época mais moderna com carros de assalto e metralhadoras, com um colorido apagado e triste a condizer com a tragédia. Estas encenações modernas, muitas vezes, não dão a bota com a perdigota porque se torna ridículo ouvir no canto: “Esta minha espada clama vingança”, quando o cantor tem uma metralhadora na mão. Enfim, pormenores que não estragam a peça.

Estas transmissões têm a vantagem de serem explicadas com legendas, no início, por uma apresentadora que ao mesmo tempo vai entrevistando realizador e decorador. As entrevistas são sem legendas, mas que por não serem feitas a ingleses (um alemão e outro italiano), fazem-se compreender razoavelmente. Um bom espectáculo. Valeu a pena.