quarta-feira, 22 de setembro de 2021

 

Dádiva Divina

 

Conhecia Rui Zink apenas da TV e da rádio, principalmente de um programa que mantém na Antena 1 entre as onze e a meia-noite. Já apreciava o seu senso de humor, mas nunca tinha lido nada dele. Dádiva Divina chamou-me a atenção. Gosto de motivos religiosos principalmente se não forem sectários. Comecei a ler um pouco de pé atrás. Ao fim de dois dias tinha devorado 300 páginas. É uma espécie de policial com um detective particular um misto de Sam Spade de Dashiell Hammett e o Filósofo Spinoza, daí o seu nome Samuel Spinosa.

Este norte americano, judeu não crente, é contratado por uma firma tipo clínica particular e é-lhe dado um retracto robô para encontrar o original. O nosso Sam começa a desconfiar pois o “cachet” foi enorme. Disseram-lhe para não se poupar a despesas e que começasse por Adis Abeba onde um contacto o procuraria e que não se preocupasse, pois, esse contacto saberia encontrá-lo. No avião, em classe executiva, Sam olhava o retracto robô e cada vez mais espantado ficava pois poderia ser qualquer um, olhando bem até poderia ser Jesus Cristo.

Na cidade etíope Sam correu tudo o que era café e tascas. Num deles deu com um padre católico acompanhado de uma italiana de olhos grandes. Sam, com o seu faro detectivesco aproxima-se e nota grande animosidade por parte do padre que se diz irlandês de nome O’Reilly e a acompanhante, de seu nome, Chiara. Esta mais tarde revela-se aquilo que Sam já esperava, o seu contacto. Mais tarde um etíope magrinho e de barba que se confessa judeu coisa que surpreendeu Sam, faz-se encontrado. Este último parece saber quem Sam procura e diz-lhe que terá de ir à África do Sul e depois certamente a Roma e só aí encontrará respostas.

Após um encontro com um sul africano, Van Nuydem, um Boer anti-apartaide, que viajava com um africano de nome Massano que não tinha polegares, porque lhos cortaram, mas que tudo manejava e bem. Ao saber que Sam desejava rumar ao seu país oferece-se por lhe dar boleia de carro até Moçambique a dali logo se via.

Após muitas peripécias Sam é mordido por uma mamba. Massano usa o seu saber para tentar extrair-lhe o veneno, mas Sam entra num coma prolongado. Sam sonha muito e revê toda a sua vida: a separação da mulher e que é apanhado por uma seita que o quer baptizar para aceitar Cristo, coisa que recusa com repulsa, mas acaba mergulhado em água…

Os companheiros dão-no como morto, mas Sam acorda num hospital em Moatize, Moçambique onde uma branca tenta curar crianças e poucos adultos vítimas do HIV. Aqui Sam apaixona-se e acaba envolvido com a mulher que lhe confessa ser seropositiva e agora ele certamente também será. O hospital acaba atacado por bandidos armados comandados pelo padre católico, O’Reilly que dispara a torto e a direito gritando “Blasfémia! blasfémia!”. A Drª Graça é atingida e morre. Massano, grande lutador, acaba com muitos dos bandidos, mas é ferido de morte. O’Reilly foge. Graça, antes de morrer, confessa ter dado a Sam uma transfusão do seu sangue, única maneira de o salvar, mas que o tornou seropositivo. Sam fica a saber que o ataque sofrido era para o apanhar. O´Reilly tentava por todos os meios que ele não encontrasse quem pretendia.

É muito difícil contar um livro que tem muitos pensamentos e sonhos. Um judeu ateu a tentar encontrar alguém que julgam ser Cristo e que não sabem por onde anda. Daí muitos pensamentos de ordem filosófica e religiosa. Mas o nosso Sam encontra-o e logo em Lisboa, onde ajudado por uma prostituta que o leva a um túnel antro de droga e lá estava ele, apático, quieto e abúlico. Depois de atacado e espancado consegue fugir e leva-o com ele. Já na clinica, em Hudson na nova Inglaterra, Sam entrega-o ao que o contratara a quem chamava Ken, namorado da Barbie, sempre impecável bem vestido e aprumado. No gabinete estava o padre O’Reilly e Chiara. Ken explica que aquele era Jesus ressuscitado e só um judeu não crente o poderia ter encontrado. Com o sangue dele iriam fazer fortuna vendendo a imortalidade. Sam riu-se, mas O’Reilly grita mais uma vez “Blasfémia”. Chiara puxa por uma arma e dá-a a Ken que a encosta à cabeça do padre e diz:  Você vai morrer, e não vai encontrar Deus porque pecou e Jesus também não vai encontrar porque ele vai ficar aqui por todo o sempre a ajudar-nos. Sam reagiu por instinto. Deu uma palmada na mão de Ken que disparou e acertou na barriga de Chiara. O segurança apontou a pistola metralhadora e Sam deu-lhe um tiro no peito, mas não o matou devido a um colete anti bala. Surpreendentemente o padre prostra o segurança com um golpe em cutelo que o abateu. Ken atirou-se a Sam e o padre também surpreendentemente derruba-o com uma coronhada. Chiara continuava viva e Sam meteu-lhe uma bala na testa. O padre, já ferido, volta-se para Sam e diz-lhe: “Leve-o daqui, proteja-o, esconda-o e se não conseguir ponha-lhe termo à vida.”

Sam termina a sua actividade de detective e acaba numa comunidade de judeus ortodoxos que lhe fornecem um quarto com duas camas onde ele vai vivendo com o seu mudo e quedo companheiro que todos julgam ser atrasado mental, mas Sam pensa ir para outro lado. Parece já haver desconfianças, todos vão envelhecendo e “Jesus” permanece na mesma.

Que tal? Não é uma delícia?

Já gosto mais de Rui Zink.

 

 

O Que Diz Molero

 

Reparei que o indivíduo sentado na mesa ao lado olhava para mim com ar espantado, pudera, enfronhado que estava na leitura, nem reparava que de vez enquanto dava uma audível gargalhada. Raramente releio um livro, mas alguns há que me merecem essa atenção. Dinis Machado era um nome pouco conhecido. Director das publicações de Banda desenhada da Bertrand passava despercebido nos meios literários. O Que Diz Molero foi uma bomba revolucionária e um sucesso literário não esperado. Em dois anos fizeram-se 11 edições. O meu filho conseguiu um exemplar autografado.

Dinis Machado já escrevia, mas sob pseudónimo. Denis McShade era um escritor policial que o público português pensava ser americano. Resolveu escrever com o nome próprio e o seu primeiro livro foi uma explosão. O interessante do livro é que é escrito sobre uma personagem principal que nem nome tem. Um indivíduo, Austin, lê a Mister DeLuxe um relatório encomendado a um tal Molero, sobre a vida de um tipo a quem tratam por rapaz e rapaz foi até ao fim. Esse tal de rapaz, era um procurador da palavra para escrever uns poemas e ao mesmo tempo fazer um estudo sobre Miró. O relatório foca a vida do rapaz desde a infância num bairro de Lisboa e a sua peregrinação pelo Mundo procurando sempre a palavra certa.

A descrição da vida do rapaz no seu bairro é uma delícia. Para quem conhece Lisboa e seus arredores e lá viveu a sua infância vai reconhecer todo os personagens criados pelo autor bem como os filmes, livros, banda desenhada e artistas daqueles tempos. Dinis Machado cria alcunhas para os personagens amigos do rapaz, que são no fim, as alcunhas dos nossos amigos de infância. Está lá o Zuca, exímio contador de filmes, que imitava o som da espadeirada e cavalgadas, catapum, catapum, corria e esbracejava, murro para aqui e murro para acolá. Havia o Peida Gadocha, o Lucas Pireza, o Penteadinho, O Bigodes Piaçaba da drogaria, o Bexigas doidas, o Aranhiço, o Roque Sacristão, a Mafalda Capoeira vendedora de galinhas, o Evaristo que dizia que o importante era a tusa e que se espremia em qualquer buraco fosse galinha ou tijolo, o Vovô Resmungas e muitos outros. Havia o Ângelo que não se metia com ninguém, mas quando havia sarrafusca levava tudo e todos pela frente a murro e a pontapé, que o digam os camones desembarcados em lisboa que por tudo e por nada levantavam os punhos como grandes admiradores do boxe que eram. A esses o Ângelo despachava em série levando o vovô resmungas a fugir, coxo com a sua bengala a não tocar no chão e a dizer foda-se, foda-se…

Mas além da vida de bairro Dinis Machado descreve as amizades do rapaz como com Leduc, ginasta que conseguiu, nas argolas, o Cristo perfeito que levou 15 anos a aperfeiçoar e no dia seguinte numa festa comemorativa, numa desordem, levou com uma cadeira nas costas que o atirou para uma cadeira de rodas para toda a vida. O rapaz continuou amigo de Leduc com quem tinha conversas intelectuais sobre poesia e livros levando-o para uma falésia onde observavam o por do sol. Um dia, quando o rapaz se afastou para ir buscar umas bebidas, Leduc destravou a cadeira de rodas… o rapaz correu e ainda viu a espuma onde Leduc se afundou.

Molero descreve também os amores do rapaz primeiro com uma Mireille que conheceu em Paris e mais tarde com algumas outras ao longo do seu périplo pelo Mundo.

Alternando entre as piroseiras bairristas e a intelectualidade poética, o relatório de Molero descreve um pouco da vida de todos nós com uma excelente linguagem narrativa que nos encanta fazendo rir e chorar. Já da primeira leitura me diverti imenso e muito mais ainda, quando com o meu rapaz, recordávamos as peripécias mais caricatas. Enfim, uma segunda leitura que ainda me deu muito mais gozo.

 

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Tiro desportivo militar

 

 

 

 10, bom tiro, + 10, 2º tiro, + 10, 3º tiro, +10, 4º tiro, +10, 5º tiro, isto está a correr bem, boa arma, + 10, 6º tiro, + 10, 7º tiro, +10, 8º tiro, +10, 9º tiro. Tenho 90 pontos, vou fazer 100, nunca consegui tal coisa, ainda bem que comprei estas armas para a equipa.

A barriga assente na prancha de tiro começou a revolver, acomodei-me melhor, coloquei bem os pés. O nervoso miudinho entrou comigo. Respirei fundo. Tentei acalmar-me, tinha de fazer outro 10. Sustive a respiração. O dióptero estava circular com o negro do alvo. Só tinha de fazer sair o tiro quando tudo estivesse perfeito. O tiro saiu. Fiz um 9. 99 pontos, bom demais, mas uma frustração. Como se conseguirá fugir a este “stress” do último tiro?

Era chefe da equipa de tiro da Guarda Fiscal. Tínhamos 6 atiradores de espingarda e 6 de pistola. O tiro de espingarda era a 300 metros e só na serra da Carregueira podíamos treinar. Começámos a atirar de G3 com o “decalitro” na cabeça e botas de polainitos. Como sub-chefe do Serviço de finanças tentei melhorar os equipamentos. O chefe não orçamentou as despesas necessárias. Ficávamos sempre em último, mas competíamos galhardamente. Quando passei a chefe orçamentei o necessário. Adquiri o melhor dos melhores equipamentos. Espingardas Mauser de competição último modelo, casacos e botas de tiro, óculos de longo alcance para ver os resultados, toalhas próprias para limpeza das faces, líquido para lavagem ocular. Não nos faltava nada. No próximo campeonato das Forças Armadas ficámos a meio da tabela. Os resultados de pistola melhoraram muito. Comprei também armas altamente sofisticadas para tiro desportivo militar. Os rapazes melhoraram muito.

Fui fazer a estreia da minha espingarda à Carregueira, carreira de tiro militar minha velha conhecida desde os tempos de Pilão. Depois de acertar a arma e calcular o desvio do vento consegui 99 pontos. Foi muito bom, mas uma frustração, pois convenci-me que pela primeira vez ia conseguir 100. Puro engano. O “stress” não deixou. A GF subiu muito nas classificações. Fomos atirar no campeonato à Base Aérea da Ota que na altura dispunha da melhor carreira de tiro militar. Já possuía alvos electrificados que nos mostravam electricamente as pontuações obtidas. Nunca fiquei em primeiro na minha equipa, um major era bastante melhor e ficava sempre uns pontos acima, mas fui aquilo a que se chama um atirador de elite. Teria sido um bom “sniper” se tivesse estômago para isso. As bichezas em África é que se lixaram.