domingo, 29 de novembro de 2015

ENSAIOS DE ROBERT G. INGERSOLL OS DEUSES (1872) - Parte V

(continuação)

O selvagem, quando emerge do estado de barbarismo, gradualmente perde a fé nos seus ídolos de madeira e de pedra, e em seu lugar coloca uma multidão de espíritos. À medida que ele avança em conhecimento, ele descarta a sua trupe de espíritos, e em seu lugar coloca um único, tido como supremo e infinito. Supondo que o seu espírito é superior à natureza, ele oferece-lhe adoração e submissão em troca de protecção. Por fim, concluindo que não obtém qualquer ajuda da sua divindade -- descobrindo que toda a procura pela necessidade absoluta termina sempre em fracasso -- percebendo que o homem, sob nenhuma condição, pode conceber o incondicional -- ele começa a investigar os factos que o circundam, e só contar com ele mesmo. As pessoas estão começando a pensar, a raciocinar e a investigar. Gradualmente, dolorosamente, mas certamente, os deuses vão sendo expulsos da terra. Só muito raramente são eles, por pessoas muito religiosas, supostos de interferir nos afazeres do homem. Em quase todos os assuntos, nós somos levados a supor que somos livres. Desde a invenção das locomotivas a vapor e dos caminhos-de-ferro, de modo que os produtos de todos os países puderam ser intercambiáveis, os deuses têm perdido a habilidade de produzir a fome. Aqui e ali eles assassinam uma criança, por que eles são idolatrados pelos pais. Como regra eles têm desistido de causar acidentes em ferrovias, explodir caldeiras, pipocar lampiões de querosene. Cólera, febre-amarela e varíola são ainda consideradas armas dos deuses; mas varicela, sarna e peste são agora atribuídas a causas naturais. De modo geral, os deuses têm parado de afogar criancinhas, excepto como punição de não guardar os sábados. Eles ainda prestam alguma atenção aos afazeres dos reis, homens de inteligência ou de grandes fortunas; mas pessoas comuns são abandonadas à própria sorte. Em guerras entre grandes nações os deuses ainda interferem; mas em brigas comuns, o melhor, junto com um juiz honesto é quase sempre o vencedor.
A Igreja não pode abandonar a doutrina da divina providência. Desistir dela seria desistir de tudo. A Igreja tem de insistir que a oração é atendida -- que alguma força superior à natureza ouve e atende o pedido do sincero humilde cristão, e que esta misteriosa força, de algum modo actua sobre tudo. Um clérigo devoto procura toda oportunidade de impressionar a mente de seu filho de que Deus cuida de toda a criatura; que um pardal atrai sua atenção e que seu amor actua sobre toda a sua criação. Acontecendo ele ver, certo dia, uma garça procurando por comida, ele mostra ao filho o exemplo de um animal perfeitamente adaptado para conseguir sua sobrevivência.
"Veja", disse ele, "como essas pernas são programadas para a caça! que corpo esbelto ela tem! veja com que elegância ela introduz e retira suas patas da água! ela não provoca nenhuma agitação. Ela é capaz de abordar o peixe sem ser notada".
"Meu filho," disse ele, "é impossível ver este animal sem reconhecer a criação, assim como a bondade de Deus, dando os meios de sobrevivência." "Sim", respondeu o menino, "eu vejo a bondade de Deus desde que se veja o lado da garça; mas, pai, você não acha esta regra um tanto desvantajosa para o peixe?"

Até o mais moderno dos religiosos, mesmo duvidando de grande parte das supostas interferências divinas no nosso mundo actual, ainda crê que no início, algum deus fez as leis que governam o universo. Ele acredita que, em consequência dessas leis o homem pode levantar um peso maior com ou sem uma alavanca; que esse deus fez as leis e estabeleceu de certa forma a ordem das coisas, que duas coisas não podem ocupar o mesmo espaço simultaneamente; que um corpo, sendo posto em movimento, mantém-se em movimento até ser parado; que há uma maior distância ao redor que cruzando um círculo; que um quadrado perfeito tem quatro lados idênticos, em vez de cinco ou seis.
Ele insiste que foi necessário interferência divina para que um todo seja maior que suas partes, e que se não fosse pela providência divina, duas vezes um poderia ser maior que duas vezes dois, e que bastões e cordas teriam a mesma forma. Como o antigo deus escocês, ele agradece a Deus que o Domingo fique no fim e não no meio da semana, e que a morte aconteça só no fim, e não no princípio da vida, dando-nos, consequentemente, tempo suficiente para que nos preparemos para o evento solene. Essas pessoas vêem interferência divina por toda a parte. Eles insistem que o universo foi criado, e que as adaptações que vemos na natureza seriam puramente aparentes. Eles mostram-nos o brilho do sol, as flores, as chuvas de Abril, e afirmam por divino tudo o que há de belo e útil no mundo. Será que passa pelas suas mentes que o câncer seria tão belo como uma rosa? Que eles têm satisfação de chamar a adaptação de meios para atingir um fim, é tão aparente no câncer que nas chuvas de abril? Como é belo o processo de digestão! Que engenhoso método o de o sangue ser envenenado de tal forma que possa alimentar um câncer! Por que meio maravilhoso todo o organismo humano seja consumido para alimentar um câncer! Veja por quais métodos engenhosos ele se alimenta às custas de um organismo trémulo! Veja como ele rápida e eficientemente, cresce! Que belas cores ele apresenta! Por que maravilhosos mecanismos ele se enraíza e atinge os mais escondidos nervos dolorosos para sustentar sua vida! Veja através do microscópio que ele é um milagre de ordem e beleza! Nem toda a ingenuidade humana pode deter o seu crescimento. Pense na quantidade de pensamento que teve de ser produzido para inventar um meio para que a vida de alguém pudesse ser consumida para produzir um câncer. É possível ver isto e supor que exista uma administração no universo, e que o inventor desse maravilhoso câncer seja uma força infinitamente poderosa, engenhosa e boa? Informam-nos que o universo foi planeado e criado, e que é absurdo imaginar que a matéria tenha existido por toda a eternidade, mas que esta ideia é perfeitamente aceitável para um deus. Se um deus criou o universo, então deverá ter havido um tempo em que ele o começou a criar. Antes disto deverá ter existido uma eternidade, na qual nada havia -- absolutamente nada -- excepto o suposto deus. De acordo com esta teoria, o deus levou uma eternidade, por assim dizer, num vácuo infinito e na mais completa ociosidade. Admitindo que um deus criou o universo, a questão que se levanta é, de que ele o criou? Certamente ele não foi feito do nada. Nada sendo considerado matéria-prima é muito falho. Conclui-se que deus construiu o universo dele mesmo, sendo ele a única existência. O universo é material, e se ele foi feito por um deus, o deus tinha de ser também material. Com este pensamento em mente Anaxímedes de Mileto disse: "Criação é a decomposição do infinito." Está demonstrado que a terra cairia no sol só pelo fato de que ela é atraída por outros mundos ainda mais além, e assim sucessivamente sem fim. Isto prova que o universo não tem fim. Se um universo infinito foi feito de um deus infinito, o que sobrou então do deus?
A ideia de uma divindade criativa vem sendo abandonada gradualmente, e a maioria das mentes verdadeiramente científicas admitem que matéria tenha existido por toda a eternidade. Ela é indestrutível, e o indestrutível não pode ter sido criado. Esta é a glória do nosso século ter sido demonstrada a indestrutibilidade e existência eterna da força. Nem matéria nem força pode ser criada ou eliminada. Força não pode existir independentemente da matéria. Matéria só existe em conjunto com força, e consequentemente, uma força independentemente da matéria, e superior à natureza, é uma impossibilidade demonstrada. Força, deve ter existido por toda a eternidade, e não pode ter sido criada. Matéria, nas suas infinitas formas, de terra sem vida aos olhos da pessoa que amamos, e força, em todas as suas manifestações, de movimento simples até grandes pensamentos, negam a criação e desafiam o controlo. Pensamento é uma forma de força. Nós andamos com a mesma força com que pensamos. O homem é um organismo que transforma muitas formas de força em pensamento-força. O homem é uma máquina na qual se coloca o que chamamos comida, e produz o que chamamos pensamento. Pense na incrível modificação que permitiu com que pão fosse transformado na tragédia de Hamlet! Um deus deveria não só ser material, mas deveria ser um organismo capaz de transformar outras formas de força em pensamento. Isto é o que ocorre com a alimentação. Portanto, se um deus pensa, ele deve alimentar-se, ou seja, ele deverá possuir formas de suprir a força para pensar. É impossível supor um ser que dá eternamente força à matéria, e não tem qualquer meio de suprir a força doada. Se nem matéria nem força foram criadas, que evidência temos nós de uma força superior à natureza? Os teólogos irão provavelmente responder: "Nós temos leis e ordem, causa e efeito, e além disso, matéria não se colocaria por si só em movimento." Suponhamos, para fins de argumento, que não há um ser superior à natureza, e que matéria e força tenham existido eternamente. Agora suponha que dois átomos se chocando, haverá um efeito? Sim. Suponhamos que eles venham em direcções opostas e com igual força, eles sejam parados, para dizer o mínimo. Isto seria um efeito. Se é assim, então nós temos força, matéria e efeito sem um ser superior à natureza. Agora suponha que dois átomos, como os dois primeiros, venham juntos nas mesmas circunstâncias, não seria o efeito exactamente o mesmo? Sim. Mesmas causas produzindo os mesmos efeitos é o que chamamos lei e ordem. Então, temos matéria, força, efeito, lei e ordem sem um ser superior à natureza. Agora sabemos que todo efeito tem de ter uma causa e que toda causa tem de ter um efeito. Os átomos chegando juntos, produzem um efeito, e como todo efeito tem que ter uma causa, o efeito produzido pela colisão de átomos, deve ter sido provocado por algo. Então temos matéria, força, lei, ordem, causa e efeito sem um ser superior à natureza.

(continua)

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

ENSAIOS DE ROBERT G. INGERSOLL OS DEUSES (1872) - Parte IV

(continuação) 

As pessoas religiosas sempre acreditaram que os testemunhos desses diabos eram perfeitamente conclusivos, e os escritores do Novo Testamento citavam as palavras desse sinistro personagem das trevas com muita satisfação. O facto de Cristo ter resistido à tentação do demónio era considerado conclusiva evidência de que ele era apoiado por algum deus, ou algum ser superior aos homens. São Mateus cita a tentativa de o diabo tentar o suposto filho de Deus; e isto sempre maravilhou os cristãos, de como a tentação foi tão heróica e nobremente repelida. A citação à qual me refiro é a seguinte: "Então Jesus foi conduzido pelo espírito para a selva para ser tentado pelo diabo. E quando o tentador chegou até ele, ele disse: 'Se és o filho de Deus, transforma estas pedras em pão'. Mas ele respondeu dizendo: 'Está escrito: o homem não pode viver só de pão, mas de todas as palavras que vêm da boca de Deus'. Então o diabo conduziu-o à cidade sagrada, foram até o pináculo do templo e Satan disse: 'Se és o filho de Deus, atira-te lá para baixo; por que está escrito, Ele dará condições aos anjos para te proteger antes de atingires qualquer pedra.' Jesus então disse-lhe: 'Está escrito também, não deverás tentar o senhor teu Deus.' Então o diabo conduziu-o até uma montanha alta e ofereceu-lhe todos os reinos do mundo para toda a sua glória, e disse-lhe:'Tudo isto te darei se te atirares e me adorares.' Os cristãos afirmam agora que Cristo era um Deus. Se fosse um Deus, é claro que o diabo saberia, e de acordo com essa história, o diabo levou o Deus omnipotente e o colocou no pináculo do templo e tentou induzi-lo a se atirar lá de cima contra o chão. Falhando nisso, ele levou o criador e dono do universo para uma elevada montanha e ofereceu-lhe o mundo -- seu grão de areia -- se Ele -- o Deus de todos os mundos, se atirasse e o adorasse, um pobre diabo, que não tinha onde cair morto! Seria possível que o diabo fosse tão idiota? Poderíamos dar qualquer crédito a esse deus por não cair numa armadilha tão ridícula? Pense nisto! O diabo -- o príncipe dos trapaceiros -- o rei da astúcia -- o mestre da manha, tentando subornar um Deus com um grão de areia que lhe pertencia! Há algo na literatura religiosa do mundo mais totalmente absurdo do que isto? Esses demónios, de acordo com a Bíblia, eram de vários tipos -- alguns podiam ouvir e ver, outros eram surdos e mudos. Nem todos podiam ser expulsos da mesma forma. Os espíritos surdos e mudos eram um tanto difíceis de lidar. São Mateus fala de um senhor que levou o seu filho a Cristo. O menino dizia-se, era possesso por um espírito mudo, sobre os quais os discípulos não tinham qualquer poder. "Jesus disse ao espírito: "Tu, espírito surdo e mudo, eu te ordeno a sair e não entrar mais nele'." Então, o espírito surdo (ouvindo o que ele disse) gritou (sendo mudo), e imediatamente se retirou. A facilidade com a qual Cristo lidou com esse espírito maravilhou os discípulos e eles perguntaram-lhe reservadamente por que é que eles não puderam expulsar aqueles espíritos. E ele respondeu: "Estas coisas podem se fazer com nada mais que oração e jejum". Haverá no mundo um cristão que acredite nesta história se fosse descrita em qualquer outro livro? A resposta é que essas pessoas piedosas fecharam a sua razão ao abrir as suas Bíblias. Essa crença em forças de deuses e diabos tem origem no facto de que o homem é circundado por fenómenos que ele considera bons ou ruins. Fenómenos que afectavam positivamente os homens eram considerados como bons espíritos. Fenómenos considerados desagradáveis eram considerados maus espíritos. Admitia-se que todos os fenómenos fossem provocados por espíritos. Os espíritos dividiam-se de acordo com os fenómenos e os fenómenos eram bons ou maus quando afectavam o homem. Bons espíritos provocavam os bons fenómenos, e maus espíritos, o mal -- então a ideia de diabo tornou-se tão universal como a ideia de um deus. Muitos escritores sustentam que, uma ideia, sendo universal, tem que ser verdadeira; que todas as ideias universais são inatas, e que ideias inatas não podem ser falsas. Se é verdade que uma ideia, sendo universal, prova que é inata, e se é verdade que uma ideia, sendo inata, prova que é verdadeira, então, os que acreditam numa ideia inata devem admitir que a ideia de um deus superior à natureza e um diabo superior à natureza é exactamente o mesmo que a existência desses diabos é tão evidente quanto a existência desse deus. A verdade é que um fenómeno de um deus tido como bom, e um diabo tido como mau. E seria tão natural e lógico supor que um diabo causasse felicidade quanto supor um deus que trouxesse miséria. Consequentemente, se um deus, inteligente, infinito e supremo é o autor imediato de todos os fenómenos, seria difícil determinar se tal criatura é amiga ou inimiga do homem. Se todos os fenómenos fossem bons, poderíamos afirmar que foram produzidos por um ser perfeitamente benevolente. Se fossem todos ruins, poderíamos dizer que foram produzidos por forças maléficas; mas como os fenómenos são considerados como afectando o homem, bons ou maus, eles deverão ser produzidos por forças antagónicas de diferentes espíritos; por uns que algumas vezes atuam com bondade e outras vezes com malícia; ou todos os fenómenos são produzidos pela necessidade, sem referência a suas acções sobre o homem. A tola doutrina de que todos os fenómenos podem ser traçados pela interferência de espíritos bons ou ruins, tem sido, e ainda é, quase universal. Que a maioria das pessoas ainda crê em algum espírito pode alterar a ordem natural dos factos, é provado pelo facto de que quase todos recorrem à oração. Milhares estão a cada momento implorando para que alguma força superior interceda a seu favor. Alguns querem que sua saúde se restabeleça; alguns pedem para que os entes distantes e ausentes sejam supervisionados e protegidos, alguns pedem riquezas, alguns imploram por chuva, alguns querem que doenças estacionem, alguns imploram em vão por comida, alguns pedem para reviver, uns poucos pedem mais sabedoria, e de vez em quando um pede para que o seu deus faça o que achar melhor. Milhares pedem para ser protegidos pelo diabo; alguns, como Davi, pedem vingança e outros pedem a Deus para não os deixar cair em tentação. Todas estas orações se baseiam na crença, na ideia de que uma força, não só pode como provavelmente irá alterar a ordem dos factos da natureza. Esta crença está presente em praticamente todas as tribos e nações. Todos os livros sagrados estão cheios de descrições dessas interferências, e nossa Bíblia não é excepção a esta regra. Se acreditarmos numa força superior à natureza, é perfeitamente natural que admitamos que esta força pode e irá produzir interferências nos acontecimentos da natureza. Se não há esta interferência, que função poderá ter esta força? As escrituras nos dão as mais maravilhosas descrições de divina interferência? Animais falam com homens; fontes brotam de ossos secos; o sol e a lua param no céu para que General Josué tenha mais tempo para assassinar; os ponteiros de um relógio de sol retornam dez graus para convencer um rei insignificante de um povo bárbaro, que ele não morrerá cozinhado; fogo recusa-se a arder; água recusa-se teimosamente a seguir o seu caminho, mas ergue-se como uma barreira; grãos de areia viram piolhos; bengalas, para satisfazer um truque, curvam-se e se transformam em serpentes e se engolem umas as outras; gritando e rindo da força de gravidade, sobem montes e seguem andarilhos por pura diversão; profecias tornam-se mais fáceis que a história; os filhos de deuses se apaixonam por mulheres do mundo; mulheres transformam-se em estátuas de sal com o propósito de manter um evento memorável fresco na mente das pessoas; excelentes artigos de enxofre são importados do céu livre de taxas; roupas se recusam a sair dos seus donos por quarenta anos; pássaros mantêm profetas andarilhos livres de despesas de restaurante e alimentos; ursos despedaçam crianças por terem zombado de um homem calvo; força muscular depende do tamanho da cabeleira de um homem; mortos revivem apenas para fazer gozação dos seus inimigos e herdeiros; bruxas e feiticeiras conversam livremente com as almas das pessoas mortas, e Deus em pessoa torna-se um pedreiro e escultor, depois de ter sido um alfaiate e costureiro. O véu entre a terra e o céu estava sempre rasgado ou suspenso. A sombra deste pequeno mundo, a radiância do céu, e o fulgor do inferno se misturaram e diminuíram até que o homem não soubesse mais em que país habitava. O homem morava num mundo irreal. Ele confundia as suas ideias, os seus sonhos, com coisas reais. Os seus medos se transformaram em monstros terríveis e maliciosos. Ele vivia no meio de monstros e fadas, ninfas e donzelas, duendes e fantasmas, bruxas e magos, fantasmas e assombrações, deuses e diabos. As profundezas escuras e as trevas eram preenchidas com presas e asas -- com bicos e patas -- com olhares sinistros e bocas debochadas -- com a malícia da deformidade e a astúcia do ódio, e com todas as formas viscosas que o medo pode desenhar e pintar sobre a tela sombreada da escuridão. Isto é suficiente para tornar alguém quase insano com piedade para pensar sobre tudo o que o homem, na longa noite, tem sofrido; das torturas que sofreu, circundado, supunha, por forças malignas e agarrado por fantasmas cruéis. Não surpreende que se ajoelhasse trémulo sobre os altares por ele construídos e os molhasse com seu próprio sangue. Não surpreende que ele implorasse a sacerdotes ignorantes e mágicos desavergonhados, por ajuda. Não surpreende que ele rastejasse trôpego nas empoeiradas portas dos templos, e lá dentro, na insanidade e desespero, implorasse a deuses surdos que atendessem suas amargas súplicas de agonia e desespero. 

(continua)

terça-feira, 24 de novembro de 2015

ENSAIOS DE ROBERT G. INGERSOLL OS DEUSES (1872) - Parte III

(continuação)

Algumas nações tomaram emprestados os seus deuses; entre essas, somos obrigados a admitir, a nossa própria. Os judeus, cessando de existir como país, sobrando um deus inútil, nossos antepassados o adoptaram, assim como o seu diabo ao mesmo tempo. Este deus emprestado permaneceu como fonte de adoração, e este diabo adoptado excita a apreensão do nosso povo. Ainda se supõe que ele instala as suas armadilhas e fareja com o propósito de flagrar nossas almas incautas, e ele ainda, com algum sucesso, provoca guerras contra o nosso Deus. Para mim é fácil dispor destas ideias a respeito de deuses e diabos. Eles são uma produção artificial. O homem criou-os a todos, e sob as mesmas circunstâncias os criaria novamente. O homem não só criou todos esses deuses, como criou também todo o material que os circunda. Geralmente os deuses eram modelados a partir deles mesmos, e demos a eles mãos, cabeças, pés, olhos, orelhas e órgãos da fala. Cada nação fez os seus deuses falar apenas a sua própria língua. Da mesma forma, colocou na sua boca os mesmos enganos em história, astronomia e geografia, e em todos os assuntos que aqueles povos conheciam. Nenhum deus era mais avançado que os povos que os criaram. Os negros representavam os seus deuses de cor escura e cabelos crespos. Os dos mongóis tinham os olhos amendoados e a mesma tonalidade da pele. Os judeus não se permitiam fazer pinturas dos seus; se houvesse gravuras, veríamos um deus com face oval, e um nariz aquilino. Zeus era um perfeito grego. E Javé, parecia até um membro do Senado romano. Os deuses egípcios tinham o mesmo aspecto paciente e o rosto plácido que tinham as simpáticas pessoas que os inventaram. Os deuses dos nórdicos eram representados invariavelmente usando roupas de pele, e bem agasalhados; os dos trópicos eram representados nus. Os deuses da Índia eram frequentemente representados sobre elefantes; os deuses de habitantes de ilhas eram sempre bons nadadores, e os deuses dos habitantes do ártico gostavam de óleo de baleia. Quase todos os povos pintaram ou esculpiram representações dos seus deuses, e essas representações eram, pelas classes mais baixas, tratadas como deuses reais, para a imagem dos seus deuses eles dirigiam orações e sacrifícios. Em alguns países, até nos nossos dias, se um povo, após longas orações, não tinha os seus desejos atendidos, eles deitavam as suas imagens fora, como deuses inúteis, ou os detratavam da maneira mais reprovável, lançando sobre eles golpes e maldições: "Como podes agora, espírito cão", eles diziam, "nós te alojámos num templo magnífico, adornámos-te com ouro, oferecemos-te incenso, alimentámos-te com as nossas melhores comidas; e depois de toda esta dedicação, recusas atender o nosso pedido?" Depois derrubavam o deus e deitavam-no fora. Se, eventualmente depois eles obtinham o que desejavam, então, com uma grande cerimónia, o apanhavam de volta, lavavam-no e limpavam-no, colocavam-no de volta no seu trono, e se desculpavam pelo que haviam feito. "Na verdade" eles diziam, "nós somos muito maus, e tu és infinito na tua bondade. Mas o que foi feito está feito. Não pensemos mais nisto. Se esqueceres o que aconteceu, nós te devolveremos o brilho novamente." O homem nunca sofreu falta de deuses. Ele adorava quase tudo, inclusive os seres mais repugnantes. Ele tem adorado o fogo, a terra, o ar, a água, a luz, estrelas, e por centenas de anos, ele se tem curvado diante de serpentes. Povos selvagens têm feito sacrifício para objectos que eles recebiam dos civilizados. Os Todas adoravam um chocalho de vaca. Os Kotas adoravam duas placas de prata, que eles consideravam como sendo marido e mulher. O homem, sendo sempre fisicamente superior à mulher, torna compreensível por que a maioria dos deuses são do sexo masculino. Se fosse o contrário, o responsável pelas forças da natureza seria mulher e, em vez de representados com armas masculinas, seriam adornados com colares, vestidos e usariam cabelos longos. Nada tem sido mais claro que o facto de todas as nações terem dado aos seus deuses as suas próprias características, e que cada indivíduo dá a seu deus suas próprias peculiaridades. O homem não tem qualquer ideia além daquelas sugeridas pelo seu ambiente. Ele não pode conceber nada completamente diferente de tudo o que ele vê e sente. Ele pode exagerar, aumentar, diminuir, combinar, separar, melhorar, multiplicar, embelezar, deformar e comparar o que ele vê, sente e ouve, e tudo de que ele toma conhecimento através de seus órgãos dos sentidos; mas ele não pode criar. Vendo exposição de força ele pode dizer, omnipotente. Tendo vivido, ele pode dizer, imortalidade. Sabendo algo sobre o tempo, ele pode dizer, eternidade. Concebendo algo de inteligente, ele diz, Deus. Vendo exibições de maldade, ele diz, diabo. Um pouco de felicidade caindo nas suas vidas, e ele diz, céu. Dor, sob suas mais diferentes formas, ao experimentar ele diz, inferno. Na verdade todas estas ideias têm um fundamento em factos, e só um fundamento. Tudo se limita a um exagero, diminuição, combinação, separação, combinação, deformação, embelezamento, melhoramento, ou multiplicação da realidade, de modo que a construção não é nada mais que o agrupamento incongruente de tudo aquilo que é percebido pelos órgãos dos sentidos. É como se déssemos a um leão as asas de uma águia, os chifres de um búfalo, a cauda de um cavalo, a sacola de um canguru, o tronco de um elefante. Nós então criamos na imaginação um monstro impossível, e na verdade, as diferentes partes desse monstro de facto existem. Assim é com todos os deuses que o homem fez. Além da natureza, o homem não pode ir nem em pensamento -- ou acima da natureza ele não pode ir -- abaixo da natureza ele não pode descer. O homem, na sua ignorância, supõe que todos os fenómenos são produzidos por uma força inteligente, e com directa referência a ele. Preservar relações amigáveis com essas forças, sempre foi e tem sido o objectivo de todas as religiões. O homem se ajoelha de medo e implora ajuda, ou faz isso em gratidão a algum favor que ele supõe que lhe foi dado. Ele procura, através da súplica, acalmar algum ser que, por alguma razão, crê ele, está enraivecido. Os relâmpagos e trovões o assustam. Na presença de um vulcão ele se ajoelha. As grandes florestas, cheias de animais selvagens, com serpentes enormes enroscando-se nas suas profundezas, o mar profundo, os cometas, os eclipses sinistros, a assustadora calma das estrelas, e mais que tudo, a perpétua presença da morte, o convenceram de que o homem era o passatempo e a presa de forças malignas. As estranhas e assustadoras doenças que o afligiam, os calafrios e a febre, as contracções da epilepsia, as paralisias súbitas, a escuridão da noite, e os sonhos terríveis, fantásticos e selvagens que enchem a sua mente convenceram-no de que era assombrado por numerosos espíritos e diabos. Por alguma razão supôs que alguns desses espíritos diferiam em poder -- que nem todos eram igualmente malevolentes -- que os mais elevados controlavam os mais baixos, e que nossa sobrevivência dependia de ganhar assistência dos mais fortes. Por esta razão, ele decidia rezar, agradar, adorar e oferecer sacrifícios. Estas ideias parecem ser quase universais no homem incivilizado. Por muito tempo todos os povos supunham que os loucos e doentes eram possuídos por espíritos maus. Por muitos anos a prática da medicina consistia em expulsar esses demónios. Usualmente o sacerdote procurava fazer o máximo de barulho possível. Eles sopravam trombetas, batiam em tambores, agitavam chocalhos, e emitiam gritos terríveis. Se os remédios ruidosos falhassem, eles imploravam pela ajuda de outros espíritos mais poderosos. Pacificar os espíritos era considerado de fundamental importância. Os pobres bárbaros, sabendo que os homens poderiam ser dominados por venenos, davam aos espíritos aquelas substâncias que consideravam de maior valor. Com o coração partido eles entregavam aos espíritos o sangue de seus filhos. Era para eles impossível conceber um deus totalmente diferente deles próprios e eles acreditavam que essas forças do ar poderiam ser afectadas um pouco pela visão de tão profunda tristeza. Foi com os bárbaros, assim como com os civilizados agora -- que uma classe vivia através da mercantilização do medo dos outros. Certas pessoas se colocavam na função de acalmar os deuses, e a instruir os outros sobre seus deveres para com esses seres invisíveis. Isto foi o início dos sacerdotes. Eles fingiam colocar-se entre a crueldade dos deuses e o desamparo do homem. Eram os advogados humanos na corte do céu. Eles carregavam ao mundo invisível a bandeira da trégua, do protesto, do requerimento. Eles voltavam com a autoridade, o comando e a força. Os homens ajoelhavam-se diante dos seus próprios servos, e o sacerdote, obtendo vantagem das suas acções inspiradas pela sua suposta influência com os deuses, fazia dos seus semelhantes uns hipócritas rastejantes e uns escravos. Até Cristo, um suposto filho de um deus, ensinava que as pessoas eram possuídas por demónios, e frequentemente, de acordo com os relatos, dava provas da sua divina origem e missão, assustando multidões de demónios para fora dos seus infelizes concidadãos. Expulsar demónios era a sua principal função, e os demónios expulsos geralmente aproveitavam a situação para reconhecê-lo como verdadeiro messias; o que não era muito conveniente para eles, mas que o beneficiava.

(continua)

domingo, 22 de novembro de 2015

ENSAIOS DE ROBERT G. INGERSOLL - OS DEUSES (1872) - Parte II


(continuação)

O livro, chamado Bíblia, é cheio de trechos igualmente horríveis, injustos e atrozes. Este é o livro para ser lido nas escolas para tornar nossos filhos amorosos, gentis e suaves! Este é o livro que querem colocar na nossa constituição como a fonte de toda autoridade e justiça! Estranho! Que ninguém tenha sido perseguido pela igreja por adorar um deus mau, enquanto milhões têm sido perseguidos por considerá-lo bom. A igreja ortodoxa jamais perdoará os Universalistas por dizer "Deus é amor". Sempre foi considerado como uma das mais altas evidências de verdade da pura religião insistir que todos os homens, mulheres e crianças mereçam danação eterna. Tem sido sempre heresia dizer que "Deus no final nos salvará a todos". Somos solicitados a justificar essas passagens assustadoras, essas leis infames de guerra, porque a Bíblia é a palavra de Deus. Na verdade nunca houve, nem poderá haver, qualquer argumento que prove a inspiração divina de qualquer um daqueles livros. Na ausência de evidência positiva, analogia e experiência, argumentos são simplesmente impossíveis, e na melhor das hipóteses, pode-se provocar apenas uma inútil agitação no ar. No momento em que admitimos que o livro é muito sagrado para ser duvidado, ou até mesmo visto racionalmente, tornamo-nos servos mentais. É infinitamente absurdo supor que um deus que mandasse uma comunicação a seres inteligentes, tornasse um crime para ser punido com chamas eternas, se esses seres usassem a sua inteligência para compreender essa comunicação. Se temos o direito de usar a nossa razão, nós certamente temos o direito de agir de acordo com ela, e nenhum deus tem o direito de nos punir por tal acção.
A doutrina que afirma que a felicidade futura depende da crença é monstruosa. É a infâmia das infâmias. A noção de que a fé em Cristo será recompensada com a felicidade eterna, enquanto agir de acordo com a razão, observação e experiência merece sofrimento eterno, é tremendamente absurda para refutação, e só poderá ser explicada por uma mistura infeliz de insanidade e ignorância chamada "fé". Qual o homem que pensa, poderá acreditar que sangue agrada a um deus? E no entanto, todo o nosso sistema religioso é baseado nessa crença. Os judeus pacificavam Jeová com o sangue de animais, e de acordo com o sistema cristão, o sangue de Cristo amoleceu um pouco o coração de Deus, o que motivou a possível salvação de alguns poucos bem-afortunados. É difícil de acreditar como a mente humana pode crer em terríveis ideias como esta, e como um homem são pode ler a Bíblia e permanecer acreditando na doutrina da inspiração. Se a Bíblia é falsa ou verdadeira, isto é irrelevante em comparação com a liberdade de pensamento da nossa espécie. Salvação através da escravidão é inútil. Salvação da escravidão é inestimável. Até onde o homem creia que a Bíblia é infalível, aquele livro é o mestre. A civilização deste século não é filha da fé, mas da não-crença -- o resultado do livre pensamento. Tudo o que é necessário, e assim me parece, para convencer qualquer homem racional de que a Bíblia é uma invenção puramente humana -- uma invenção bárbara -- é lê-la. Leia como você leria qualquer outro livro; pense como você pensaria com outro livro qualquer; tire as vendas da reverência dos seus olhos; tire do seu coração o fantasma do medo; tire do trono da sua mente a figura enroscada que é a superstição -- e leia a Bíblia Sagrada, e você ficará assustado em supor como seria possível que um ser de infinita sabedoria, bondade e pureza pudesse ser o autor de tamanha ignorância e atrocidade. Os nossos ancestrais, não só possuíam a sua fábrica de deuses, mas faziam diabos também. Esses diabos eram geralmente deuses decaídos. Alguns haviam liderado revoltas mal sucedidas; alguns tinham sido apanhados suavemente descansando sobre uma nuvem, beijando a esposa do deus dos deuses. Esses demónios eram geralmente simpáticos aos homens. Há em relação a eles um facto maravilhoso: em quase todas as teologias, religiões e mitologias, os diabos têm sido muito mais humanos e misericordiosos que os deuses. Nenhum diabo jamais deu ordem a um dos seus generais para assassinar crianças ou estripar o ventre de uma mulher grávida. Todas essas barbaridades eram comuns ao comportamento dos bons deuses. As pestes eram enviadas pelos mais misericordiosos dos deuses. A fome assustadora, na qual os lábios pálidos de crianças sugavam os seios vazios das mães mortas, era enviada pelos deuses amorosos. Nenhum diabo jamais foi acusado de cometer essas terríveis brutalidades. Um desses deuses, de acordo com a lenda, afogou um mundo inteiro, com excepção de oito pessoas. O jovem, o velho, a bela e desamparada, foram impiedosamente devorados pelas águas. Esta, a mais terrível tragédia que a imaginação de sacerdotes ignorantes já pôde conceber, foi o acto, não de um diabo, mas de um deus, assim chamado, que homens ignorantes adoram até nossos dias. Que mancha um acto como este deixaria no carácter de um diabo! Um dos profetas de um desses deuses, tendo em seu poder um rei capturado, fê-lo em pedaços à frente de todo o povo. Já se soube de algum diabo sendo responsável por tal selvajaria?
Um desses deuses, segundo se conta, teria dado a seguinte orientação, com relação à escravidão: "Se comprares um servo judeu, seis anos deverá ele trabalhar, e no sétimo, deverá ele ser libertado por nada. Se ele vier por si só, deverá ir por si só; se ele for casado, deverá a sua esposa ir com ele. Se o seu mestre lhe tiver oferecido uma esposa, e ela lhe der filhos e filhas, a mulher e os filhos deverão pertencer ao mestre, e neste caso, ele irá só. E se o servo disser: eu amo meu mestre, minha mulher e meus filhos; não irei sozinho. Então o mestre deverá levá-lo aos juizes. Ele deverá então trazê-lo para a porta, e o mestre furará sua orelha com uma sovela; e ele o servirá para sempre".
De acordo com este relato, um homem ganhará a liberdade com a condição de que desista para sempre da sua esposa e filhos. Já se soube de algum diabo que tenha forçado um marido, um pai, a tomar uma decisão tão cruel? Quem poderá adorar um deus como este? Quem poderá ajoelhar-se diante de tal monstro? Quem poderá orar para um ente tão maléfico? Todos os deuses ameaçaram com o sofrimento eterno as almas dos seus inimigos. Algum diabo já fez tão infame ameaça? A mais vil acção de um diabo foi aquela que se fala com relação a Jó e sua família, acção esta realizada sob a expressa permissão de um desses deuses, e para decidir a pequena diferença de opinião entre sua altíssima serenidade e como o carácter de "meu servo Jó".
A primeira descrição do diabo que temos é aquela encontrada naquele livro puramente científico chamado Gênesis, e assim temos: "Agora a serpente era mais astuta que qualquer besta no campo que o Senhor Deus havia feito, e ela disse à mulher, sim Deus não disse que não deverás comer o fruto da árvore do jardim? E a mulher disse à serpente nós poderemos comer o fruto da árvore do jardim; mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus tinha dito, não deverás comê-lo e não deverás tocá-lo, senão morrereis. E a serpente disse à mulher, certamente não morrerás. E Deus saberá que se no dia em que comeres, teus olhos permanecerão abertos, e serás como deuses, sabendo o bem e o mal. E quando a mulher soube que o fruto era bom como comida, que era agradável aos olhos, e uma árvore desejável para nos fazer sábios, ela tirou o fruto e o comeu, e deu-o também a seu marido, e ele o comeu. E o Senhor Deus disse, olha, o homem se tornou um de nós, conhece o bem e o mal; e agora, deixemos colocar fora sua mão e tirar a árvore da vida: e comer, e viver para sempre. E então, o Senhor Deus os expulsou do jardim do Éden, da terra onde estavam. Então ele expulsou o homem, e o colocou no leste do Jardim do Éden  um querubim e uma espada flamejante, que mantiveram o caminho da árvore da vida." De acordo com esta história, a palavra do diabo realizou-se literalmente, Adão e Eva não morreram e tornaram-se deuses, passando a conhecer o bem e o mal. A história conta, entretanto, que os deuses odiavam a educação e conhecimento, exactamente como agora. A igreja ainda guarda com muita fé a perigosa árvore do conhecimento, e tem exercido todo o seu poder com o objectivo de manter a humanidade longe de comer o seu fruto. Os sacerdotes nunca pararam de repetir a velha falsidade e a velha ameaça: "Não devereis comê-lo nem devereis tocá-lo, senão morrereis." De cada púlpito vem o mesmo grito, nascido do mesmo medo: "Se comerdes, sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal". Por esta razão a religião odeia a ciência, a fé detesta a razão, a teologia é inimiga mortal da filosofia, e a igreja, com sua espada flamejante, ainda guarda a árvore do conhecimento, e como seus supostos fundadores, amaldiçoa até as profundezas os pensadores que o comeram e se tornaram como deuses. Se a história do Gênesis for verdadeira, não deveríamos, na verdade, agradecer à serpente? Ela foi a primeira professora, a primeira advogada do ensino, a primeira inimiga da ignorância, a primeira a sussurrar aos ouvidos humanos a palavra sagrada liberdade, a criadora da ambição, a autora da modéstia, do questionamento, da dúvida, da investigação, do progresso e da civilização. Dê-me a tempestade e o vendaval do pensamento e acção, em vez da calma morta da ignorância e da fé! Expulse-me do Éden quando quiser; Mas antes, deixe-me comer do fruto da árvore do conhecimento.

(continua)

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

ENSAIOS DE ROBERT G. INGERSOLL OS DEUSES (1872)

Começo hoje a transcrever no meu blog um texto deste ilustre pensador dos finais do século dezanove. Parece incrível como Ingersoll defendeu o agnosticismo num país tão fervorosamente crente como os USA, principalmente numa época em que um ateu era visto como um proscrito. Espero que os meus amigos crentes, que muito respeito, não me diabolizem. Tenho tanto direito em mostrar o meu ateísmo como os crentes têm em divulgar as suas ideias. Leiam porque vale a pena. A tradução deste texto foi executada por um brasileiro e publicada com pouco cuidado. Tentei aportuguesar e emendar os erros, mas é provável que tenha deixado passar alguns. Que me desculpem por isso também.

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"Um Deus honesto é a mais nobre realização do homem"  


Parte I

Cada nação tem criado o seu deus, e o deus sempre se assemelhou aos seus criadores. Ele odiava e amava o que eles odiavam e amavam, e o deus invariavelmente se encontrava do lado daqueles que detinham o poder. Todo o deus era intensamente patriota e detestava toda a nação com excepção da sua. Todos esses deuses exigiam adoração, reverência e submissão. A maioria deles se compraziam com sacrifícios, e o cheiro de sangue dos inocentes era considerado um perfume divino. Todos esses deuses sempre insistiram em ter um vasto número de sacerdotes, e os sacerdotes sempre insistiram em ser apoiados pelo povo, e a principal ocupação do sacerdote era divulgar sobre o seu deus, e insistir que ele poderia eliminar todos os outros deuses.
Esses deuses têm sido fabricados sob numerosos modelos, e de acordo com as mais grotescas formas. Alguns tinham milhares de braços; outros, centenas de cabeças; alguns eram adornados com colares de cobras vivas, alguns armavam-se com bastões, outros com espadas e escudos, alguns com fivelas, outros com asas como querubins; alguns eram invisíveis, outros se mostravam por inteiro, alguns mostravam apenas as suas costas; alguns eram ciumentos, outros tolos, outros transformavam-se em homens, outros em cisnes, outros em touros, outros em pombas, outros em espíritos santos, e muitos fizeram amor com belas donzelas humanas. Alguns eram casados e alguns eram considerados velhos solteiros por toda a eternidade. Alguns tinham filhos, e os filhos se transformavam em deuses, e adorados como seus pais o eram. A maioria desses deuses eram vingativos, selvagens, lascivos e ignorantes. Como geralmente eles dependiam de seus sacerdotes para informação, a sua ignorância dificilmente excita o nosso assombro.
Esses deuses não sabiam sequer a forma do mundo que eles mesmos criaram, pois supunham que era perfeitamente plano. Alguns pensavam que o dia poderia ser alongado se o sol fosse parado, e que o toque de trombetas poderia derrubar os muros de uma cidade, e todos sabiam tão pouco sobre a natureza do povo que criaram, que mandavam o povo amá-los. Alguns eram tão ignorantes que achavam que o homem poderia acreditar no que quisesse, ou seguindo o seu comando, e que ser conduzido pela razão, observação e experiência, seria o mais terrível e imperdoável dos pecados. Nenhum desses deuses conseguia contar uma história verdadeira sobre a criação desta pequena terra. Todos eram incrivelmente deficientes em conhecimentos de geologia e astronomia. Como regra, eram péssimos legisladores ou executivos. Eram inferiores à media dos presidentes americanos. Esses deuses ordenavam a mais abjecta e degradante obediência. Com o objectivo de agradá-los, o homem deveria colocar sua face na areia.

Claro que eram parciais para com os povos que os criaram, e sempre demonstraram a sua parcialidade defendendo aqueles povos que roubavam e destruíam os outros, e que estupravam esposas e filhas. Nada deleitava mais esses deuses do que o massacre dos não-crentes. Nada os irritava mais, até hoje, que saber de alguém que negava sua existência.
Poucas nações têm sido tão pobres de ter só um deus. Deuses eram feitos tão facilmente, e a matéria prima custava tão pouco, que geralmente o mercado de deuses estava sempre abarrotado, e os céus fervilhavam com esses fantasmas. Esses deuses não actuavam só nos céus, mas supunha-se também que interferissem nos negócios dos homens. Eles se metiam em todos e em tudo. Trabalhavam em todos os departamentos. Tudo era considerado como estando sob seu controle imediato. Nada era tão pequeno -- nada tão grande; o pouso de um pardal e o movimento dos planetas eram igualmente controlado por esses industriosos e atentos seres. Dos seus tronos celestes eles vinham frequentemente à terra com o propósito de trazer informações ao homem. Tem-se o relato de um que veio no meio de trovões e relâmpagos com o propósito de avisar que não se poderia cozinhar uma criança no leite da sua mãe. Outros deixavam suas casas para informar as mulheres se elas poderiam ou não ter filhos, informar um sacerdote como confeccionar e usar sua batina, e orientar sobre a maneira correcta de limpar os intestinos de um pássaro. Quando as pessoas falhavam em adorar um desses deuses, ou falhavam em alimentar ou vestir seus sacerdotes (o que era praticamente a mesma coisa), ele geralmente os visitava com pestes e fome. Algumas vezes ele permitia que outras nações os levassem à escravidão -- vendessem suas esposas e filhos; mas geralmente ele apreciava mandar sua vingança matando seus primogénitos. Os sacerdotes sempre faziam correctamente a sua obrigação, não só prevendo essas calamidades, mas provando, quando elas aconteceram, elas tinham sido trazidas para o povo porque eles não tinham dado o suficiente ao deus. Esses deuses diferiam como as nações diferiam; as maiores e mais poderosas nações possuíam os maiores e mais poderosos deuses, enquanto as mais fracas, tinham de se contentar com as escórias dos céus. Todos esses deuses prometiam felicidade nesta e em outra vida a seus escravos, e ameaçavam com o castigo eterno todos aqueles que duvidassem da sua existência, ou suspeitassem que outros deuses fossem superiores; mas negar a existência de todos os deuses era, e é, o crime dos crimes. Suje as suas mãos com sangue humano; lance na lama a boa fama dos inocentes; estrangule uma criança sorridente no colo de sua mãe; engane, arruine e despreze a bela garota que o ama e que em você confia, e o seu caso não está perdido; por todos estes e por todos os outros erros, você poderá ser perdoado. Por estes e todos os outros, a corte de justiça estabelecida pelo evangelho, lhe dará um perdão; mas negue a existência desses divinos fantasmas, desses deuses, e a doce e lacrimejante face do perdão se tornará lívida de ódio eterno. Os portões de ouro do céu se fecham, e você, com uma infinita maldição circundando as orelhas, com o fogo da infâmia nas sobrancelhas, começará a sua infinita peregrinação pelos lúgubres caminhos para o inferno -- e a tortura eterna -- um eterno excomungado -- um condenado imortal.
Um desses deuses, e um que exige nosso amor, nossa adoração e admiração, deu ao seu povo escolhido, como guia, as seguintes leis de guerra: "Quando vierdes para uma cidade à noite para lutar contra ela, então proclamais paz nela. E deverá ser que em resposta da paz, e abre-se em vós, então todas as pessoas que moram lá deverão ser vossos tributários, e eles deverão servir-vos. E se não fizerem paz convosco, mas fizerem guerra contra vós, então devereis vencê-los. E quando o Senhor vosso Deus os libertar para as vossas mãos, devereis atingir cada homem com a ponta da vossa espada. Mas as mulheres, crianças, o gado, e tudo o que há na cidade, todo o espólio que sobrar, devereis tomar para vós, e devereis comer o espólio dos vossos inimigos que o vosso Deus deixou para vós. Então devereis ir a toda cidade situada distante de vós, que não forem cidades dessas nações. Mas das cidades desses povos que o Senhor vosso Deus deu como herança, não devereis deixar vivo qualquer ser que respira."
É possível para o homem conceber algo mais perfeitamente infame? Poder-se-á acreditar que esses comandos tenham sido dados por um ser que não seja infinitamente cruel? Lembrem-se que o exército que recebeu estas instruções é o invasor. Paz era oferecida com a condição de que os derrotados se tornassem escravos dos invasores; mas se qualquer um tivesse a coragem de defender os seus lares, lutar pelo amor das suas esposas e filhos, então, a espada não pouparia ninguém -- nem mesmo um inocente e balbuciante bebé. E nós somos chamados para adorar esse Deus; a ajoelharmo-nos e dizer que ele é bom, que é misericordioso, que é justo, que é amor. Somos solicitados a sufocar cada nobre sentimento da alma, e a esmagar sob nossos pés todas as doces caridades do coração. Se nos recusarmos a idiotizarmo-nos -- se nos recusarmos a tornarmo-nos mentirosos -- somos denunciados, odiados, condenados ao ostracismo aqui, e esse mesmo deus nos ameaçará com o tormento eterno, a partir do momento em que a morte permitir que seu cruel bastão atinja as nossas almas indefesas e nuas. Deixem as pessoas odiar -- nós as educaremos, e nós desprezaremos e desafiaremos esse deus. 

(continua)

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

MARIA HELENA


Morreste. Acabaste. Eu sei onde estás. Estás no meu pensamento. Vou, portanto, falar para mim mesmo como se para ti fosse. Sabes que não sou de prolongar tristezas nem de fazer lutos mórbidos e pesados. Este escrito será o meu luto.

Vivemos ambos uma boa infância e juventude. Tu, como mais velha, cedo tentaste exercer um certo mando sobre mim. Cedo também me comecei a libertar dessa supremacia e a tornar-me teu igual. Os nossos dezanove meses de diferença não te davam assim tanta legitimidade. Essas tentativas de libertação causaram algumas divergências entre nós e até umas questiúnculas às vezes resolvidas com umas sapatadas e lá vinha a nossa mãe acabar com os diferendos muitas vezes com as palmadas da ordem. Nada nos machucou. Tudo foi benéfico e a nossa amizade e amor de irmãos consolidou-se. Lembro-me do dia, tinha apenas catorze anos, em que eu sozinho, chamei os bombeiros e te levámos para o hospital por teres partido uma perna ao patinarmos no rinque do Cacém. Eu e os bombeiros, no hospital de S. José, entrámos por ali dentro e fui barrado por um enfermeiro que me mandou sair. Disse-lhe que só saía quando soubesse o que iriam fazer à minha irmã, e só depois de saber que irias ser operada é que me retirei. Já cá fora telefonei para casa e para o emprego do Pai para relatar o sucedido usando os únicos 25 tostões que tinha no bolso. A tua doença começou a mostrar-se a partir desse acidente. Os desequilíbrios e a falta de coordenação motora começaram a tomar lenta e progressivamente conta de ti. A esclerose do nervo óptico também. Felizmente tiveste sempre uma grande força de vida. Os nossos pais tudo fizeram. Os médicos sempre nos disseram não haver cura, mas lá foste vivendo sempre com alegria e força de vontade. Afastámo-nos um pouco com a minha ida para os Pupilos. Apesar dos fins-de-semana passados em casa, já não era mesma coisa. A Escola do Exército, hoje Academia Militar, também nos separou um pouco. A minha ida para Timor piorou a situação e foi durante esse tempo que te casaste. Durou pouco essa união. Quando voltei já estavas separada. Ainda bem. Não tiveste sorte na escolha. Depois o meu casamento também nos afastou, mas a amizade e o nosso amor fraternal continuou. Tiveste sempre o apoio abnegado da nossa Mãe e lembrei-to muitas vezes. Nem sempre lhe correspondias como ela mereceu e acabaste por sentir-lhe a falta após a sua morte. Ficaste só comigo e não te abandonei. Tentei por tudo que conseguisses continuar na vossa casa. Devido aos acidentes que tiveste acabei por optar pela tua ida para o lar onde a Mãe estivera nos seus últimos dias. Aí recebeste as minhas visitas e do teu sobrinho. Sempre que podíamos íamos-te buscar e, auxiliada por nós, conseguias almoçar fora e dar alguns passeios. Depois começou a rápida degradação. Deixaste de poder sair por já não conseguires andar nem ver. Mais tarde tiveste que ficar acamada. Nunca deixaste de me ter ao pé de ti. Nos últimos tempos já nem me vias, ouvias ou falavas. Saía da tua cabeceira completamente desfeito e desmoralizado. Foi muito tempo. Acho que qualquer ser humano não merecia isso. Agora já não sofres e eu também. Mas é sempre um choque. Não escreverei mais para ti mas estarás sempre no meu pensamento, o teu lugar de agora.

sábado, 7 de novembro de 2015

CACÉM


Nas células que agora formam o nosso corpo já não deve haver nenhuma da fundação do mesmo. Sendo assim como é que, recordações de infância ficam gravadas no nosso cérebro?

Nasci na maternidade Alfredo da Costa. Os meus pais moravam no bairro do Arco-do-Cego. Os funcionários da junta do crédito público, seu primeiro emprego, depois passou a contabilista numa empresa, podiam concorrer às casas de renda resolúvel. Eram precisos alguns 30 anos para as casas passarem a ser dos utentes. Parece impossível mas ainda me lembro da rua, tenho vislumbres da casa e tinha apenas 4 anos. Lembro bem de ter apanhado uma barata na rua e levado para mostrar à minha mãe, portanto, já bicharinheiro nessa época. O meu Pai era citadino, oriundo das chamadas “boas” famílias, mas tinha espírito de campesino. Assim que teve possibilidades encontrou uma casa no Cacém com um quintalinho. Conseguiu, não sei como, passar a casa de Lisboa a outro funcionário, recebendo umas massas. Já no Cacém, ainda antes dos cinco anos, passei a viver como um campónio. Os meus companheiros de brincadeiras andavam descalços e pastavam cabras. Cedo aprendi a caçar lagartos, cobras, rãs, pássaros com ratoeiras e fisga, mas daí a andar descalço… sempre tive pés de prima-dona e qualquer grão de areia dava-me cabo da pele. A nossa casa já tinha canalização mas a água ainda não passava por ali. Era preciso acartar água do chafariz central em bilhas de zinco de vinte e cinco litros. Pagávamos a uma vizinha, mulher com força de homem, para fazer esse serviço, mas muitas vezes não chegava e éramos nós a fazer esse transporte. Cedo o meu pai, comigo já a ajudar, construiu uma capoeira para coelhos e galinhas. Um pouco mais tarde também tivemos uma cabra. Naquele tempo já havia muitos caçadores por aquelas bandas. O meu pai comprou uma espingarda calibre 16, a um amigo que deixara de caçar, de dois canos e mocha. Era uma Bayard belga que ainda hoje guardo como recordação. Com sete oito anos já o acompanhava por aquelas serras, armado de cajado, procurando coelhos e andando atrás das perdizes. Teria os meus 10 anos quando pela primeira vez o meu Pai me deixou atirar a um tordo poisado numa oliveira. Aos 14 anos saí de casa de espingarda na mão, com meia dúzia de cartuchos e a uns 500 metros da porta de casa cacei a minha primeira perdiz. Nem sei bem como fiz aquilo, virei a arma para o bando que se levantou e vai disto. Quando a perdiz caiu nem sei o que senti. Foi de tal modo que o “bichinho” se entranhou e nunca mais me largou. Aos 14/15 anos, aos fins-de-semana quando saía do Pilão, acompanhava o meu Pai e os amigos nas caçadas e nas grandes patuscadas que se lhes seguiam, nas tascas dos arredores. Havia uma característica, no lugar da Tala, onde se comia e bebia muito bem. Lembro-me de um dos amigos do meu Pai se meter nos copos e ficar um pouco zonzo. À tarde, na 2ª volta da caça, o nosso amigo desatou a correr e a gritar; “coelho, coelho” e tropeçando num graveto de uma cepa, caiu redondo de borco. Quando corremos a levantá-lo perguntámos: -- Onde está o coelho? – Ao que o nosso amigo responde: -- Em cima da árvore! – Claro que a risada foi geral. Naquele tempo poucos tinham automóvel e os caçadores deslocavam-se de comboio ou camionete. Nessa caçada, o nosso amigo já muito toldado, enjoou e metendo a cabeça fora da janela deitou a “carga” ao mar. Recolhendo-se, gritou para o motorista: “Pare, pare!” O coitado tinha deitado a placa dentária pela janela junto com o vomitado. Vejam agora o que era uma camionete parada e os passageiros todos com uns paus a remexerem o vómito que se espalhara pela estrada à procura dos dentes do nosso amigo. E encontraram-se. Belos tempos. Se fosse agora quem pararia? E quem ajudaria a procurar? Bem ficaria sem dentes. Foi uma juventude plena e cheia de encantos. Os nossos cães perdigueiros viviam no canil mas durante o dia tinham autorização para entrar em casa contra as ordens da minha Mãe que bem refilava para manter a casa limpa. Sempre que chegava, vindo dos Pupilos, a primeira coisa a fazer era soltar os cães e dar uma boa volta com eles. Ao Domingo de manhã, o meu Pai abria-lhes a porta e os bichos saltavam para cima da minha cama acordando-me com saltos e lambidelas na cara. Pobre da minha Mãe que tinha de meter os lençóis para lavar. Viver com cachorros é salutar e eu tive essa sorte. O Cacém de hoje nada tem a ver com o meu Cacém. No sítio onde matava perdizes só há prédios. Os rios estão encarcerados em tubos e a água corre pelos canos, mas o velho chafariz queda-se triste por já não ter serventia. Infelizmente ainda lá tenho a minha única irmã doentíssima e num lar. Desloco-me lá todas as semanas para estar com ela que, praticamente, não dá por mim. Às vezes, no trajecto, tento rever os lugares da minha juventude, mas nada me dizem. Aquele não é o meu Cacém. Onde havia serranias há centros comerciais. O alcatrão e o cimento cobriu os meus locais de brincadeira. O rio onde nadei e pesquei grandes enguias, não existe. Hoje, em Lisboa, onde resido, abro uma gaveta e olho a minha velha fisga que conservo, e regresso à minha juventude quando, com ela, me escondia de árvore em árvore procurando qualquer incauto passaroco que se deixasse aproximar. As recordações de infância quando vivida como a vivi, são indeléveis. Lembro agora que já escrevi sobre isto, mas voltou a recordação.