domingo, 29 de abril de 2012

SONETO DO PEIDO

Já aqui tinha dito que não percebo nada de poesia, mas quando se trata de brincadeira, às vezes, sou capaz de fazer umas “coisas”, muito mazinhas já se vê mas, com métrica incerta, lá vão saindo. E é a propósito de “sair” que resolvi tentar um soneto. Tenho um amigo que com alguma facilidade solta uns “flatos” fazendo até alguma gala nisso. Pedindo desculpa pelo vernáculo, aqui deixo a minha homenagem ao criador daqueles sons bastante odoríferos:


Ouvi um peido! E foi de gente!
Cu relaxado e sem vergonha
 Que se rebela à lei vigente
Cheira a merda e traz peçonha.

Um cu assim tão relaxado
Não tem dono, não tem pudor
É repelente! É malcriado
E nos sufoca com furor.

Um cheiro assim só pode ser
De algo podre e sulfuroso
E conotado com o demónio

Cá por mim, estou mesmo a ver
Que peido assim malcheiroso
Só pode ser do António.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Hoje, 25 de Abril de 2012. Após 38 anos…


Hoje é dia 25 de Abril. Pela minha mente voltam a passar as imagens vividas em Nampula após o conhecimento do que se passara naquela manhã. A corrida aos jornais deixaram em pânico os pobres ardinas que acabavam largando os pacotes cujo conteúdo se espalhava na rua. A ânsia do querer saber levou as pessoas a apanharem os jornais com sofreguidão. Ninguém se aproveitou e todos foram pagar aos rapazes que choravam sentados no muro, pensando que a venda do dia estava perdida. Havia em todos uma sensação de intranquilidade mas ao mesmo tempo de alegria por sentirem que algo ia mudar em Portugal saindo-se daquele marasmo político a que a ditadura nos habituara por imposição. No largo Neutel de Abreu, entre o Quartel-general e a messe militar, só se via gente de rádio ao ouvido tentando perceber não só o que se passara mas o que se seguiria. As esperanças eram muitas, as incógnitas também. O país iria mudar, a guerra acabaria e os homens voltariam às suas terras, casas e família. Os homens tornar-se-iam mais solidários, cultos e civilizados. Os bens seriam melhor distribuídos e a ganância acabaria. Das grandes aquisições teria de se provar a proveniência dos proveitos que lhes deram origem…

… Agora, olho a televisão e vejo lá todos aqueles que tornaram possível que nada daquilo, que pensei naquele dia em Nampula, se concretizasse. Os homens a quem os militares entregaram os destinos da Nação não quiseram ou não foram capazes de transformar o país.
Pergunto porquê e não sou capaz de compreender. Ganância? Apego ao poder? Corrupção? Impreparação? Liberdade a mais? Para mim a liberdade nunca é demais, o que é demais é termos a nossa à custa da liberdade dos outros.
Esqueceu-se o ensino e aprendizagem política. Deixou-se que os instintos primários, de indivíduos recalcados por 50 anos de bota no pescoço, viessem ao de cima e virassem as consciências adormecidas e castradas, para consciências ávidas de poder e de ter. O melhor que se construiu neste país foi o Serviço Nacional de Saúde, agora até esse nos está a ser tirado.
O que se seguirá? Para onde caminhamos? Onde estará a solução? Que futuro?
O meu 25 de Abril foi defraudado.

sábado, 21 de abril de 2012

MEUS NATAIS…MINHAS FADAS…

Escrito após um 25 de Dezembro


Hoje o Menino Jesus já não vai descer pela minha chaminé. Desceu todos os anos e agora…
Parece que afinal já não é ele que traz os nossos brinquedos. Tantos anos a trazê-los e de repente passam o assunto para os nossos pais. Assim, sem mais nem menos. Sem nos perguntarem qual a nossa opinião, sem quererem saber qual a nossa preferência. O Natal perdeu a graça. O meu Pai nem cabe na chaminé…
Continuo a ir à chaminé na manhã do dia 25, os brinquedos estão lá na mesma, mas já não consigo visualizar aquele menino risonho de cabelo encaracolado e de camisa de dormir, a colocar os brinquedos no sapatinho com aquelas pequeninas mãozinhas.
Foi o meu Pai e Mãe que lá os puseram. Parece-me impossível. Por que me disseram uma coisa e agora me dizem outra?
No ano seguinte já não colocámos sapatos na chaminé. Para quê? Jesus já lá não vai!?
Transformaram aquele menino no ridículo velho de barbas a quem chamam Pai Natal. Bah! Não tem mesmo graça nenhuma.
….
Hoje penso que não se devem enganar as crianças. A realidade mostrada de repente faz doer. Não sei se dói por nos sabermos enganados se por perdermos o encantamento. A história do Natal é uma bonita e romântica história. Mesmo sem estarmos a pensar na divindade de Jesus, a história continua a ser bonita para os cérebros infantis.
Uma família pobre que, por não encontrar, habitação, acaba por ter de permanecer num estábulo onde uma mãe linda tem um menino mais lindo ainda, que todos vão visitar e adorar.
A seguir estragam tudo com aquela maldade do rei Herodes a mandar matar trezentos recém nascidos, só porque lhe foram dizer que tinha nascido o futuro rei dos judeus. Não se faz! Nem quem devia ter nas mãos os destinos dos povos o deveria ter permitido. Para salvar um matam-se trezentos, crueldade!
Mais tarde ainda, muita coisa se me interroga e me deixa confuso. Quem contou a história do nascimento de Jesus? Terá sido ele próprio? Hum…normalmente não nos recordamos do nosso nascimento. Terão sido os pais? Também não me parece, não é natural contar-se a toda a gente como nasceram os nossos filhos, além disso, pode contar-se a meia dúzia de pessoas, mas essas não vão recontar isso a toda a gente. Esses episódios esquecem-se e perdem significado. Por outro lado poderia ainda haver o perigo de alguém relacionar os factos e lembrar-se da morte dos recém nascidos…
A história também não o registou. Aliás, a história só regista nascimentos importantes, como os reais. O registo civil também não existiu. Afinal quem contou?
Segundo os evangelhos, escritos dezenas de anos depois e segundo o recontar de vários indivíduos, a infância de Jesus foi uma infância normal sem episódios significativos, parece apenas que aos quinze anos foi até ao templo falar com os sacerdotes e encantou todos com o seu saber e discernimento. Depois, só aos trinta anos começou a pregar.
Só nessa idade Jesus começa a ter alguma importância para meia dúzia de seguidores no início, e depois para uns trinta ou quarenta que ouviriam as suas prédicas. Quem nessa época terá mostrado interesse pelo seu nascimento? Como o relacionaram com o nascimento num estábulo em Belém, anunciado por uma estrela gigantesca? Um judeu, pobre, quase andrajoso, filho de um carpinteiro, que sabia dizer umas coisas e falava por parábolas, não deveria suscitar grandes anseios no saber-se de como nascera. Parece-me também que, à época, aquele povo seria muito pouco esclarecido e, com aquelas falas, muito poucos o entenderiam. Começo a pensar que esse Jesus não é o meu Menino Jesus que me punha os brinquedos no sapatinho…
Ainda muito mais tarde, curioso da história das religiões, venho a verificar que todas elas se baseiam em mitos e muitas, quase todas, se repetem nos seus princípios. Aí, deixei de acreditar em fadas…mas, recordo ainda o encantamento daquelas manhãs de 25 de Dezembro em que corria para a cozinha e, antes de ver os brinquedos, espreitava a chaminé para ver se o menino estaria ainda por lá ou já se evolara nos céus.
Estupidamente, levado pela família, deixei que fizessem o mesmo ao meu filho. Hoje ele aponta-me o erro, pois como eu também teve o traumatismo da realidade.
Podemos contar aos nossos filhos histórias de fadas, sem lhes fazermos crer que elas existem. As histórias resultam na mesma e não lhes causamos traumas pelos enganos. Parece-me pois que só a verdade é correcta deixando o resto ao imaginário de cada um.
Os Natais transformaram-se numa linda festa de família cada vez menos religiosa e muito mais mercantilista. Reúnem-se todos, come-se, bebe-se, trocam-se prendas à meia-noite sem se esperar pelo Menino Jesus pois o tal velho ridículo já deixou os presentes dentro de meias penduradas numa árvore artificial.
Após isso acaba tudo. Uns contentes pelas prendas recebidas outros desiludidos porque esperavam diferente ou melhor, regressam a suas casas e até para o ano. O Pai Natal voltará.
O meu Menino Jesus já não volta…

sexta-feira, 20 de abril de 2012

ABRIL

O militar sabia que algo ia mudar. Afinal andavam em reuniões e a assinar documentos arriscando a cabeça e a carreira para quê? Ali em África, militares cansados e desiludidos já não esperavam nada de bom. Os rapazes queriam voltar para casa enquanto estavam vivos. A sua terra não era aquela e aquela guerra nada lhes dizia. Os militares de carreira tentavam aguentar a rapaziada levantando-lhes o moral, mas eles próprios estavam descrentes. Há 15 anos que lutavam e a política não ajudava. Aquela guerra não se poderia ganhar só pela força das armas e as comissões sucediam-se. Alguns já iam com quatro. Quantas mais seriam necessárias? De Lisboa chegavam indicações de que algo se passava. Mas Março trouxe algo de frustrante. Camaradas tinham tentado um golpe e falharam. Porquê? O que correra mal? E agora? Ali e àquela distância o que se poderia fazer por eles? Mas esperaram. Sabiam que havia camaradas que não ficariam eternamente em espera.
A meio de uma manhã de Abril o militar recebeu um telefonema:
− Foi hoje.
A corrida aos jornais foi louca. A alegria também. Agora sim, as coisas iam mudar, o nosso País vai passar a ser a sério. Vamos ter educação. Vamos ter paz. Vamos ter dignidade. Vamos ter compreensão, enfim, vamos ter o que até aqui nos foi sonegado.
Tudo começou a correr pelo melhor; A guerra acabou, o povo voltou para casa, a liberdade instalou-se, os militares deram o mote para a instalação da democracia, mas…
… os portugueses estiveram tempo demasiado sob uma ditadura, não tinham qualquer preparação política para viverem em liberdade, os exageros começaram, a ganância tomou conta de todos e as asneiras sucederam-se. Os próprios militares dividiram-se e várias teorias surgiram. Em África sucedeu o mesmo e 15 anos de guerra deixaram demasiadas feridas. O povo africano, também impreparado, quis livrar-se do jugo colonial e provocaram o êxodo, mas tinham direito à liberdade e já nada era possível fazer em contrário.
No “puto”, os militares conseguiram acabar com a desunião entre si e, como não eram políticos, resolveram entregar o poder e fizeram-no.
Há 38 anos que os partidos políticos nos governam. Será que governaram? Então porque não melhorou a educação? Porque melhorou a saúde e está a piorar agora? Governou-se mal e tomaram-se as piores decisões. Quiseram viver à grande e endividaram o País esquecendo-se de criar bases sócio económicas para aguentar as crises que sempre aparecem. Agora a crise tomou conta de nós. Estamos piores do que estávamos.
Mas o pior de tudo é que se criou uma classe de energúmenos que, servindo-se do poder, obtiveram por corrupção, um nível de vida tal, que não largam nem por nada e, democraticamente vão fazendo leis que lhes permitem continuar agarrados a esse poder que nem lapas, e sentados à mesa do orçamento. As perdas que o País sofreu com isso, teriam dado para que agora, mesmo em crise, não fossem necessárias medidas tão drásticas como as que nos estão a sujeitar. Mas ninguém é punido. Ninguém tem culpas. O povo que pague a crise. O que nos resta? Quanto tempo aguentaremos? Que tristeza…

quinta-feira, 19 de abril de 2012

FEIJOADA

Hoje não escrevi nada, mas para não deixar o blogue em branco, vou aqui colocar um “poema” se àquilo se pode chamar isso.
Nunca tive grande jeito para a versalhada, mas na minha Associativa de caça, o Presidente é um advogado meu amigo que fez anos e resolveu levar para o almoço uma bruta feijoada confeccionada pela sua cara-metade, também minha amiga.

A feijoada foi um êxito e os companheiros gritaram:
Esta feijoada merece um poema.
E lá fui para casa tentar. Como não percebo nada daquilo, inspirei-me no “Luisinho Vaz”, que sabia destas coisas. E saiu isto:

A feijoada da Rosa

A Rosa, certamente uma das que ficou
no regaço de Isabel, talvez esquecida,
para o seu amado o petisco preparou,
com o gosto de apresentar boa comida,
aos amigos que com ele compartilham
de Santo Humberto a ancestral arte
mas que o bom almoço não dispensam
deglutir, seja aqui ou noutra parte,
que bebendo e comendo dizem no final:
– Que encanto! Que tremenda feijoada divinal!

Cesse tudo o que a antiga musa canta
sobre os grandes bacanais de Baco
porque o conteúdo do tacho encanta
e, não se trata apenas só de um “taco”.
E todos na hora dos parabéns dar,
ao simpático presidente aniversariante,
todos lhe apontam o dever de recordar
que a atitude mais bela e elegante
é à sua boa esposa transmitir o encanto
de quem, do almoço, tinha gostado tanto.

E agora, os puristas da verdadeira poesia, não me dêem na cabeça porque a métrica deve estar errada. Mas, foi o melhor que se arranjou…

quarta-feira, 18 de abril de 2012

DANÇA EM SÃO SALVADOR

As noites eram difíceis em São Salvador do Congo. O 1º Sargento recitava poemas do seu particular “amigo” Luís Vaz, como se referia normalmente a Camões. Os dois furriéis ouviam-no em silêncio. Um era bailarino no grupo Verde Gaio. O rapaz era demasiado sensível. Usava o retrato da sua namorada, também bailarina, na carteira e chorava cada vez que o olhava. O capitão, de olhos semicerrados, já com as pálpebras pesadas devido aos “whiskys” que bebera, pensava na família mas escutava com prazer o seu Primeiro. Ir para a cama já “pesado” era uma forma de chamar rapidamente o sono, caso contrário, levar-se-ia demasiado tempo até que as imagens daquela guerra, que ninguém queria, se dissipassem das consciências. Naquela noite, bem amena e quente, não apetecia deitar. O capitão falou para o seu furriel:
− Olha lá! Tu, que és bailarino, nunca dançaste para nós. Vais fazê-lo hoje. Vamos até lá fora. Está toda a malta a dormir. Só nós vamos assistir.
− Meu Capitão. Não me obrigue a uma coisa dessas, nem sequer temos música.
− Estás enganado. Temos aí o gira-discos, pomo-lo baixinho aqui na mesa, abrimos a porta e tu danças lá fora.
O rapaz ia dizendo que não e o capitão não insistiu, mas sempre foi pondo o Lago dos Cisnes a tocar. Os discos tinham sido lá deixados por um furriel anterior, que era cantor no coro do São Carlos. O capitão pensava que deveria ser o único comandante com dois artistas como subordinados.
Saíram todos e o 1º sargento continuou a declamar como se sozinho estivesse. A melodia excepcional de Tchaicovsky, apesar de quase em surdina, enchia o ambiente. O furriel, calado, ouvia a música deslocando-se quase como se dançando estivesse. A pouco e pouco foi entrando em crescendo e a dança evoluiu até aparecer em esplendor total. Todos se encostaram à parede do barracão JC e em silêncio, até o nosso 1º abandonou o seu “amigo” Luís Vaz”, apreciaram aquela manifestação de arte que ansiosamente o rapaz manifestava como se o seu corpo se transportasse, para um palco do seu Portugal.
A música parou e o nosso furriel, após um último rodopio, caiu de joelhos e inclinou a cabeça para a frente, cobrindo a cara com as mãos. O capitão levantou-o e abraçou-o agradecendo. O rapaz chorava.
− Meu Capitão. Que vergonha. Eu não queria.
− Deixa lá. Foi belo. As tuas botas de lona até pareciam sapatilhas. Dançaste bem. Estamos todos comovidos. Vamos dormir. Amanhã já nem te lembras.
Mas não dormiram logo. O moço, talvez dos rodopios e da bebida, vomitou as tripas e tiveram que o assistir.
O capitão, já no seu quarto, não conseguiu dormir e foi escrever à mulher. Cinco aerogramas, devidamente numerados, tentaram descrever todos os sentimentos que o assaltaram naquela noite.
Em Luanda, a sua mulher chorava, com o filho ao colo, lendo os aerogramas, que chegaram como sempre, totalmente baralhados, mas ler o 3 antes do 1 ou o 4 depois do 5, não importava. A mensagem estava lá. A porcaria da guerra também…

terça-feira, 17 de abril de 2012

TEMBO

Afinal ainda há alguma "matéria" para postar. 

 

(Um dos capítulos do meu livro "Caçador Branco")

 

O pequeno Tembo encolhia-se a um canto da grande cubata. Os olhos já se tinham habituado à penumbra existente na área. Quase não podia estender as pernas e já estava a senti-las dormentes. O espaço estava quase todo ocupado pelos outros homens que com ele foram ali metidos à força sob a ameaça do chicote do grande árabe que os surpreendera na lavra não tendo tempo para esboçar qualquer gesto de defesa ou fuga. Com três homens armados de metralhadoras, dominaram-nos obrigando-os a deitarem-se na terra de cara para baixo quase sufocando. Separaram-nos das mulheres e a partir daí não mais vira a sua mãe. Tembo deixava correr as lágrimas e não conseguia conter os soluços. Aqui e ali ouviam-se alguns gemidos dos homens ainda doridos das pancadas que lhes aplicaram. Em Tembo não tinham batido. O grande árabe de botas pretas sobrepostas nas calças vermelhas e largas subidas na cintura, de tronco nu e chicote na mão, assemelhava-se ao diabo que a mãe lhe descrevera. Como o Demo, também ele tinha barbicha e devia esconder os cornos por debaixo do turbante branco enrolado na cabeça. Tinha-o olhado nos olhos e enfrentara-o. A mãe dissera-lhe que se fosse bom menino nunca deveria temer o Diabo. Agora que ele aparecera não o temera. O certo é que aquele monstro de olhos pequenos e demasiado pretos, dera uma grande tapa no homem que o prendia e magoava com enormes safanões. A partir daí fora o único a quem não ataram as mãos, mas a sua liberdade era fictícia, nem por um momento lhe tiraram os olhos de cima.
Ali sentado naquele canto, no chão de terra, cansado dos muitos quilómetros que andara pelo mato, chorava em silêncio pensando quando voltaria a ver a sua mãe. Onde a teriam metido? Será que estava viva? Tremia só de pensar o que lhe poderiam ter feito. Tembo era já um homenzinho e sabia muito bem para que os homens querem as mulheres, então uma jovem e bonita como a sua mãe ainda era. Não conseguia deixar de chorar. De repente Tembo reprimiu o choro, ouvira vozes exteriores, em tom baixo, como se duas pessoas conversassem. Foi-se esgueirando por entre os corpos até se postar junto à parede donde lhe parecia que as vozes provinham. O árabe e um dos homens falavam baixo mas dava para perceber. Com um sotaque estrangeiro, o demónio dizia para o outro que logo de manhã continuariam a marcha até ao local onde entregariam a mercadoria. Claro que Tembo sabia muito bem a que mercadoria se referiam. Iam vendê-los a alguém que esperaria no tal local. Pela descrição Tembo reconheceu o sítio de que falavam. Ele e o pai, quando caçavam, deslocavam-se por vezes muitos quilómetros durante vários dias e conhecia perfeitamente a clareira que ouvira o homem descrever. Começou a pensar rapidamente. Tinha de fugir antes de lá chegarem. Só em liberdade poderia ser útil e procurar a mãe. Voltaria à sanzala, falaria com o Chefe e o pai, e de certeza alguém os auxiliaria a encontrar os cativos.
Não podia deixar chegar o amanhecer. Em marcha seria muito difícil enganar os meliantes. Ainda tinha tempo. Teria de fugir esta noite. Esgueirou-se de novo para a parede contrária daquela onde os homens falavam. Procurou com as mãos um espaço entre os paus de palmeira que formavam as paredes. Com as mãos e os dentes começou a arrancar as folhas secas ferindo-se nos gumes cortantes das mesmas, mas não parava. Um dos homens acordou e começou a ajudá-lo. Uma hora depois já tinham conseguido um buraco suficiente para Tembo meter a cabeça e espreitar. Do lado de fora não estava ninguém. Certamente a sentinela daria a volta de vez enquando, teria de ter cuidado quando saísse. Apesar da noite escura Tembo vislumbrou vegetação suficientemente perto para se poder esconder logo que se libertasse. Levaram outra hora a alargar o buraco até lhe caberem os ombros. Tembo meteu a cabeça e começou a esgueirar-se para o exterior, o homem que o ajudara teria de ficar ou alargar mais o buraco, mas Tembo não esperaria. Assim que se apanhasse fora teria de correr como o vento. Quanto maior distância pusesse entre eles e os sequestradores mais hipóteses teria de levar a fuga a bom termo. Fez sinal ao companheiro que o ajudava para o informar que iria sair. Disse-lhe que não esperaria por ele e se também conseguisse fugir que rumasse à sanzala pois seria para lá que se dirigiria.
Esgueirou-se pela abertura com alguma dificuldade, os paus arranhavam-lhe o corpo mas não sentia, a ânsia de liberdade era mais forte. Assim que se libertou totalmente, ficou um pouco parado junto à parede escutando. Como nada ouviu, levantou-se e correu para os arbustos perto e parou. Aparentemente ninguém dera pela fuga. Levantou-se e começou a correr na direcção de casa, um rapaz do mato, como ele, orienta-se como os bichos.
Corria como se o diabo o perseguisse, e até podia ser verdade. A respiração foi-se tornando cada vez mais ofegante, mas Tembo estava habituado a correr atrás das cabras e os seus pés descalços e calejados, mal tocavam o solo da floresta húmida. Ao fim de um par de horas a correr e a andar, parou para descansar. Subiu a uma árvore e procurou com o olhar, por entre a bruma matinal, se vislumbrava ou ouvia algo que lhe desse a segurança de ninguém o perseguir.
Deixou-se estar lá em cima uns bons minutos, os olhos fechavam-se mas Tembo sabia que não podia dormir. Lembrou-se que deveria estar perto do local onde o pai tinha quebrado uma lança ao tentar segurá-la depois de ter atingido um gulungo e o animal ao contorcer-se a partira. Lembrava-se de o pai a ter deixado lá. Tinha de a encontrar. Iria levar um bom par de dias até casa e precisava de comer.
Quando chegou perto do local onde a lança se partira, começou a ter dúvidas, no mato às vezes tudo parece igual outras vezes diferente. Tinha de se recordar exactamente. Fechou os olhos procurando rever tudo o que se passara naquela manhã. A corrida que deram atrás do golungo, a volta que deu correndo para dirigir o bicho na direcção do pai, o lançamento certeiro do dardo sobre o pequeno antílope e depois o pai a tentar segurar a lança enquanto o bicho se contorcia. Como, depois da lança se partir, o pai com um golpe certeiro da catana curta, que sempre trazia à cintura, liquidou o animal. Como se riram no fim antes de trincharem a bicheza e levarem a carne para casa em sacos a tiracolo.
Abriu os olhos, olhando em volta pressentiu que estava perto. Fez dois círculos alargando cada um deles. Ao fim da segunda volta reconheceu imediatamente o local. Andou uns metros até encontrar os vestígios do capim pisado, a lança estava um pouco mais à frente. Tembo perdeu umas boas duas horas a reconstruir a lança. Com a ponta metálica da mesma, que afiou numa pedra, descascou e alisou um ramo transformando-o num pau de lança. Fez um entalhe no improvisado cabo e prendeu a ponta com uma liana que entrelaçou. Tembo já tinha construído muitas lanças mas na sanzala tinha outras ferramentas que não ali. Depois do trabalho apressou-se a encontrar uma boa árvore para dormir a fim de se defender dos predadores. Poderia era ser surpreendido por alguma onça e a pensar nisso colocou a lança perto e ao alcance mão.
Acordou já se notava o romper do dia. Desceu da árvore e pôs-se a caminho. Tinha caminhado umas horas quando chegou à orla da mata de arbustos baixos. À sua frente estava uma planície de capim curto onde pastavam alguns nunces e pequenas gazelas. Tembo avistou uma gazela das mais novas que estava mais perto da orla de mato. Penetrou na vegetação e lentamente foi-se aproximando do local onde a pequena gazela pastava. Arrastou-se durante alguns metros, com a lança numa das mãos, até avistar o bicho. Quando já se encontrava a boa distância levantou-se e correu em direcção da sua presa que apanhada desprevenida, levou algum tempo a mover-se. Quando o fez, foi atravessada pela lança de Tembo que tinha feito um arremesso perfeito. Abriu o animal com a própria lança. Não tinha tempo nem era seguro fazer fogo. Cortou os lombos e comeu um bom bocado de carne crua. Espremeu o fígado para a boca engolindo bastante sangue vivo. Fez um saco com folhas largas e com uns juncos uma alça para o transportar a tiracolo, metendo-lhe uns bons pedaços de carne para o resto da viagem. Chegou à sanzala na tarde do dia seguinte. Cansado, sujo, com a camisa e os calções de zuarte esfarrapados, aproximou-se da grande cabana do Chefe. Junto dela encontravam-se dois carros com alguns homens por perto. Receoso deu a volta e espreitou pela abertura que servia de janela. O Chefe falava, com ar amistoso com dois homens sentados à mesa. Tembo reconheceu o seu amigo caçador branco. Cheio de alegria e lágrimas nos olhos correu para a porta e entrou.
...

Tempo para um curto intervalo

Quando me propus escrever num blogue, não sabia que em tão pouco tempo ia lá meter tanta coisa. Parece que exagerei e tenho até dúvidas que os leitores tenham tido paciência para ler tudo. Claro que entre o que já publiquei no Boletim da Associação dos Pupilos do Exército, o que escrevi nuns livrecos a que me dediquei e o que aqui postei, já pouco resta e terei que encontrar temas inéditos. Mas a veia nem sempre aparece e estou numa fase pouco produtiva, talvez demasiado preocupado com as medidas restritivas a que este (des)governo me tem obrigado. Vou, portanto, fazer um intervalo até que algo me venha à cabeça. Vamos ver...

segunda-feira, 16 de abril de 2012

MULHERES E LAGARTOS

(Excerto do livro “O Lagarto”)

Porque será que as mulheres não gostam de lagartos? Segundo os miúdos contavam parece que elas tinham medo que eles lhes subissem pelas pernas acima. Dizia-se lá na terra que isso poderia acontecer quando andavam menstruadas. Pobres bichinhos. Como poderia um bicho tão bonito ter atracção por semelhante coisa? Não deveria ser lá muito agradável. Por outro lado, não constava que gostassem de sangue. Apenas comiam insectos, larvas e outros lagartitos mais pequenos. Agora sangue? Bah! Não acreditava naquilo. Só se fosse para entocarem, Ah! Ah! Ah! Além disso eles tanto fugiam das mulheres como dos homens. Mas havia muita história sobre os pobres e pequenos “sáurios”. Dizia-se até que eram amigos dos homens e os salvavam das cobras, que batiam com as caudas para os acordarem quando as serpentes se aproximavam. O puto era incrédulo acerca de tais coisas. Coitados dos bichos queriam era viver e passar despercebidos.
Mas era giro levar as miúdas a passear, saber onde estavam os lagartos e ao passar dizer, olha ali aquele bicho tão giro em cima das pedras. Havia gritaria e fugidela apressada. Parecia que viam o demo.
O Rapaz, com o lagarto no quintal, muito susto pregou às suas companheiras e amigas.
Quando só, olhava o bicho no seu quase sempre imóvel repouso admirando-lhe os desenhos em azul sobre o verde acinzentado da pele. Ainda há quem diga que azul e verde é escarro em parede. Ali, parecia ouro sobre azul.
Por baixo do sítio do muro onde morava o lagarto, ficava o canteiro das alfaces, que ele e o Pai tinham plantado. Desde que o lagarto lá habitava, a Mãe nunca mais lá foi apanhar nenhuma, tal o medo que o bichano lhe infundia.
A Mãe nunca referia lagarto, dizia sempre sardão. Era como os designavam na ilha das Berlengas onde em tempos tinham ido passar férias e pescar mais um casal de amigos. Naquela ilha os lagartos eram muitos e nada medrosos, corriam atrás das pessoas bufando com as bocas muito abertas. Para quem já tinha medo de bichos, está-se a ver.
Sardão ou lagarto, aquele tinha dono e ai de quem lhe fizesse mal.
As férias estavam a terminar e o puto já estava desgostoso de deixar o bicho. E se o levasse para o Pilão? Não, os outros acabavam por descobri-lo e matá-lo. Ali ficaria muito mais sossegado. Adeus bichano, viria vê-lo aos fins-de-semana.

domingo, 15 de abril de 2012

O GATO


 (Conto inserido num livro autobiográfico chamado “O Lagarto”)

Havia um homem que tinha um gato do qual gostava muito. Mas o homem vivia com um grande desgosto. Queria e desejava que o seu gato fosse cão. Dos cães conhecia ele as histórias. Dedicação extrema ao seu dono, davam a vida para salvação daqueles de quem gostavam, aprendiam a ser polícias, procuravam droga, serviam militarmente, enfim, coisas que os gatos não faziam. O seu gato era pachola, passava os dias refastelado, comia, dormia, fazia rom-rom e dava cabeçadas nas suas pernas mas, não tinha aquele espírito de sacrifício que os cães demonstravam nas situações difíceis. Nunca se falara de qualquer gato que salvasse alguém de morrer afogado, ou que numa avalancha descobrisse alguém soterrado.
O seu gato era o seu amor e não queria separar-se dele. Mas queria que ele fosse cão. Então resolveu começar por o ensinar a ladrar.
Passou horas frente ao bicho... hão! hão! hão! “Então gato de caca ladras ou não? Continuas estúpido, estás cada vez mais gato e menos cão. Assim não me serves para nada, faz lá um esforço senão vou pôr-te no Jaleco e trago de lá um rafeiro que tenha atitudes caninas inteligentes e não passe a vida a olhar para mim e a usufruir do que te dou”. O gato olhava o seu dono com um ar de quem não está a perceber nada da história. Então este cretino põe-se a olhar para mim e ainda por cima arma-se em cão ladrando que nem um parvo. E não é nada convincente. Se o tipo fosse cão eu já tinha cavado daqui, nunca se sabe porque é que aqueles estúpidos andam sempre a correr atrás dos gatos. Correm que nem possessos mas quando os gatos se voltam para trás, travam às quatro patas e retrocedem com o rabo entre as pernas. Pobres bichos, passam a vida a lamber as mãos aos donos e a levar porrada por tudo e nada, muitas das vezes por não terem conseguido perceber aquilo que os donos queriam que fizessem. Porque não se deixam estar pura e simplesmente esperando que lhes dêem comida fazendo apenas o que lhes der na real gana? Limitem-se a fazer companhia que é o que os gatos fazem e, se não lhe derem o necessário, procura-se novo dono. Ele bem via os cães dos amigos. Vai buscar, procura, deita, senta, quieto aí. Gaita!!! Aquilo era escravatura pura, e o pior é que aqueles bichos ainda ficavam todos contentes abanando o rabo de satisfação sem ganharem nada com isso. Ainda se lhes dessem um carapau...
O Homem andava triste, o raio do gato estava cada vez mais gato e menos cão. Era estúpido como um gato. Então ele não via que devia ser cão? Só não o trocava porque gostava muito dele.
Um dia o gato, já farto daquelas cenas, resolveu mudar de personalidade. Passaria a ser o que o dono quisesse. Faria tudo como deve ser. Se melhor o pensou melhor o fez. Passou a fazer béu-béu, mal já se vê, mas sempre dava um jeito. Corria atrás dos outros gatos ladrando, lambia as mãos do dono, com aquela língua arranhadiça, mas paciência, abanava o rabo e levava-lhe os chinelos para ele puxar. Saíam os dois com uma trela de estica-encolhe e até aprendeu a levantar a patita quando mijava. Os amigos do dono diziam; – Que gato patusco que tens.
O tipo afinava retorquindo; – Isto não é um gato é um cão!
O pobre gato passou a ter do dono muito mais consideração, mas, andava triste e um pouco deprimido.
 – Que estupidez, fazer de cão quando se é gato, mas o meu dono gosta e anda satisfeitíssimo, não posso deixá-lo mal.
Passaram-se tempos e o gato cada vez mais triste e deprimido. Começou a emagrecer, a comida nem lhe sabia bem, o raio do dono só lhe trazia uns ossos enormes, via-se aflito para arrancar alguma carne e até já tinha partido um dente.
O Homem, que até ali não percebera o porquê da tristeza do seu “cão”, começou a ficar preocupado. Quando o bicho já estava mal de todo, correu com ele até ao veterinário. O médico não sabia o que dizer, aquele animal estava doente e ele não conseguia o diagnóstico. Recomendou vitaminas e pouco mais...
Quando as coisas pioraram, o nosso homem arrepelava-se e pedia desculpa ao bichano, que tinha muita pena, que não esperara aquela reacção, que até se convencera que ele próprio gostaria de ser cão, que fizera tudo porque gostava tanto dele que não seria capaz de compartilhar a sua amizade com um cão verdadeiro. Pois... chorar não dava saúde ao seu companheiro, agora não valia a pena chorar sobre o leite derramado.
Dizia mal da vida. Porque é que egoisticamente tinha tentado despersonalizar o bicho e fazer dele aquilo que ele nunca seria capaz de ser.
Gostaria de voltar a ter o seu gato pachorrento, molengão, arisco, altivo mas, ao mesmo tempo companheiro e, cheio de saúde.
É sempre assim. Quando tentamos fazer dos outros aquilo que queremos que eles sejam sem sequer verificarmos que cada um tem a sua personalidade , os seus sentimentos, o seu intelecto, os seus desejos, enfim, querer decidir dos seus próprios destinos, acabamos por criar seres abjectos ou por fazer definhar físicos e consciências. Muitas vezes, quando nos apercebemos, já é tarde e não é possível voltar atrás...
Felizmente o nosso gato era mais forte do que ele próprio imaginava. Pensou e resolveu mandar o dono às couves. Comeu, engordou, melhorou o físico e a mente e, quando se apanhou recuperado, saiu porta fora e foi à procura de novo dono, e o antigo... que arranjasse um cão e fosse para o raio que o parta.

sábado, 14 de abril de 2012

O SEM-ABRIGO

Resolveu mudar de local onde dormia. Tentaria encontrar um sítio abrigado onde estivesse só. Tinha permanecido três semanas no mesmo sítio mas as companhias não lhe agradaram. Na rua encontra-se de tudo, desde tipos com problemas psíquicos a calaceiros e bandidos de toda a espécie. Ele só queria estar sossegado consigo próprio. Encontrou um viaduto com uns pilares em ângulo que permitiam um bom abrigo. Junto a uns caixotes do lixo escolheu alguns cartões limpos e secos e colocou-os no chão pondo-lhes por cima uma manta que tirou do saco de lona. Ainda bem que, em tempos, comprara aquele saco na feira da ladra. Era um saco militar que levava montes de coisas. Trouxera de casa o essencial para poder viver na rua. Duas mudas de roupa davam-lhe para usar e lavar. Tomava banho nos balneários públicos o que permitia não ter muito mau aspecto. O pior era a barba e o cabelo, estavam a crescer e, os aparanços, que fazia, apenas com uma tesoura, não lhe davam lá grande aparência. Mas também que lhe importava isso, tinha decidido sair de casa e viver na rua era a solução. Trouxera alguns livros que ia lendo enquanto tinha luz. Ler é uma forma de nos abstrairmos da nossa vida e vivermos a das personagens e autores. Nos intervalos cogitava no que tinha sido a sua existência. A vontade de ganhar dinheiro sem ter que aturar patrões ou chefes levara-o a deixar a função pública e tentar a sorte estabelecendo uma firma de informática. As coisas começaram a correr bem e rapidamente teve de contratar pessoal e aumentar o espaço. Alugou um escritório numa garagem adaptada para o efeito e, felizmente, bem perto de casa. Os clientes foram aparecendo e os proveitos aumentando. A melhoria de vida foi notória. A mulher e os filhos exultaram por poderem ter o que até ali lhes tinha sido proibido. Foram anos felizes aqueles, só que não conseguira amealhar o suficiente e a crise apareceu entretanto. A concorrência das grandes firmas obrigara-o a baixar preços e a ter que dispensar pessoal. Trabalhou que nem um cão elaborando sozinho programação e “sites”. O material estava a degradar-se e desactualizar-se. Foi preciso utilizar as reservas e constituir dívidas para a renovação. Os clientes começaram a diminuir, uns por falência, outros por não poderem pagar e outros ainda por terem encontrado mais barato. Daí à falência foi um passo. A “crise” devorava tudo e todos. A vida em casa degradou-se. A mulher, que ele adorava, acusou-o de mau gestor e de demasiada ousadia em ter deixado um emprego de estado para se aventurar na constituição da firma. Os filhos nada diziam e sofriam com as constantes discussões entre os pais. Começaram os constrangimentos devido às zangas constantes. Esqueceram-se todos da felicidade conseguida quando a firma lhes dava o que nunca tinham tido. Agora a culpa era dele. A sua mulher conseguiu um emprego numa loja de um centro comercial que pertencia a uma amiga. A reforma que tinha do estado, muito prejudicada pela antecipação, não chegava para as despesas da casa. Não aguentou a pressão nem a falta de compreensão da sua companheira. Resolveu deixar a casa. Sem ele talvez o dinheiro chegasse. A sua pensão cairia todos os meses na conta comum e podia ser utilizada. Se as coisas não mudassem, viveria só, até encontrar coragem para se passar. Só que, se morresse, os seus ainda ficariam com menos. Com o cabelo comprido e de barba grande, ninguém o reconheceria e também não o dariam como morto pois tinha tido o cuidado de deixar escrito em casa que não o procurassem pois ia deixar o país em busca de melhor solução. Assim evitaria idas à polícia para participarem o desaparecimento.
Começava a habituar-se ao frio. As camisolas de lã que trouxera, as luvas e as mantas eram suficientes. A luz do candeeiro da frente dava-lhe para poder ler até tarde e, para dormir tapava a cabeça com a manta. Uma refeição por dia, nos refeitórios públicos e uma bucha à noite, supriam as suas necessidades básicas e, não fora a saudade da mulher e filhos, começava a pensar que afinal a vida de vagabundo não era assim tão má.
Durante o dia, os passantes olhavam curiosos para aquele sem abrigo que passava a vida a ler. Alguns até se aproximavam para lerem os títulos. Um ou outro chegava mesmo à fala com ele para tentarem saber quem era e porque optara por aquela vida. A todos respondia educadamente dizendo que fora uma opção por motivos demasiado profundos para serem discutidos com estranhos. Mas se alguns eram movidos apenas pela curiosidade, outros entravam em discussão dos temas literários. Aí ele pegava na conversa e prolongava as discussões. Assim o tempo passava sem que entrasse em depressão nem em conjecturas negativas. Começou a ser conhecido pelo sem-abrigo intelectual e alguns dos passantes começaram a trazer-lhe livros. Qualquer dia tinha de começar a distribuí-los pois já não tinha espaço para mais. Quando o tempo estava bom, deixava o seu canto e dava alguns passeios principalmente pelos jardins da cidade. Muitas vezes deu com ele a caminhar até à escola dos filhos e deixava-se estar, meio escondido, até os ver chegar. Já tinham idade suficiente para se deslocarem nos transportes públicos e viajavam sempre os dois. O rapaz, como mais velho, acompanhava a irmã preservando-a de todos os problemas que hoje se apresentam a uma rapariga só. Depois de entrarem para as aulas, pedia ao segurança para dar uma vista de olhos às pautas. Felizmente os seus rebentos iam bem e tinham notas muito razoáveis. Um dia, à tarde, viu a mulher que fora buscar os filhos. Continuava linda e elegante. Não conseguiu prender uma lágrima teimosa e afastou-se rapidamente.
Haveria de sobreviver… assim o governo deixasse. Mas no fundo pensava que o governo se estava “marimbando” para ele e outros como ele. A eles nada faltaria. A mesa do orçamento é ampla…

sexta-feira, 13 de abril de 2012

O ASSALTO


O homem, sentado no banco do jardim, chorava silenciosamente. Como chegara àquela situação? O desemprego apanhara-o numa idade ingrata. Sentia-se capaz e útil. O seu cérebro fervilhava de ideias aproveitáveis. Porquê ele? E agora? Como sustentar a mulher e os filhos? O subsídio de desemprego iria acabar e certamente não encontraria trabalho a tempo. Que fazer?
Poderia suicidar-se. E depois? A família ainda ficaria com menos. Ele passava-se e pronto, mas os que cá ficassem?
Olhou em frente e viu montes de gente na esplanada da confeitaria. Será que a crise não os atingiu. A ele nem dinheiro para o café sobrara. Fora ao supermercado e fizera compras mínimas para garantir algumas refeições. Ao lado da esplanada a porta do banco dava entrada e saída a montes de gente. Seria que tinham problemas também? O banco não teria de certeza. Vivem das crises emprestando a quem precisa mas por um preço exorbitante. Os altos juros cobrados compensavam os créditos ditos mal parados. Via-se pelos lucros que apresentavam. Só que o governo não lhes cobrava impostos ao mesmo nível do cidadão. A esses levava coro e cabelo. Porque não cobrar àqueles que só ganham dinheiro com o dinheiro e nada produzem? Ainda por cima, os jornais vendiam-se à custa dos escândalos sobre bancários corruptos e ladrões que defraudavam os respectivos bancos em benefício próprio. E esses não eram presos e ao povo vinham buscar o necessário para salvar o banco. Porca de vida esta. Quem rouba muito com muito fica para poder pagar a sua defesa. O que não falta são advogados que utilizam leis já feitas de propósito para defenderem os que muito têm.
Pensou. Ali, está muito dinheiro que devia estar ao serviço do povo. Apertou a gabardine, meteu a mão direita num bolso e dirigiu-se ao banco. Deixou sair o último cliente e aproximou-se da única caixa. Tinha colocado os óculos escuros e um chapéu. Estendeu um dedo, dentro do bolso e pediu.
− Dê-me todo o dinheiro que aí tem. – Disse, colocando uma pasta no “guichet”. Estava absolutamente calmo e consciente do acto que praticava.
A rapariga ficou a tremer e completamente branca. Enquanto reunia o dinheiro teve discernimento para, com um joelho, premir o botão do alarme. Ao meter as notas na mala que o homem apresentara, deixou-as cair e estas espalharam-se no chão. Levantou-se apressadamente e começou a apanhá-las com muito nervosismo. Lá conseguiu reunir todo o dinheiro entregando-o ao assaltante.
O homem dirigiu-se à porta mas parou estupefacto. Três carros e uma dezena de polícias cercavam as imediações do banco. Pensou correr e fugir, mas logo viu que era impossível. E a vergonha? E a mulher e os filhos? Dentro do bolso encontrou o molho de chaves. Num gesto brusco empunhou a chave maior e apontou-a aos agentes. Sentiu dor no peito ainda antes de ouvir as detonações. Deixou-se cair semi-inconsciente.
A ambulância seguia não muito depressa com o seu característico pi-nó-ni. O Homem via-se 37 anos atrás, naquela madrugada de Abril criadora de todas as esperanças. Via aquele homem de três galões dourados sobre os ombros que lhe dizia:
− Agora tudo vai mudar. Vamos ter justiça neste país. Os homens ficarão melhores e totalmente solidários. Vamos estabelecer o socialismo, vamos dar as mesmas oportunidades a todos. Acabou a exploração do homem pelo homem.
Lembrava-se da cara risonha e serena desse militar. Parece que tinha vindo de Santarém com os seus homens para mudar o estado de coisas a que tudo tinha chegado. Ouvira falar que morrera…
À entrada do hospital os homens da ambulância corriam empurrando a maca. Um polícia acompanhava a mesma não fosse o homem fugir. Um médico correu ao lado e colocou a mão no pescoço do paciente.
− Não corram mais. Não vale a pena. Acabou de falecer.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

POSEIDON


Mergulhei. A coluna precisa de exercício. Aquelas picadas de Angola e Moçambique deram-lhe muito trabalho. – Precisa de músculos. – Disse-me o clínico. − Para aguentar os machucamentos que isso foi tendo. As almofadas também já estão gastas. A idade não ajuda. Olhe que nadar fazia-lhe bem.
Fiz-lhe a vontade. Lá ir todos os dias ao hospital para a fisioterapia é que não vou. Antes lumbágico.
Agora, ali mergulhado, olhava, através dos óculos protectores do cloro, os ladrilhos do fundo da piscina. Os reflexos dourados provocados pela luz solar penetrada através das vidraças da grande janela e movimentando-se na água límpida, pareciam-me fulgores cintilantes desprendendo-se do nada e vindo até mim como mensagens telepáticas, mas visíveis, de um qualquer “Poseidon” de água doce. Fossem ou não missivas de um ser do Olimpo das profundezas, o certo é que me traziam uma enorme sensação de bem-estar, relaxamento e faziam-me esquecer a porcaria em que o meu País se tornara. O meu pensamento, normalmente inquieto, entrava em letargia.
E pensei; “Lá está a natureza mítica do homem a criar deuses para sossego do seu cérebro irrequieto e temeroso.”
Nadei, mergulhei, procurei e nada encontrei. O deus enviador de luz calmante, não estava lá.
Ao sair da água voltei à realidade.

Novas Conversas com Jesus (FIM)

O que se segue não se pode dizer que se tenha tratado de uma conversa, foi mais uma transmissão de pensamentos. Ao chegar ao sítio do costume não vi Jesus. Deve ter seguido o meu conselho e partiu. Mas algo me moía dentro da cabeça, como se a voz do indivíduo me pedisse auxílio.
Sentei-me e esperei mais um pouco, mas a dúvida e apreensão tinha-se instalado no meu cérebro. Algo me dizia que as coisas tinham corrido mal para o tipo. Aquela mania de falar como sendo divino ser-lhe-ia sempre fatal. As pessoas não acreditam em poderes dos vivos. Só nos daqueles que são intermediários das divindades que moram no além, tipo santos e quejandos.
Para mim tinha sido bom. Mais uma vez não me conseguiram provar a existência de poderes sobrenaturais. Os fantasmas continuam a não entrar comigo. Ainda bem, assim só conto comigo e torno-me no meu próprio deus.
Levantei-me do banco público e fui até ao quiosque. Lá estava na primeira página num daqueles jornais que só noticiam a perfídia humana.
Numa qualquer aldeola, o povão apedrejara até à morte um pobre indivíduo que se dizia Jesus e enviado de deus. A GNR não chegara a tempo e nem tinha conseguido identificar nenhum dos agressores como é costume nestes crimes colectivos.
Desta vez tinha morrido como um judeu.
Espero que não volte mais. Eu não preciso dele. Afinal ele é que precisava de mim.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Novas Conversas com Jesus (V)

– Olá! Bom dia Jesus.
– Bom dia meu Caro. Dormiu bem?
– Felizmente. Mas antes de adormecer, estava a lembrar-me que, enquanto nós conversávamos por aqui, mais uma guerra começava neste mundo. Parece que os russos, apesar de se terem deixado de comunismos, continuam a não ter muita confiança nos americanos. Estes apoiam os georgianos nas suas pretensões de se juntarem à NATO, mas devem estar loucos se pensam que os russos vão deixar, ou então não percebem nada de estratégia. Aquela região é crucial para os russos, depois da Geórgia seguir-se-ia a Ucrânia. Os russos não são parvos. Com a Geórgia e a Ucrânia do lado da NATO, os américas ficariam cada vez mais donos do mundo. Vocês, que se dizem tudo poder, nos livrem disso.
– Mais uma vez os homens não se entendem.
– Vocês deuses é que tiveram a culpa. Não foi Jeovah que baralhou as línguas, dividindo os povos, só para que eles não fugissem ao seu poder? Os coitados só queriam não morrer afogados aquando vos desse na cabeça de um próximo dilúvio. Só tentaram construir uma torre bastante alta. Qual o vosso medo quando os homens tomam iniciativas anti-deus?
– Os homens ao perderem o medo deixam de seguir os nossos preceitos e depois perdem-se.
– Perdem-se? De quê ou de quem?
– De si próprios. Deixam de cumprir os mandamentos e perdem a salvação da alma.
– Da alma… essa é boa! O que é a alma?
– É a essência espiritual. A única parte do homem que se aproxima de Deus.
– Não me faça rir. A alma não existe. E se existisse era uma energia que deveria ser utilizada. De tantos milhões que morrem, as almas podiam ser aproveitadas para produzirem qualquer coisa de útil. Assim, vão apenas para o céu e lá nada fazem, nada produzem e nem sequer ajudam os desgraçados que por cá ficam à espera do fim. É uma energia desperdiçada. Mas estamos a desviar-nos do assunto começado, as guerras entre estados e ainda por cima ambos cristãos. Vocês criaram o homem à vossa imagem e semelhança, parece que realmente ficaram iguais, egoístas e prepotentes, sempre a quererem sobrepor-se uns aos outros. Tal qual os deuses conhecidos, sempre a quererem ser únicos arrasando todos os outros e o povo de Israel sofreu na pele a ira de Moisés por ter tentado substituir deus omnipotente.
– Foi por essas e por outras que vim à terra. Apaziguar os desígnios do nosso Senhor com métodos mais brandos.
– Não se safou. Deve ter seguido uma táctica errada. Foi pendurado numa cruz e o povão continuou cada vez mais malévolo.
– Tive de morrer para salvação da humanidade.
– Essa já não pega. Qual salvação? A da morte? Bah! Não era melhor tê-los tornado mais solidários? Olhe meu Caro, estamos a perder tempo. A nossa conversa a nada conduz. Não vamos tornar a humanidade melhor, nem nós homens, nem vós deuses. Como sempre disse, só a educação, o conhecimento, a democracia verdadeira, não esta xaropada que nos querem impingir, e os sentimentos de solidariedade e compaixão pelos não dotados, podem tornar o homem um pouco melhor. Vamos pois acabar com estas conversas, nem eu me torno crente nem Você conseguirá algo dos homens. Volte para o etéreo. Gostei de conversar consigo.
– É pena que pense assim. Vou continuar a tentar.
– Tome cuidado. Olhe que a história repete-se sempre.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Novas Conversas com Jesus (VI)

Bom dia Jesus! Veio cedo.
– Acabo os meus périplos e regresso sempre aqui. Conversar consigo é sempre um bálsamo para mim. Depois dos energúmenos a quem me dirijo e que se estão nas tintas para o que digo, falar consigo é um prazer.
– Não me diga! Você sabe que sou ateu, não acredito em divindades nem em semi-deuses.
– Pois é, mas escuta-me e debate o que já é muito bom.
– Isso não o assusta, os crentes não o quererem ouvir? Isso a mim só me faz ver que a maioria vê a crença como uma obrigação que lhe foi encaixada, que aceitou como certa, que daria azar não seguir, que é imutável, mas que só se cumpre por obrigação, depois, passados uns minutos, a vida volta ao mesmo e as crenças são postas de parte até ao próximo domingo. Não será assim?
– Infelizmente é isso. As pessoas estão demasiado superficiais, sempre atarefadas, com problemas a todos os níveis gritam “ Oh meu Deus!”, mas como nada acontece e têm de ser eles a resolver os problemas…
– Mas isso é terrível, só quer dizer que afinal deus não é pessoal, não está com cada um, será assim? Sempre ouvi dizer que se deve estar sempre a pedir a deus que nos conduza, que nos leve ao bom caminho que ele nos dará as respectivas compensações, afinal parece que não. Então deus resolve o quê?
– Olhe! Resolve o interior das pessoas. Se todos o tiverem em mente, serão melhores, terão mais paciência, suportarão melhor as agruras, serão melhores uns para os outros e viverão mais felizes.
– Meu Caro. Isso qualquer psiquiatra faz a troco de dinheiro, ou nem esse será necessário se o cidadão souber o que quer, para onde vai, e tiver mentalidade aberta e organizada. Penso que a educação, o conhecimento, a força de vontade, o discernimento e a cultura, farão um melhor papel do que esse deus de quem fala.
– E onde é que estão as pessoas com essas características? É precisamente para quem as não tem que Deus é necessário.
– Bah! Eduquem a rapaziada. Organizem escolas abertas, de mentalidades livres, sem religiões a indicarem-lhes caminhos obsoletos, sem ideologias retrógradas. Arranjem formas de os empregarem sem necessidade de competição acérrima. Ponham as capacidades de cada um ao serviço de todos e não daqueles que inventam necessidades supérfluas só para que se consuma desenfreadamente. Os recursos naturais vão acabar e essa necessidade não necessária, perdoe-me a incongruência, vai fazer estourar o planeta. Isto não é eterno. Quando tudo e todos acabarem a quem vai Você pregar? Se tudo acabar Você acaba também. Será que seu pai ficará por aí mais uns milhões de anos, como anteriormente, sem nada fazer, até lhe dar na bolha e criar uma nova humanidade? Espero que não. O resultado desta está à vista e não é brilhante.
Bem, Jesus. Com esta me vou. Tenho que ir para casa até ao meu computador e as minhas leituras. Também tenho de fazer alguma companhia à mulher que já anda estranha por eu demorar tanto nos passeios matinais. O meu amigo tem a sua culpa. Até amanhã.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Novas Conversas com Jesus (III)

Confesso que estou a ficar um pouco farto destas conversas, não que não goste do homem, o tipo até é um gajo porreiro, mesmo que não seja muito convincente como deus, também não conheço nenhum que o seja, se aos deuses nós podemos dizer que os conhecemos. Apenas através dos outros, aqueles que sobre eles ficcionaram, nós podemos deles ter algum conhecimento, além de que a maioria dos autores foram e são tendenciosos. O mal deve estar em mim, ao falar tanto sobre a mesma coisa estou a ficar sem argumentos. Gostaria de ter formação em filosofia para poder dissertar sobre estes temas com muito mais propriedade. Mas não se pode ter tudo, tenho de me limitar às conversas ditas normais.
É tão fácil viver sem deus, não ter medo da morte, saber que o fim é mesmo o fim, porque não havia de ser, tudo acaba.
Hoje não tenho tema para falar com Jesus. Vou deixar que ele fale.
Lá estava ele, sempre arranjadinho, a olhar a biqueira dos sapatos muito limpinhos. Pernas estendidas, recostado, mãos nos bolsos. Viu-me antes de olhar, como se me tivesse pressentido, se calhar até me viu antes mas fez de conta.
– Bom dia. Disse-me em voz baixa.
– Bom dia para Você também. De que vamos falar hoje?
– Bom. Digo-lhe que o meu amigo acaba por ter razão. Ninguém liga ao que tenho para dizer. Andei atrás de duas velhotas, ou talvez não fossem, mas pelo modo de vestir e falar pareciam. Diziam-se testemunhas de Jeovah e batiam à porta das pessoas tentando levá-las a acreditar numa série de patranhas tendo por base uma bíblia que traziam na mão mas nem abriam. O certo é que oitenta por cento dos abordados dava-lhes troco e ouvia-as com atenção. Se alguma coisa ficava naquelas cabeças não sei. A grande maioria, assim que a arengação termina, voltam para dentro dos covis e quando chegam junto da chaminé para mexer o tacho, porque entretanto o refogado pegou, já nem se lembram do que lhes falaram. Outros gostaram muito de ouvir mas não perceberam nada, nas cabeças há demasiadas preocupações e pouco intelecto. As pessoas, quer-me parecer, têm necessidade de falar, de comunicar. Vive-se uma época em que se perdeu o hábito da comunicação. Há hoje tantas coisas modernas e interessantes em que ocupar o tempo, que já não se comunica e quando o fazem é de forma virtual, falando mal e escrevendo mal, sobre temas mais ou menos triviais. Os maridos não falam com as esposas, os pais com os filhos, etc. Quando aparece alguém a dar alguma esperança, mesmo que seja através do culto da vida para além da morte, todo o mundo escuta. Eu falo sobre o mesmo e sou escutado, mas se revelo a minha condição divina, todos se riem e se afastam abanando a cabeça como a chamarem-me mentecapto. Alguns partem para a violência verbal e se não me retiro vão até à violência física. Porque será que nesta época já ninguém acredita em deuses vivos? Lá na Palestina, ao princípio, também não acreditaram a não ser meia dúzia dos que me seguiam, e mesmo assim, alguns só o faziam porque pensaram que eu tinha poder para os conduzir numa campanha contra os romanos ocupantes. Logo que morri, fui sepultado, o meu corpo desapareceu, e aí sim, passei a Deus por ter ressuscitado. Parece-me que realmente Deuses vivos não são aceites. Já tínhamos falado nisto. Estamos a repetir-nos.
Jesus falava mostrando um semblante triste e preocupado. Eu, muito céptico sobre o tema, admirava a concentração do indivíduo, como se acreditasse mesmo naquilo que dizia. Como de costume fiz-lhe a vontade não pondo em causa a sua convicção de ser divino.
– Pois é meu caro Jesus, o meu amigo sabe o que passou e pode ter a certeza de que vai voltar a passar. Ninguém o vai levar a sério. Isto não é a América. Lá é que é fácil construir novas religiões e criar novos messias. Mas para isso torna-se necessária uma organização. Aqui vai ser mais difícil de o aceitarem como divino. As pessoas estão tão preocupadas com a crise que nem sequer o vão ouvir, e se o ouvirem vão escarnecer e até partir para a violência. Se o meu amigo, em vez de Jesus, se chamasse Edir Macedo, se falasse com sotaque brasileiro, começasse a vender o céu, aldrabasse os ouvintes com pantomimas de seguidores a entrarem em transe dizendo que falaram com deus, pusesse as assembleias a cantar e a pular, aí teria êxito e ficaria rico à custa de sugar a pobreza dos seguidores. Esses coitados, na ânsia de obterem benesses divinas, acabam na miséria por terem dado tudo o que têm e quando vêm o logro já tarde. Entretanto o grande sacerdote engorda e cria um património tal que o torna um grande e intocável senhor e o povão continua à procura de um deus que, por mais que reze, cante e pague, nunca chega a encontrar. Você sabe que é assim. Use a sua divindade e ponha cobro a isto mas, não vai ser capaz, todas as igrejas fazem o mesmo, umas de forma mais sóbria do que as outras, mas todas engordam à custa da fé dos incautos. É um negócio próspero.
Jesus ouvia-me cabisbaixo e preocupado, não tinha argumentos para contrapor e chegou ao ponto de me perguntar:
– Que acha que devo fazer?
– Essa é boa! Então Você é que é deus, omnipresente, omnisciente e omnipotente, e eu é que tenho de encontrar a solução? Vocês deuses não conseguem cumprir a vossa missão? Olhem! Acabem com a humanidade. Mate-se o bicho morre a peçonha. Arranje outro dilúvio. Um tsunami que dê a volta ao mundo e não deixe ninguém vivo. Mas isso não fazem vocês. Sem seres vivos e inteligentes os deuses acabavam também. Deuses só existem enquanto alguém pensa neles. Se não houver pensantes não há deus.
Deixei-o de rastos. Tive pena dele. Disse-lhe:
– Desculpe lá a verborreia. Vá dormir e deixe-se de tentativas redentoras. Ninguém o merece.
Despedi-me e fui para casa. Da próxima tenho de ser mais cordato ou acabo com a divindade.

domingo, 8 de abril de 2012

Novas Conversas com Jesus (II)

No dia seguinte apareci mais cedo. Ele lá estava no mesmo banco como se me esperasse.
– Bom dia. Passou bem a noite?
– Meditei muito. Como não preciso dormir, cogito sobre a minha missão na terra.
– Chegou a alguma conclusão satisfatória? Vocês, deuses, deviam saber sempre o que fazer, mas quer-me parecer que afinal têm muitas dúvidas. Não será assim?
– Não são dúvidas, é optar ou não por diversas formas de actuação.
– Isso não é o mesmo? Quando não sei qual o caminho a seguir é porque tenho dúvidas.
– O meu caro Amigo está sempre a atirar para o torto.
– Pois é. É um vício que tenho. Gosto de contestar as ideias dos outros. Sempre é mais interessante do que dizer a tudo que sim. Sem contestação está tudo certo e nada avança. Mas deixemo-nos de conversa fiada e passemos a coisas interessantes. Que andou a fazer entre o seu nascimento e os seus trinta anos? Os evangelhos ditos canónicos, apenas referem um pequeno facto de algumas palestras suas para os rabinos senhores do templo, aí pelos seus quinze anos, mas não explicitam os temas das conversas que deixavam boquiabertos os intelectuais da época.
– Andei a aprender e a orar a meu Pai preparando-me para a missão a que Ele me destinou.
– Não acha pouco para um deus? Os omniscientes sabem sempre tudo. Acho tempo de mais para preparação de uma missão apenas de três anos. Bolas! Durante trinta anos não dava para se dar a conhecer? E acho que optou pelas classes erradas. Os ricos e intelectuais estariam de certeza muito mais interessados nas suas filosofias do que os desgraçados que depois o seguiram. Criancinhas e pobres de espírito não devem ser os melhores seguidores de novas teorias de vida. Penso também que essa mania de falar por parábolas, também não me parece a melhor forma de se fazer entender por assembleia tão pouco letrada. E se andou trinta anos a aprender, porque não escreveu? Não andou na escola? Olhe que Maomé “escreveu” o que Alá lhe ditou e era analfabeto. Deve ter sido tarefa difícil e não era filho de deus, apenas o seu profeta. Você com a escrita poderia ter posto logo as ideias a circularem com maior velocidade. Assim, só falando, acabou por se fazer esquecer e os seus seguidores não lhe ligaram nenhuma. Só muitos anos depois, as suas teorias foram escritas por pessoas que não o conheceram. Acredito ter havido muita desvirtuação, o que passa de boca para orelha é sempre adulterado de indivíduo para indivíduo.
Claro está que quem escreveu ou quem mandou escrever, exigiu que os textos não fossem simples, assim só os hermeneutas conseguiriam interpretar as escrituras e depois explicar, a seu modo, toda aquela cantilena aos crentes aos quais a exegese nunca foi o forte.
– O meu caro é de força. Se o meu Pai assim o quis, assim o fiz.
– Bah! Lá está a teoria da subordinação. Com todas essas teorias fizeram asneirada. Foi preciso um imperador romano para tornar as suas ideias uma religião oficial de um povo que, ainda por cima, não era o vosso, mas antes aquele que anteriormente tinha sido o algoz daqueles a quem as suas palavras foram dirigidas. Tudo muito mal feito! Como explica que os seus iguais não tenham acreditado em si e depois os vossos colonizadores terem chegado à conclusão que afinal você tinha sido o enviado de um deus em quem eles nunca tinham acreditado e depois se tornou o deus de todos?
– Os caminhos do Senhor são insondáveis e incontestáveis. Não nos cabe colocar em causa os seus desígnios.
– Pois. Tem sido com essas tretas que Vocês vão afastando as pessoas da fé. Não dão respostas e querem que acreditemos no inacreditável. Depois queixam-se que estão a perder a freguesia. Eu sei como foi, ou é assim ou levas no focinho. Tanta porrada levaram, tanto gajo foi queimado e torturado, que não tiveram outro remédio senão seguir aquilo que o imperador tornou fé oficial. E a evangelização forçada continuou pelos tempos fora. Na idade média tinham medo da fogueira, agora têm medo das profundas dos infernos e do belzebu. Bom, continuamos amanhã.
– Até amanhã.

sábado, 7 de abril de 2012

Novas Conversas com Jesus (I)

Numa das minhas voltas passei no largo onde há quatro anos tive o encontro com aquele malogrado tipo que se intitulava Jesus Cristo e a quem, com requintes de malvadez suspenderam no cruzeiro e lapidaram até à morte. Pobre homem que até tinha bom fundo e queria voltar a pôr em prática os princípios já gastos e arcaicos de um cristianismo que todos dizem seguir mas que não cumprem.
Lembro como foi bom falar com ele, como as nossas conversas foram amenas apesar de divergentes. A minha imaginação voltou atrás como se hoje fosse o dia seguinte a um daqueles em que conversámos.
Estava nestas divagações, quando ao olhar para o banco de madeira e ferro que a autarquia colocara nos passeios, o vi como se sempre ali tivesse estado. O mesmo fato, a mesma posição, o mesmo olhar, o mesmo sorriso...
O tempo estava ameno, nem calor nem frio, a sombra das árvores tapava o banco onde se encontrava e eu estava com disposição para a conversa, mesmo sabendo que ia ser de confronto de ideias.
Depois de me convencer de que era ele mesmo, dei alguns passos até me postar na sua frente.
– Olá Jesus! Por cá de novo?
Continuou a sorrir olhando para mim com aquela auréola luminosa que emanava clarividência, bonomia, vontade e prazer de me ver.
– É como vê. Voltei.
– Da última vez que me lembro de o ver, Você tinha acabado de morrer. Como fez isso?
– Nada que não tivesse já acontecido antes. Volto sempre que queira. Como sabe os Deuses aparecem a quem os chama ou precisa deles nem que seja só para conversar.
– Conversar? Poucos crentes conversam com deus, limitam-se a entrar numa igreja, sentam-se ou ajoelham-se, debitam uma série de ladainhas que os obrigaram a empinar, os seus ancestros, ou na catequese mais ou menos obrigatória, a maioria nem entende o que está a dizer, conheço imensos que não sabem o que significa Ave ou Ámen.
– As vozes dos crentes chegam sempre aos céus.
– Mas como apareceu de novo e porquê?
– Ressuscitei como de costume.
– Pois! Mas isso aconteceu há dois mil e tal anos. Porquê agora esta frequência? Há quatro anos voltou a acontecer-lhe quase o mesmo que antigamente e tenho a impressão que se vai outra vez dar mal com a experiência. Porque insiste?
– O meu Caro queria falar comigo e eu aqui estou.
– Mas eu não sou crente. A necessidade de falar consigo é apenas pelo confronto de ideias, como se esta conversa fosse entre mim e os créus que o vêm como produto híbrido de um deus e uma terrena, ainda por cima virgem. As mitologias grega e romana, estão cheias desses semi-deuses que foram perdendo a sua importância e força até se tornarem aquilo que agora são, simplesmente mitos.
– A humanidade continua a precisar de mim. Isto vai de mal a pior.
– Acha que sim? Não tem valido de nada! As suas prédicas caem sempre em saco roto. Ninguém lhe liga nenhuma. Mesmo aqueles que se dizem seguidores da sua palavra só se lembram de si enquanto estão na missa ou quando a vida lhes corre tão mal e já não têm a quem recorrer. Nessa altura todos gritam “ Ai Jesus, Deus me valha”, mas logo que a crise passa mandam as crenças às couves e voltam a ser os seres mesquinhos e desprezíveis que sempre foram.
– É para tentar mudar isso que volto.
– Isso é que é persistência. Ainda bem. Estava sempre a dizer a mim mesmo que Você só tinha aparecido naquela época, ainda por cima a Judeus descrentes em si, como messias, e que nunca mais tinha voltado. Agora num espaço de quatro anos, já é a segunda vez que o vejo. Pena que só eu, um ateu, fale consigo, os outros, aqueles que se dizem crentes, assim que Você começa com os seus sermões e diz quem é, escarnecem de si e acabam a pendurá-lo num cruzeiro. Mas ainda bem que voltou. Assim podemos ter de novo algumas conversas que me esclareçam. Não que me convençam, pois já é tarde para mudar de ideias.
– Se o esclarecer em algo já dou por bem o meu regresso.
– Olhe que lhe vai dar muito trabalho e terá de haver muita argúcia da sua parte. Cada vez estou mais incrédulo.
– Vou tentar. Essa é a minha missão. Evangelizar e colocar algum bom senso na cabeça dos homens.
– Fraca missão essa. Não teria melhor sucesso se fizesse com que os homens estudassem, se cultivassem, se tornassem melhores profissionais virados para os problemas que afectam os seres humanos, para a natureza, que todos ignoram e degradam até chegar o colapso total? Acha que isso se consegue com estórinhas do tempo da Maria Cachucha que andam a ser contadas sem sucesso há dois mil anos?
– Temos de tentar. Com o amor e a bondade tudo se consegue.
– Amor e bondade? Não brinque comigo! Amor e bondade para energúmenos egoístas que só pensam em dar cabo uns dos outros para obterem benesses materiais? Matam-se pais e filhos por heranças, por ciúmes, por sexo, por dá cá aquela palha. Cada vez se liga menos à instrução e ao saber. As pessoas estão cada vez mais snobes, mais fúteis e mais interesseiras. Cada vez há maior separação entre grupos étnicos, religiões e cor da pele. O meu caro saiu cá uma encomenda. Depois não volte, daqui a outros quatro anos, a dizer que o tornaram a pendurar na cruz… Olhe! Amanhã, se ainda andar por aqui, tenho montes de perguntas para lhe fazer. Agora vou para casa que se faz tarde.
– Até amanhã e vá com Deus.
– Pois…pois…
Fui para casa perplexo comigo mesmo. Como é que eu, não acreditando em nada do que as religiões impõem como sobrenatural e dogmas e, tendo até dúvidas da existência de Jesus, mesmo como homem, por falta de provas históricas ou científicas, me preocupo tanto a pensar nestas coisas? O que talvez me desperta a curiosidade, no fim, é tentar perceber, como é que os que construíram as filosofias de cariz religioso puseram os homens a crerem nelas sem sequer os levarem a interrogarem-se e porem em causa as intenções dos que o fizeram.
Os deuses nascem da ignorância dos povos que têm tendência a atribuir ao sobrenatural aquilo que não entendem e, as religiões, não são mais do que regras, atribuídas pelos humanos, para explorarem as crendices dos ignorantes. Com essas regras, levam ao poder hierarquias constituídas pelos sacerdotes que se unem como seita. As seitas criam depois misticismos de que falam mas não explicam, no intuito de imbuir no interior dos seguidores de que só os eleitos, eles, são suficientemente iluminados para compreenderem as mensagens escondidas nesses misticismos. Nasceram assim as ordens religiosas e não só. A própria Maçonaria é uma seita não religiosa, mas cheia de misticismos de modo a causar um ambiente esotérico aos seus seguidores. Vejam-se os templários, que se criaram como guarda armada de um templo cheio de segredos e mitos inventados para os tornarem míticos, mas no fim o que pretendiam, todas as seitas, era tomar o poder. Assim, vão levando os crédulos a considerá-los iluminados dos deuses. Isto não é mais do que a criação de um poder enorme sobre os outros. Normalmente estes poderes criam organizações riquíssimas que se vão cada vez mais infiltrando e crescendo à custa dos donativos e do comércio da fé. Vejam-se as igrejas mundiais. O poder das igrejas é tão grande, que na maioria das vezes conseguem sobrepor-se aos estados impondo-lhes regras que as perpetuam. Para garantirem os seus poderes, fazem autenticas lavagens aos cérebros dos prosélitos, fazendo-lhes crer que a sua é a única crença válida e que todas as outras são sofisticações. Com essa prática, criam ódios e clivagens que levam a guerras e terrorismo. Os estados, em vez de se tornarem laicos, aceitando e respeitando todas as religiões mas exercendo a suas funções sem qualquer intromissão das ditas, têm tendência para privilegiar a religião maioritária em detrimento das outras, apenas para garantirem votos. Outros estados utilizam as próprias regras religiosas como leis do próprio país e aí conseguem governar pelo medo das excomunhões e dos infernos. Essas leis, por serem atrasadas no tempo e nas ideias, causam enormes estragos nas mentes e vivências, conduzindo aos extremismos.
Parece pois, que todos seríamos mais felizes sem deuses nem religiões, mas vamos dormir sobre o assunto e amanhã lá estaremos para continuar a conversa com um dos deuses que, com uma teoria quase comunista, conseguiu criar uma das igrejas mais capitalistas do mundo. Ou terá sido o contrário?