terça-feira, 13 de novembro de 2018

Os meus sapatos

(continuação)

Realmente, estes meus protectores “pedúnculos” foram alvo de rapto. Não que o companheiro que os levou estivesse eivado de uma necessidade elevada de apropriação sapatal. Nada disso. O nosso companheiro de piscina, infelizmente, está a ser apanhado pelo “alemão” e, de vez em quando passa-se um pouco da realidade e entra em confusões cerebrais. Não o moveu qualquer ideia de se apropriar de algo que não era seu. Chegado a casa, reparou que trazia uns sapatos calçados e outros no saco ficando atónito e até embaraçado com a situação. Apressou-se em voltar à piscina e entregou os sapatos no balcão de atendimento, cujo empregado já estava por mim alertado.
Tudo bem, mas o cómico da coisa foi eu, já vestido, sentado no banco a calçar as meias e ao tentar calçar-me não encontrar os sapatos. Procurámos por todos os cacifos abertos, contámos a roupa pendurada e os sapatos que estavam em baixo e, nenhuma falta. E agora? Como ir para casa de meias e chinelos?
Entretanto conjecturava sobre o acontecido e previa que alguém que ainda estivesse dentro de água, tivesse metido, por engano, os sapatos no cacifo e o fechasse. Já dizia mal da minha vida quando um companheiro se ofereceu para me levar de carro. Cheguei a casa de chinelos.
No dia seguinte reavi os “chanatos” e a história já estava a dar que falar aos amigos que muito riam com o insólito. Após as muitas desculpas do autor do “desvio”, continuou a risota por o companheiro não conseguir explicar porque fez aquilo. Só nos rimos com as desgraças dos outros, mas realmente aquilo era só para rir.
Este balneário da piscina é muitas vezes palco de situações hilariantes. Um dia destes sentei-me no banco, após o banho, e deitei a mão às calças que estavam penduradas atrás de mim começando a vesti-las. Entretanto um outro companheiro andava por ali às voltas até que foi interpelado por um amigo com quem eu conversava: “Anda à procura de alguma coisa?” ao que ele responde: “Roubaram-me as calças”. Nesta altura acendeu-se-me uma luz no cérebro e disse muito rapidamente, mas já com algum receio: “Não me diga que estou a vestir as suas?” E estava. Foi a risota geral. É o que faz andarmos todos de ganga.
E pronto, aqui fica mais um apontamento das agruras vividas pelos nadadores e hidroginastas da piscina de Benfica. Mas os meus sapatos não acharam graça nenhuma e contaram a história à maneira deles.

Os sapatos


Somos um velho par. Estamos gastos, deformados, mas muito feitos ao pé de quem nos comprou. Não nos pensem uns sapatos escravos. Temos o nosso orgulho. De vez enquanto até damos uns apertos para mostrarmos que ainda estamos ali para as curvas e para as rectas também. Lembramo-nos bem quando ainda éramos uma simples pele de vaca, curtida e cuidada com muito esmero. Como fomos cortados, moldados, colados, polidos. Quando nos juntaram borracha e nos colocaram solas que ainda hoje palmilham durante longos tempos por essas ruas lisboetas e não só. Muitas vezes calcamos pedais que nos levam estradas fora para locais não habituais. Mas sempre abraçando e cuidando pés aos quais estamos feitos há uns anos bons.
Mas a vida de uns sapatos também tem agruras. O nosso utilizador habitual deixa-nos inúmeras vezes abandonados naquelas tábuas húmidas, num ambiente caótico, onde muitos nossos congéneres também por ali ficam, uns com meias dentro, outros sem. Muitas vezes os odores não são os melhores, mas enfim, temos de esperar que voltem das águas, se vistam, falem, contem anedotas, digam disparates e acabem por nos calçar e levar para o nosso poiso habitual, onde nos limpam, cuidam, engraxam e nos guardam em armários escuros, mas quentes e confortáveis.
Mas, valha-nos São Galvão padroeiro dos caminhantes, um destes dias fomos levados, não pelo nosso utilizador habitual, mas por alguém distraído que, tendo nos pés outros como nós, resolveu meter-nos num saco e levar-nos para uma habitação desconhecida onde chegámos, tristes, estupefactos e acabrunhados. Felizmente sem más intenções, pois já nos estávamos a ver a envolver outros pés que não os habituais. E sabíamos lá se tinham joanetes, calos e outras deformidades que nos alterassem a forma. Também não sabíamos as intenções de quem nos pegou. Talvez fosse algum pedinte ou sem-abrigo, habituado a andar descalço e nos metesse dentro pés encardidos, malcheirosos, com cheiro a queijo retardado. Felizmente tudo acabou em bem. Ao chegar a casa, quem nos pegou, teve o bom senso de reparar que tinha uns nos pés e outros no saco, e lá nos devolveu deixando-nos entregues a alguém que conhecia o nosso utilizador habitual que, tendo ido para casa de chinelos, triste e magoado por nos pensar já roubados por desconhecidos, voltou ao local onde lhe fomos entregues para gáudio nosso e dele.
Nunca nos tínhamos visto em tal aventura. Felizmente lá regressámos ao nosso armário habitual depois de bem limpos e engraxados. Pelo sim pelo não, fomos aspergidos por dentro e por fora por um desinfectante, pois nunca se sabe…