domingo, 30 de dezembro de 2018

A Carteira




Tenho uma parca bem quentinha com um forro bem peludo. Forro esse que é amovível através de um fecho zip. Mas o raio da parca tem um defeito. Para meter a carteira no bolso interior, tenho de primeiramente de a meter através de uma abertura do forro e só depois no bolso. Acontece que já várias vezes a carteira me caiu no chão. Ontem, era quase meia noite, vou guardar a carteira como todas as noites o faço, na gaveta da minha secretária e, que é dela? Vou à parca e nada. Procurei pela casa toda e nada. Calcei sapatos, vesti a famigerada parca, fui ao carro e nada. Fazendo a revisão do processo cheguei à conclusão que, depois de chegar com a mulher do almoço que fizéramos fora, tornei a sair dando uma volta e fui à Evian do Uruguai. Não o país da América do Sul, mas aqui a da avenida, bem mais perto, onde tomei um café. Lembrei-me também que a mulher me tinha pedido que passasse no Pingo Doce e comprasse uma salada daquelas já preparadas e lavadas. Pronto! Só pode ter sido quando paguei e voltei a meter a carteira no bolso. Por acaso até dormi bem, mas antes de adormecer pensava a trabalheira que iria ter para substituir toda a miríade de cartões que tinha e me atafulhavam a carteira. Hoje de manhã liguei para uma amiga, que vive na Austrália, através do vídeo pelo Messenger. Quase chorava ao contar-lhe o sucedido. Diz ela: “Vou fazer uma reza a Santo António e vais ver que a carteira te aparece”. É sabido que sou ateu. Não acredito nem em deuses nem em santos e ao Fernando de Bulhões não lhe reconheço dotes de taumaturgo, mas tenho por ele algum apreço pelo homem de letras e ciências que foi e até como meu camarada, pois foi Coronel do Exército Português. Hoje nem fui à piscina como costumo mesmo aos domingos. Eram oito e meia e estava no Pingo Doce. Aleluia! E não é que a carteira estava lá com dinheiro e tudo? Fui tomar café e, apesar de não ser homem de superstições, fiz logo um euro milhões para a semana toda. Temos de aproveitar as marés de sorte. Liguei para a minha amiga e pedi-lhe que agradecesse por mim ao santinho dado que vozes de ateus e de burros, não chegam aos céus…




terça-feira, 13 de novembro de 2018

Os meus sapatos

(continuação)

Realmente, estes meus protectores “pedúnculos” foram alvo de rapto. Não que o companheiro que os levou estivesse eivado de uma necessidade elevada de apropriação sapatal. Nada disso. O nosso companheiro de piscina, infelizmente, está a ser apanhado pelo “alemão” e, de vez em quando passa-se um pouco da realidade e entra em confusões cerebrais. Não o moveu qualquer ideia de se apropriar de algo que não era seu. Chegado a casa, reparou que trazia uns sapatos calçados e outros no saco ficando atónito e até embaraçado com a situação. Apressou-se em voltar à piscina e entregou os sapatos no balcão de atendimento, cujo empregado já estava por mim alertado.
Tudo bem, mas o cómico da coisa foi eu, já vestido, sentado no banco a calçar as meias e ao tentar calçar-me não encontrar os sapatos. Procurámos por todos os cacifos abertos, contámos a roupa pendurada e os sapatos que estavam em baixo e, nenhuma falta. E agora? Como ir para casa de meias e chinelos?
Entretanto conjecturava sobre o acontecido e previa que alguém que ainda estivesse dentro de água, tivesse metido, por engano, os sapatos no cacifo e o fechasse. Já dizia mal da minha vida quando um companheiro se ofereceu para me levar de carro. Cheguei a casa de chinelos.
No dia seguinte reavi os “chanatos” e a história já estava a dar que falar aos amigos que muito riam com o insólito. Após as muitas desculpas do autor do “desvio”, continuou a risota por o companheiro não conseguir explicar porque fez aquilo. Só nos rimos com as desgraças dos outros, mas realmente aquilo era só para rir.
Este balneário da piscina é muitas vezes palco de situações hilariantes. Um dia destes sentei-me no banco, após o banho, e deitei a mão às calças que estavam penduradas atrás de mim começando a vesti-las. Entretanto um outro companheiro andava por ali às voltas até que foi interpelado por um amigo com quem eu conversava: “Anda à procura de alguma coisa?” ao que ele responde: “Roubaram-me as calças”. Nesta altura acendeu-se-me uma luz no cérebro e disse muito rapidamente, mas já com algum receio: “Não me diga que estou a vestir as suas?” E estava. Foi a risota geral. É o que faz andarmos todos de ganga.
E pronto, aqui fica mais um apontamento das agruras vividas pelos nadadores e hidroginastas da piscina de Benfica. Mas os meus sapatos não acharam graça nenhuma e contaram a história à maneira deles.

Os sapatos


Somos um velho par. Estamos gastos, deformados, mas muito feitos ao pé de quem nos comprou. Não nos pensem uns sapatos escravos. Temos o nosso orgulho. De vez enquanto até damos uns apertos para mostrarmos que ainda estamos ali para as curvas e para as rectas também. Lembramo-nos bem quando ainda éramos uma simples pele de vaca, curtida e cuidada com muito esmero. Como fomos cortados, moldados, colados, polidos. Quando nos juntaram borracha e nos colocaram solas que ainda hoje palmilham durante longos tempos por essas ruas lisboetas e não só. Muitas vezes calcamos pedais que nos levam estradas fora para locais não habituais. Mas sempre abraçando e cuidando pés aos quais estamos feitos há uns anos bons.
Mas a vida de uns sapatos também tem agruras. O nosso utilizador habitual deixa-nos inúmeras vezes abandonados naquelas tábuas húmidas, num ambiente caótico, onde muitos nossos congéneres também por ali ficam, uns com meias dentro, outros sem. Muitas vezes os odores não são os melhores, mas enfim, temos de esperar que voltem das águas, se vistam, falem, contem anedotas, digam disparates e acabem por nos calçar e levar para o nosso poiso habitual, onde nos limpam, cuidam, engraxam e nos guardam em armários escuros, mas quentes e confortáveis.
Mas, valha-nos São Galvão padroeiro dos caminhantes, um destes dias fomos levados, não pelo nosso utilizador habitual, mas por alguém distraído que, tendo nos pés outros como nós, resolveu meter-nos num saco e levar-nos para uma habitação desconhecida onde chegámos, tristes, estupefactos e acabrunhados. Felizmente sem más intenções, pois já nos estávamos a ver a envolver outros pés que não os habituais. E sabíamos lá se tinham joanetes, calos e outras deformidades que nos alterassem a forma. Também não sabíamos as intenções de quem nos pegou. Talvez fosse algum pedinte ou sem-abrigo, habituado a andar descalço e nos metesse dentro pés encardidos, malcheirosos, com cheiro a queijo retardado. Felizmente tudo acabou em bem. Ao chegar a casa, quem nos pegou, teve o bom senso de reparar que tinha uns nos pés e outros no saco, e lá nos devolveu deixando-nos entregues a alguém que conhecia o nosso utilizador habitual que, tendo ido para casa de chinelos, triste e magoado por nos pensar já roubados por desconhecidos, voltou ao local onde lhe fomos entregues para gáudio nosso e dele.
Nunca nos tínhamos visto em tal aventura. Felizmente lá regressámos ao nosso armário habitual depois de bem limpos e engraxados. Pelo sim pelo não, fomos aspergidos por dentro e por fora por um desinfectante, pois nunca se sabe…

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

O Evangelho Segundo Lázaro de Richard Zimler




Richard Zimler é um génio da literatura. Escreve um evangelho apócrifo (mais um), mas que é ao mesmo tempo um romance.
Zimler, na pele de um Lázaro (Eli) ressuscitado, que acorda sem saber que esteve morto, onde esteve e se morreu ou como morreu. Lázaro, numa carta dirigida ao seu neto, conta a sua relação com Yeshua Ben Yosef (Jesus filho de José) desde a sua infância. Como o salvou de morrer afogado e como jesus foi para com ele um amigo tal, que os seus espíritos se entrosavam numa relação de amizade muito para além do comum. Lázaro, sendo um homem com vida normal, viúvo, pai de dois filhos, vivendo com as suas duas irmãs e um avô, e até frequentador de lupanares, tinha para com Jesus uma amizade sensivelmente quase erótica, quase orgástica. A sua descrição de Jesus é a de um homem, profético, sensível e inteligente, que se imiscui de tal maneira na sua sensibilidade que não precisa de falar para que a sua voz se faça ouvir na sua mente. Jesus é descrito como filho de um carpinteiro, Yosef (José) e de Myriam (Maria), vivendo com os seus dois irmãos Yacob e Yohanon. Fala, como Jesus se insinua nos povos e os leva a transformarem-se nos pensamentos, criando nos chefes religiosos judeus, medo e inveja. Pela sua amizade com Jesus, após a prisão deste e a sua morte na cruz, Lázaro é perseguido e atacado sendo obrigado a fugir da Betânia e a procurar refúgio primeiro em Halicarnasso (Anatólia, Turquia), depois na ilha de Rodes (Grécia).
O Interessante neste livro é que além de romance histórico (tenho dúvidas dessa historicidade não provada), é também religioso, psicológico e descrente. Na Grécia, após 30 anos, começam a aparecer os primeiros endeusadores de Jesus devido a influências romanas, criando a falsidade da virgindade de Maria, o que causa em Lázaro grande indignação, por o ter conhecido em família desde criança. Lázaro sempre admirou Jesus como um profeta inteligente com poderes, mas nunca o viu como Deus. Começam aqui as grandes divergências entre judeus e cristãos.
Este romance é de tal maneira complexo que, não reconheço em mim cultura suficiente para o comentar mais profundamente, apesar de gostar imenso de história e ciência das religiões.
443 páginas que se leem com puro agrado e muita expectativa.
Já tinha lido de Zimler O Último Cabalista de Lisboa do qual gostei imenso, mas este livro supera em muito o que Zimler até aqui escreveu (opinião dos críticos).


segunda-feira, 17 de setembro de 2018

A Troca



(problemas da idade avançada)

Sou um tipo que gosta de comunicar. Comunicar falando, comunicar escrevendo. Mas, o certo é que só comecei a ser um falador após deixar de fumar, o que aconteceu pelos meus 38 anos. Passei a comer que nem um lobo, quando era um pisco, e para compensar a falta do tabaco falava. E hoje sou aquilo a que se pode chamar uma língua de prata. Por um lado, é bom; comunico com os amigos, conto umas anedotas, tento ensinar o pouco que sei e também aprendo com eles, mas acabo entretendo a malta. Na piscina, os meus amigos até já sentem a minha falta quando, por algum afazer extra, eu não apareço. Enquanto nos despimos, nos lavamos e nos vestimos, vamos conversando e dizendo umas graças. Só que a idade não perdoa e com o “paleio” vamos esquecendo umas coisas e, normalmente, lá temos de voltar atrás à procura das chaves, telemóvel, frascos do gel de banho, champô, etc. Mas aconteceu pior. Eu conto: Um destes dias, enquanto me limpava, sentado no banco corrido do balneário, conversava animadamente com o meu amigo José Valente. Entretanto, deito a mão às calças penduradas no cabide atrás de mim e começo placidamente a vesti-las. O meu amigo, sentado de frente vê um companheiro ali às voltas como quem procura algo e pergunta-lhe: “Perdeu alguma coisa?”, ao que ele responde: “Roubaram-me as calças!”
Nesse momento dá-se-me um clarão cerebral e exclamo: “Não me diga que estou a vestir as suas?”
E estava. O meu amigo Valente costuma rir com gosto das minhas anedotas, mas já há muito que não o via com um ataque de riso como aquele. O pobre quase morria de tanto rir e eu contagiado, também ri com gosto do meu despistanço. E continuei a rir pelo caminho a pensar o que seria eu a chegar a casa e a minha mulher descobrir que levava calças trocadas. Havia de ser bonito.
O certo é que o episódio tem sido contado a toda a gente e já começa a ser a piada do mês. O que faz a idade e a distracção.

sábado, 15 de setembro de 2018

Mulher Que Segue à Frente



Mais uma noite de cinema. Comecei por procurar o filme a ver. Não me apareceu nada que me despertasse muito interesse. Apenas um me alertou um pouco por se tratar de uma história baseada num caso verídico.
Muitos filmes que retratam a vida e a forma de pensar de minorias étnicas, não são normalmente vistos do interior dessas minorias para fora, mas sim através de elementos da comunidade da ocupação e opressão que, entrando junto dessas minorias, acabam percebendo-os e condoendo-se da forma de vida a que os ocupantes os obrigam. Temos exemplo do filme “Dança com Lobos” de e com Kevin Costner e outros anteriores como “Cochise” (A Flecha Quebrada) de Delmer Davies com James Stuart e Jeff Chandler no papel do chefe índio.
No caso em apreço, Susanna White realiza um filme sobre Catherine Weldon (Jessica Chastain), uma mulher, viúva, ainda jovem que, sendo pintora e influenciada por vários quadros que viu sobre o Oeste selvagem, resolve viajar para conhecer e pintar o célebre chefe índio da tribo Sioux, Sitting Bull. Estava-se em 1890 e uma mulher sozinha para aquela região da América era um procedimento impensável e até muito mal visto pela comunidade incrivelmente pudica e religiosa, além de que Touro Sentado era considerado o responsável pelo facto inédito de ter conseguido a união de várias tribos que infligiram aos americanos uma das maiores derrotas da sua história na célebre batalha de Litle Big Horn em que o 7ª de Cavalaria, comandado pelo Coronel Custer é completamente dizimado até ao último homem. Por outro lado, Sitting Bull estava a ser tomado como responsável, pelo movimento que se estava a verificar na comunidade índia a que chamavam A Dança dos Fantasmas.
Catherine passa tormentos, mas consegue chegar junto de Touro sentado, apesar da oposição do Coronel responsável pela tentativa “democrática” de implementar o tratado de loteamento de terras em que o governo reduzia a metade o território índio, prometendo, em compensação, a atribuição de terras a famílias que as quisessem cultivar (uma forma de dividir para reinar). A própria população branca da cidade é ostensivamente hostil a Catherine chegando inclusivamente à agressão física. Resistindo a tudo isto a nossa heroína consegue não só o célebre retrato, mas também acabar por se envolver no processo político levando Sitting Bull a não aceitar o tratado trazendo atrás de si toda a população índia. Ora isto é precisamente o que General, encarregado do processo do Tratado, quer para ter o pé de atacar a comunidade índia que é perseguida e massacrada em Wounded Knee, um dos capítulos mais vergonhosos da história americana.
Entretanto, Sitting Bull, sabendo que iria ser preso, tenta afastar Catherine que, por sua vez é atacada pelos militares da escolta, ficando inerte na neve sem sentidos.
Mas, o sobrinho do chefe índio, com uma carabina de longo alcance, fere de morte o seu tio livrando-o da ignomínia do cativeiro.
Claro que, à boa maneira americana, o filme não segue exactamente os factos históricos, não se coibindo até de mostrar, de forma algo velada, o interesse sentimental entre os dois protagonistas, ou não fosse a realização de uma mulher.
Catherine regressa a New York tornando-se uma defensora das minorias. Um dos quatro quadros de Sitting Bull pintados por Catherine Weldon encontra-se exposto na Sociedade Histórica do Dakota do Norte.
De qualquer modo, uma boa película que se vê com interesse e em que as paisagens, as gentes e as formas, nos são mostradas como autênticas pinturas, mas, infelizmente, com uma péssima banda sonora.
Numa das deambulações do Chefe índio e da pintora pelas sua terras, o índio faz-lhe notar que ela não deve ir à sua frente por uma mulher não se poder adiantar a um Chefe; ela pergunta-lhe: “Tenho de ir atrás?” ao que o índio responde: “Não, basta ir a meu lado. Atrás pareceria minha prisioneira”. Mais tarde chama-lhe “ Mulher que segue à frente”.
Não sendo uma obra prima, compensou o tempo de espectáculo.

sábado, 8 de setembro de 2018

O Infiltrado (BlacKKKlansman)


(Ontem fui ao cinema)

Spike Lee, realizador e produtor norte-americano, é um negro nascido em Atlanta, licenciado e mestre, que é conhecido pela defesa da integração total dos negros numa América, que foi e volta a ser, um dos bastiões da segregação racial.
Baseado na história de Ron Stallworth, um policial negro na cidade de Colorado Spring´s, que ajudado por um seu colega branco, se conseguem infiltrar na famigerada seita KuKluxKlan.
Não sendo nenhuma obra prima, o filme é apresentado de forma correcta, com algum humor, característica de Spyke, que o torna interessante de seguir sempre com interesse no final, mas com nuances humorísticas não exageradas que o amenizam.
O interessante é que Spike começa por nos apresentar algumas sequências de filmes antigos ( E tudo o Vento Levou) na célebre cena em que Scarlett O´Hara procura o médico, na estação de caminho ferro pejada de feridos e, O Nascimento de uma nação, de D. W. Griffith, mostrando-nos no final os acontecimentos em Charlottesville, Virginia, em 2017 e parte do discurso de Trump em que profere a célebre frase “ América first”, característica dos membros do Klan, numa alusão à relação da América de 1970 e a de hoje.
Filme interessante de seguir, em que mais uma vez, Spike sem medos, nos mostra um retrato preocupante da América, mas em que, ao mesmo tempo, saímos com um leve sorriso nos lábios por vermos que ainda há quem fale verdade.
Valeu a pena.

sábado, 11 de agosto de 2018

A Gaivota




Mais uma noite de cinema e mais uma vez escolhi o filme pelo site dos Medeia Filmes. Havia algumas opções, mas apenas este me chamou a atenção. Tchekhov foi um contista nascido no século 19, mas que estreou a maioria das suas peças teatrais no início do século passado. A Gaivota, estreada antes, em 1896 num teatro de S. Petseburgo não foi bem aceite pelo público. Mais tarde, uma outra encenação foi um êxito. Esta realização de Michael Mayer, limita-se a colocar a peça num modo cinematográfico num cenário real de uma família da alta burguesia russa do princípio do século passado. Um solar magnificente numa região linda com um lago magnífico.
Os actores são ingleses, todos excelentes. A história é um drama baseado em conflitos humanos em que mais uma vez sobressai o íntimo da natureza humana sempre inconstante e não realizada, em que os amores e desamores entram em conflito com o desejo, nem sempre conseguido de se afirmarem nas artes. No fim, uma série de indivíduos, todos frustrados, por não atingirem ser aquilo que desejavam, nem usufruir do amor total daqueles que elegeram para seus pares. Uma peça que mostra a vida naquilo que ela quase sempre é; a procura do conseguimento do inatingível.
Durante o Verão, na Rússia, uma família e seus amigos partilham um fim-de-semana no campo, passado numa propriedade junto a um lago. Sorin (Brian Dennehy) é o dono da casa, cuja irmã, a imperiosa, egocêntrica e narcisista Irina (Annette Bening, excelente papel), é uma lendária atriz dos palcos de Moscovo. 
Irina tem como amante Boris Trigorin (Corey Stoll), um autor de sucesso cujos afetos a atriz tem medo de perder. 
Konstantin (Billy Howle), filho de Irina, é um sonhador e aspirante a escritor, que quer criar um novo tipo de teatro, mas a cujas pretensões a­ mãe não dá muita importância.
Konstantin está apaixonado por Nina (Saoirse Ronan), uma jovem ingénua que sonha em ser atriz, e que face ao sucesso e charme de Trigorin acaba por rejeitar o homem mais novo. 
Por sua vez, Masha (Elisabeth Moss), a deprimida filha do caseiro da propriedade, está apaixonada por Konstantin, mas é rejeitado por ele e não se contenta com os afetos de um mestre escola chamado Medvedenko (Michael Zegen), cuja determinação em conquistar Masha nunca se deixa abalar.
Polina (Mare Winningham), a mãe de Masha e esposa de Shamrayev, anseia pelos afetos do carismático Doutor Dorn (Jon Tenney), mas este, apesar de dar atenção à mulher do caseiro, é dependente da sua ligação a Irina, com quem teve um caso há alguns anos. 
A narcisista Irina, não perde oportunidades de achincalhar o filho pelo seu insucesso como escritor e pianista. Este, tenta a todo o custo impressionar todos e, principalmente a mãe, tentando encenar uma das suas peças, mas esta, não liga ao que se passa à sua volta, interrompendo frequentemente as falas dos actores (o filho e Nina) o que leva Konstantine a interromper a sessão e fugir para o bosque. Todos o procuram, principalmente Nina e Masha. Konstantine, munido da sua espingarda de caça, alveja uma gaivota e deposita-a junto dos pés de Nina, dizendo que essa gaivota é ela vogando sem destino e direcção. Foge para a mansão e no seu quarto alveja-se, mas não conseguiu acabar com a vida ficando apenas com uma escoriação na cabeça. É nessa situação em que se verifica uma cena de carinho entre mãe e filho, mas que acaba em conflito, em que a mãe acusa Konstantine de nada valer e ser um frustrado enaltecendo-se a ela própria pelos êxitos obtidos em cena. Entretanto, o dono da casa vai piorando da sua saúde. Nina, desalentada, sente-se atraída pelo escritor Boris Trigorin, que se insinua junto da jovem.
Passam-se dois anos. Trigorin deixa Irina e junta-se a Nina da qual tem um filho, Masha cansada do desamor de Konstantine casa-se com o mestre escola do qual tem também um filho. Mas no íntimo de todos eles os seus amores primeiros perduram. Nina é abandonada por Boris que volta para Irina. Esta continua uma estrela e cada vez mais narcisista. O dono da casa, Sorin, sente-se cada vez pior e chama todos para a sua volta. Todos regressam ao solar e os amores antigos reacendem-se. Os conflitos continuam. O jovem Konstantite pede a Nina que fique com ele, mas esta, apesar de abandonada confessa o seu amor por Boris. Konstantine com a sua arma de caça, retira-se para o seu quarto e dispara-a na boca. Na sala, todos jogam loto. O médico Dorn, talvez o único mais assertivo no meio de tudo isto, diz que deve ter rebentado algo na sua mala, talvez o frasco do éter, e retira-se para ir ver. A mãe de Konstantine fica apreensiva.
Dorn volta e diz, foi isso mesmo que aconteceu e pede a Boris que vá com ele para o ajudar. Mas, Irina revela no seu semblante aquilo que pensa ter acontecido.

Excelente filme, com belíssimos diálogos. Valeu a noite.




quarta-feira, 8 de agosto de 2018

O Fogo (II)




A ignição de incêndios pode ser: de geração espontânea, por descuido ou por intenção criminosa. Julgo que esta última causa será responsável pela maioria dos que ocorrem em Portugal. Por descuido também acontecem alguns, e por geração espontânea muito poucos.
O incêndio florestal, principalmente em matas de pinheiros e eucaliptos, é muito difícil de travar e a orografia, geralmente, não facilita o seu combate. Ir para o meio do fogo com carros e mangueiras é suicídio. Os corta-fogos, por mais que existam, não travam o fogo quando este é empurrado a vento. Autoestradas são atravessadas, rios por mais largos que sejam, também.
Não acredito que a maioria dos incêndios seja obra de pirómanos psicopatas. Acho que nessa maioria há muitas intenções quer de especulação económica, quer políticas.
O incêndio de Monchique, veio provar que não é por falta de meios que se conseguem controlar.
1400 operacionais, 400 viaturas e 19 meios aéreos, não chegaram para o dominar. Acusar governos de inépcia, encontrar culpados, é muito a nossa cultura bacoca. Provar que este governo não aprendeu nada com Pedrógão, é uma solução. Solução essa que já estava preparada de há muito.
Será o governo dos USA responsável pelo incêndio da Califórnia? Crucificar o Tsipras pelo incêndio em Atenas será solução para futuros incêndios? Não me parece, mas o que se vê pela Comunicação Social, Facebook e quejandos é precisamente isso; criar culpados, provocar demissões, obter resultados políticos. Uma tristeza. Dá a ideia que só os governos existentes na ocasião, são culpados. Como tem havido sempre incêndios, todos os governos o serão.
Já se sabe que um incêndio destes é para deixar arder e tomar apenas conta dos perímetros para protecção de povoações, evacuando pessoas e animais das casas no interior, sempre que possível. Depois é tentar levar as chamas para áreas onde não provoquem vítimas.
Mas a melhor solução seria encontrar os pirómanos, quer os mentecaptos, quer os que com isso ganham uns quinhões. Depois ter-se-ia que conseguir sacar desses energúmenos, os nomes dos mandantes. Se isso fosse conseguível, seria de não olhar a atenuantes e penalizar brutalmente tais responsáveis.
Também seria bom regulamentar a nossa CS para que se desabituem de insinuar culpabilidades.
Mandem bombeiros tirar cursos de combater tecnicamente fogos. Dêem aviões à Força Aérea e cursos aos seus pilotos para enfrentarem fogos. Acabem com os contratos milionários com firmas de aluguer de meios aéreos. Já vimos que pouco resolvem, mas que usufruem muito.
Se tudo isto não resultar, deixem arder o país. Se este não presta pode ser que apareça outro mais civilizado.
Somos nós os culpados de lixo nas ruas, não as autarquias. Somos nós os culpados da degradação de edifícios, somos nós os culpados dos fogos. Há no nosso País uma grande falta: civilização e educação. Uma justiça eficaz também faria jeito.


terça-feira, 7 de agosto de 2018

Devaneios...


O regresso

Como será? Estará como recordo? O meu pensamento ainda está lá. Aqui é o meu meio. Aqui vivi, mas as recordações estão ténues. Recebem-me. Abraçam-me. Perguntam-me. Sinto-me apertado. Como eu quero e desejo corresponder. Mas algo mudou. Serei eu? Serão eles? Todos falam. Todos querem saber. Os meus ouvidos ressentem-se. A casa é a mesma. Mais pequena? Tudo me parecia maior antes. Chego à porta da frente. O mureto do terraço demasiado baixo confundiu-me. Caramba, só tinha saído há dois anos. Por que as coisas estão diferentes? Ou serei eu? Sinto o carinho dos que me recebem. Tento corresponder. A cabeça está lá. O pensamento também. Tanto que aconteceu. Tanto que já vivi em tão pouco tempo. Tão longe e tão perto. O mar imenso. A montanha. A praia branca de areia fina. As gentes. O carinho. O conforto. Porquê a mim? Mereço isto? Uma vida diferente. A saudade. O que se vai desvanecendo. A rotina.
O tempo corre, mas devagar. O azar acontece. Tenho de sair. Mudar de novo. Porquê? Haverá uma razão? Não creio. A vida é uma sucessão de factos. Nada a condiciona nada a altera. Apenas factos que se sucedem. Uns bons. Outros maus. Este foi mau. Teremos que o superar. Mas tudo nos muda, tudo nos altera. O conhecimento acumula-se. O saber é bom. O não saber tudo é mau. Não se pode saber tudo, mas pode-se procurar conhecer. Gosto do que vou conhecendo. Abomino o desconhecido. Mas o conhecido também muda. Ou seremos nós a mudar?
Aqui e agora sinto-me mudado. Esquecido? Será a minha mente que retém algo que existe aqui, que eu conheço, mas vejo de outro modo? Deixo-me levar. O amanhã fará de mim algo que eu já sou…

sábado, 21 de julho de 2018

As Arvéloas de Lisboa

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        Descansem, pacientes leitores destas minhas lucubrações bloguistas, que não lhes vou falar das “arvéloas” que povoam diversos lugares de Lisboa e são procuradas pelos pobres e abandonados “machos” que deambulam á procura de “conforto” passageiro. Nada disso, vou mesmo tentar dizer algo sobre os elegantes e pequenos passarocos com esse nome.
A arvéloa, também conhecida por arvela ou lavandisca é um pequeno e esperto passarinho que, antigamente só se encontravam pelos campos. Lembro-me de, muito pequeno, quer no Cacém, onde vivia, quer na Malveira onde passava férias, armado de fisga pendurada no bolso dos calções sempre pronta a actuar tal um “cowboy” de arma à cintura, e montes de ratoeiras  (costelas ou costilos) à volta, acompanhado pelo filho mais novo do Sr. António capador, flagelo de porcos, porcas e outros bicharocos, que perdiam as faculdades reprodutoras ás suas mãos mas, continuando, lá andava eu pelos campos, caçando os incautos passarinhos e, uma das grandes artes, era caçar uma ou mais arvéloas, dado que eram consideradas os pássaros mais difíceis de se deixarem apanhar, quer pelas ratoeiras, de desconfiadas que eram, quer pelas fisgas, não se deixamdo aproximar ao ponto de poderem serem apontadas. Era necessária muita arte e manha para se conseguir e, se por acaso isso acontecia, era uma vitória tal, que durante dias, servia de tema para nos vangloriarmos de tal façanha. Nesse tempo, os rapazes costumavam dizer: “Quem apanha uma arvela é mais esperto do que ela”.
Pois bem, hoje aqui na cidade dei por uma arvéloa, no seu passo corrido com a sua cauda abanando para baixo e para cima, passeando tranquilamente no passeio empedrado, à minha frente tal qual um manso pombo ou um pardal citadino. Lembrando-me dos tempos de garoto, corri o olhar pelas redondezas á procura do seu par, dado que estes pássaros andam sempre aos casais. E, lá estava o companheiro, ou companheira  a uns bons metros de distância. Deram um peque voo, passando com àvontade em frente aos carros, indo pousar num grande relvado com algumas oliveiras. Já as tinha visto por aí nos jardins, só que num passeio a uns 50 ou 60 centímetros dos meus pés foi a primeira vez.
Actualmente, Lisboa apresenta uma fauna muito diversificada com imensos animais que no meio do bulício, se sentem mais protegidos aqui do que no campo por ninguém lhes dar caça. Até já aves não originárias do país, por cá deambulam tais como alguns psitacídeos que já chilreiam por todo o lado. Inclusivé, alguns falcões, como o vulgar peneireiro, fazem ninho nos alegretes das janelas nos vasos de flores.
E pronto, os pequenos Motacilídeos serviram hoje de tema a mais um “post” e avivaram recordações de infância feliz. Obrigado arvéloa citadina…
                                                           

sábado, 7 de julho de 2018

A Livraria (filme)



Escolhi o filme por um site de cinema. No meio de uma série de filmes, uns de acção (estou farto disso), outros de comédia (falta-me a paciência), outros tipo dramalhão de fazer chorar as pedras da calçada (já não há pachorra), acabei por me concentrar num argumento que me pareceu ser algo de sério e que me despertou interesse por ter algo a ver comigo, livros. A Livraria é um filme de mulheres que retracta mulheres. Mulheres que sabem o que querem da vida e lutam por isso. Infelizmente nem todos os quereres estão livres de invejas e de más intenções. É um filme relatado em ritmo lento e em ambiente sóbrio, algo tristonho, em que o clima carrega um pouco o ambiente, mas por outro lado descontrai pelo sossego.
O tema é baseado no livro do mesmo nome de autoria de uma escritora britânica Penelope Fitzgerald. A realização é de uma Catalã já consagrada, Isabel Coixet. A produção é alemã, reino unido e espanhola.
Uma mulher, ainda nova, mas viúva de guerra há dezasseis anos, Florence (Emily Mortimer, excelente papel), tem o sonho de abrir uma livraria numa casa velha de uma localidade meio perdida na costa britânica. Esta vontade, algo temerária, pois naquela terra pouco ou nada se lê, vai contundir com as pretensões da mulher rica lá da terra, casada com um general reformado, que se arma em, e acaba por ser, a figura máxima do burgo a quem todos prestam vassalagem. Uma atitude daquelas poderá colocar em causa a sua supremacia e, assim, move todas as suas influências para boicotar o empreendimento, contrapondo que aquela velha residência, desabitada há tantos anos, seria muito melhor aproveitada como um centro cultural e de artes. Esta atitude da detentora do poder, leva tudo e todos, incluindo o banqueiro que de início  apoia a iniciativa, contra a vontade de Florence em levar os habitantes ao hábito da leitura.
Florence, a nossa personagem central, alheia a tudo isso, continua com o seu ideal e, apoiada pelo único habitante que lê, um misantropo que nunca sai e vive numa velha casa, tipo castelo, consegue fazer prosperar o seu negócio e levar as pessoas a lerem e a comprarem livros, mostrando e provando que estes abrem as mentalidades e dão força e coragem aos leitores. Florence acaba por dar emprego em “part time” a uma rapariga adolescente, que mais tarde percebemos ser a relatora da história, a quem se começa a dedicar. Mas, a inveja dos poderosos é forte e Florence, lutadora com os seus ideais, mas incapaz de criar guerras e fazer frente a opositores, vê-se obrigada a abandonar o seu ideal, apesar da ajuda do seu apoiante, Edmund Brundish, por quem começa a sentir uma certa atracção. O final é esperado e surge sem sobressaltos tal como começa o filme…
O seu aliado, tenta lutar a seu favor, mas um estúpido enfarte faz parar a iniciativa. Florence renuncia à luta, mas a sua jovem seguidora, não tão adepta das boas vontades, dá uma inesperada finalidade ao problema.
O filme acaba como começou, em sossego e sem conflitos. O espectador habituado que está à violência e aos finais em que o bem vence o mal pela força, fica um pouco expectante, mas sereno e descansado.
De salientar as excelentes interpretações de Emily Mortimer no papel de Florence, Honor Kneafsey, a sua pequena ajudante¸ James Lance num papel algo caricato como adulador, mas efeminado e o sóbrio e “very british” Bill Nighy como Mr. Brundish. Patricia Clarkson dá-nos uma óptima opositora, irritante na sua soberba, mas sempre elegante na sua aparência.
Valeu a pena.

sábado, 30 de junho de 2018

O Perfume




Há uns anos vi um filme que me impressionou bastante. O Perfume foi uma película bem esquisita, mas que nos fica na memória como algo que se cheira. As imagens mostram quer o fedor mais horroroso, quer o incenso mais excelente. Sabia que se baseara num livro, mas nunca me tinha dado ao cuidado de o procurar. Uns dias atrás, passei pelo alfarrabista da Av. Do Uruguai e vi numa banca de livros usados, a um euro, O Perfume, sem capa, sem folhas iniciais nem finais. Comprei-o. Cheirava a livro usado e a pó.
Em casa fiz-lhe uma capa em cartolina azul e desenhei-lhe um aspergedor de perfume, coloquei-lhe o título e o nome do autor, um tal Patrick Suskin, alemão, de quem nunca tinha ouvido falar. Lembrei-me que o meu filho me tinha dito que o livro era horroroso e que nem sequer o tinha acabado. Despertou-me a curiosidade e levei-o para férias na praia, a minha arejada biblioteca. Acabara de ler um livro histórico de um amigo meu e resolvi mudar de tema. Li-o em 3 dias.
Este livro é realmente um poço de odores. A descrição dos cheiros da cidade de Paris no século XVIII, das pessoas, dos mercados, das oficinas de curtumes, das mulheres, dos homens, sendo eles da nobreza, burguesia ou do povo, é tão bem feita que o nariz do leitor acaba captando-os a tal ponto que se sente enojado só com as palavras.
A personagem principal, Jean Baptiste Grenouille, nasce duma vendedeira de peixe no mercado de Paris que o pare de pé, para baixo da bancada e para cima de todos os desperdícios de peixe ali acumulados, com um pivete capaz de matar qualquer ser vivo. A mãe preparava-se para abandonar ali o filho como já tinha feito a outro três ou quatro, quando é notada pelos presentes e corrida a pontapé acaba estatelada no meio da rua, presa, acusada de infanticídio e decapitada. Grenouille, absorve todos os odores da porcaria onde nasce e, por estranho que pareça, ele próprio não tem qualquer odor.
Acaba em várias amas, instituições, asilos e conventos, mas todos se querem livrar dele. Cresce e, o seu nariz privilegiado, capaz de absorver odores a léguas, leva-o a empregar-se num perfumista que à sua custa floresce e se torna o melhor e maior perfumista de Paris. Mas Grenouille tinha um sonho, fazer o melhor perfume do mundo, um perfume do amor. O cheiro de raparigas linda e virgens leva-o a persegui-las e assassiná-las. Percorre várias terras de França e assassina vinte e seis jovens, cada uma mais bela e bem cheirosa do que as outras. Acaba preso e acusado recebendo uma sentença de morte por crucificação com quebra de membros e deixado morrer no máximo sofrimento. No dia da execução, Grenouille sai da carroça dos condenados aspergindo-se com o seu perfume. Dez mil pessoas assistiam à morte do monstro assassino e essas dez mil pessoas rendem-se ao odor desse perfume do amor, vendo, no até ali monstro assassino, um cândido ser exalando algo tão maravilhoso que tinha que ser liberto e perdoado. Então dá-se um fenómeno extraordinário. Quer homens quer mulheres, libertam-se dos seus trajes e, inebriados, entregam-se a jogos de sexo em plena praça de execução e nos edifícios em redor. Grenouille foge e pensa deixar a cidade de Grasse onde era a execução. Ao tentar esconder-se entra no cemitério onde à noite assassinos, prostitutas, vigaristas e vagabundos se acoitam. Toda esta gente fica inebriada de tal modo pelo perfume de Grenouille que o rodeiam, abraçam, agarram, rasgam, desmembram, cortam em pedaços comendo-o.
Triste fim para tal nariz. E agora perguntam-me: “Isso é livro?” E eu respondo. É e bom. Acaba por ser um manancial de sentimentos, frustrações, pensamentos, ganância e agonias de uma sociedade francesa do século XVIII. Valeu a pena. Se o lerem, tenham convosco à mão um bom perfume.

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Algumas palavras sobre o livro de Valentino Viegas “As Teias da Primeira Revolução Portuguesa”



Escrever um livro histórico não é para qualquer um e, fazê-lo em forma de romance é-o ainda menos. Mas o meu amigo Valentino Viegas não é qualquer um. Historiador doutorado, deve ter passado grande parte, da sua vida e do seu tempo, feito rato de bibliotecas e arquivos metendo o nariz em tudo o que é registo e documento para nos relatar com a maior veracidade possível “As Teias da Primeira Revolução Portuguesa”, dando-lhe ao mesmo tempo uma visão quase real do que teriam sido os diálogos e conversas de todos aqueles homens que foram responsáveis pelo facto de a coroa portuguesa não ter caído em mãos castelhanas após a morte de D. Fernando e durante a regência de sua mulher D.ª Leonor Teles (1383/1385). É pois, através de uma linguagem fácil que seguimos todas as reuniões dos homens, quer da nobreza quer do povo, que levam D. João, Mestre de Avis, a liderar várias acções, que começando na morte do Conde Andeiro, terminam nas Cortes de Coimbra com a aclamação de D. João, Mestre de Avis, a rei de Portugal.
Através deste livro romanceado ficamos a saber que a causa de toda a teia revolucionária residiu no facto de Portugal estar em vias de perder a independência nacional, por ainda não ter nascido o filho do rei D. João I de Castela e de D. Beatriz, filha do falecido rei D. Fernando e da rainha D. Leonor Teles que, depois de gerado, seria o futuro rei do território português, conforme determinavam as cláusulas do contrato de casamento de Salvaterra de Magos. O rei vizinho, como desejava ocupar o trono português, já se intitulava rei de Portugal, por lhe permitir o clausulado daquele contrato. A sua vontade era fazer letra morta daquele tratado celebrado entre Portugal e Castela.
O livro revela também como a rainha D. Leonor, que pretendia concentrar em si todo o poder, tinha conseguido que os infantes D. João e D. Dinis, potenciais candidatos ao trono português, filhos do rei D. Pedro e de D. Inês de Castro, se exilassem em Castela. Por sua vez, o amedrontado D. João, Mestre de Avis, igualmente filho do rei D. Pedro, contudo, muito menos influente que aqueles dois meios-irmãos, alegando defender a sua vida mata o conde Andeiro, amante da rainha, acelerando o complexo e imprevisível movimento revolucionário.
Nesta intensa trama, o cidadão Álvaro Pais, alguns nobres e homens do povo, como o tanoeiro Afonso Anes Penedo e o sapateiro Estevão Domingues, conseguiram, com a sua liderança e intervenção, mudar o rumo dos acontecimentos fazendo com que nobres, clérigos, representantes concelhios e homens de leis, como o doutor João das Regras, tomassem as decisões que mudaram o curso da história.
Tudo isto nos é mostrado através de uma linguagem livre e directa, completamente entusiasmante que nos leva, parágrafo atrás de parágrafo, até ao fim da história que é de nós conhecida na sua essência, mas não no seu pormenor. De salientar algumas similitudes entre esta revolução e a de 25 de Abril de 74.
A propósito de linguagem livre, achei divertidíssimo que Valentino Viegas pusesse na fala de Afonso Anes Penedo, a frase: “… pela minha parte, tive o cuidado de reanalisar o filme posto a correr pelas ruas e ruelas da capital ...” como se em pleno século XIV já fosse possível utilizar filmes. Liberdades de escritor que o autor certamente me perdoará a ousadia de referir.
Valentino Viegas sempre se interessou pela história e já a isso se referia em livros anteriores, nomeadamente em “A Morte do Herói Português”, livro que escreveu sobre a sua experiência de guerra em África, onde aliás teve comportamento extraordinário que lhe valeu uma cruz de guerra. 
Sinto-me honrado em ser amigo deste nosso historiador/escritor, natural de Goa, que optou por viver em Portugal após a invasão daquele território e que muito veio valorizar o nosso panorama cultural.




sexta-feira, 8 de junho de 2018

Incongruências.


Já alguma vez te interrogaste sobre as incongruências do cristianismo?
Por que Jesus, redentor dos pecados de todos os humanos, só transmitiu as suas ideias ao povo da Judeia (Palestina)?
Por que Jesus não veio a todo o mundo? Por que não andou pelos 5 continentes? Por que não esteve na Arábia? Por que não andou pela Ásia? Se seu pai, o deus omnipotente e omnipresente, o enviou à terra para transmitir a sua palavra, por que se limitou àquele pedaço de terra tão pequeno e tão inculto?
Já te perguntaste que se não fossem os Romanos, hoje ninguém saberia nada de Jesus?
E por que os Romanos, que segundo as escrituras (Novo Testamento) o crucificaram, só estabeleceram a sua religião 325 anos após a sua morte?
Por que os Evangelhos só foram escritos setenta e tal anos após a sua dita ressurreição? E quem os escreveu?
Que idade teriam os seguidores de Jesus, na sua época, quando os evangelhos foram escritos?
Será que indivíduos com perto de 90 anos, ou mais, estariam em condições de relatar fielmente aquilo que tinham visto e ouvido?
Por que os evangelhos são segundo Mateus, Marcos, Lucas e João? Por que não os escreveram eles em vez de os relatarem? Por que foram escritos em Grego e não em Aramaico que era língua da região onde Jesus terá nascido? Por que há tantos evangelhos considerados apócrifos?
Por que a história romana, na época de Pilatos, nada relata sobre Jesus, o seu julgamento e a sua condenação?
Por que os romanos, no tempo de Teodósio, impuseram a religião cristã, proibindo todas as outras, impondo a destruição e fecho de todos os templos pagãos e determinando que a religião oficial seria a de Cristo?
Por que mais tarde, na idade Média, a religião Cristã foi imposta pela força, sendo mortos e supliciados os hereges?
Já te perguntaste se tivesses nascido no Nepal serias Budista e não cristão?
Já te perguntaste quem relatou o nascimento de Jesus? Como se veio a saber dos reis magos? E magos porquê? Quem eram? De onde vieram?
Segundo as escrituras (Novo Testamento) Jesus nunca falou no seu nascimento. Por que Jesus só começou a sua missão aos 30 anos?
Que Jesus fez até essa idade? Limitou-se a construir mesas e cadeiras?
Para uma missão na terra, redentora de pecados humanos, 3 anos não será pouco?
E por que cada vez os humanos pecam mais? Será que só serão perdoados após a morte?
Por que Jesus nada escreveu? Seria analfabeto? Ou não valeria a pena escrever para um povo que não sabia ler e escrever?
Haveria escola lá ao pé da oficina do José carpinteiro?
E por que falava por parábolas que ainda hoje necessitam ser explicadas, quanto mais naquele tempo e para aquele povo?
É muita pergunta sem resposta. Meditem nisto.



sábado, 12 de maio de 2018

Uma tarte de cascas de batata.



Ao lerem este título, os meus amigos leitores destes pobres artigos aqui do meu blog e que não sejam muito cinéfilos, devem dizer: “Este tipo pirou de vez”.
Normalmente, quando me apetece ir ao cinema, não perco muito tempo com a escolha do filme a ver. Vou a Net, ligo para o “site” do Corte Inglês (fica-me relativamente perto, tem 15 salas e não pago parque), leio as sinopses e vejo os “traillers”. Esta 6ª feira 11 de Maio, ao fazê-lo, deparei-me com um título a que achei uma certa graça. Guernsey – Sociedade Literária da Tarte de Cascas de Batata”. Curioso, fui ler a sinopse e pareceu-me que o argumento teria algo de interessante. Os outros filmes ou já os tinha visto, ou não me disseram nada de especial. Fomos, pois, eu e a mulher, ver o filme em questão e, digo-vos que não me arrependi por várias razões:  
  
1. É cinematografia inglesa.
2.  É sobre livros.
3.  É sobre relações humanas.
4. É sobre sentimentos.

Não sendo nenhuma obra de arte ou um filme excepcional, deixa no espectador a ideia de que vale a pena ajudar pessoas a ultrapassarem sentimentos reprimidos, exorcizando os seus fantasmas através da doação total daquilo que têm de melhor, amor e compreensão.
Começa por eu nem sequer saber da existência de uma ilha britânica, na mancha, junto à costa de França e que esse território tinha sido ocupado pelo exército alemão durante a 2ª guerra mundial. Mas vamos ao resumo da história:
No pós-guerra em Londres (1946) uma escritora/jornalista, Juliet Ashton, não muito famosa, mas que acabara de ter algum sucesso com o seu primeiro livro, recebe uma carta de um agricultor de Guernsey, chamado Dawsey Adams, na qual lhe revela que tem um livro que lhe pertence ou outrora lhe pertenceu por conter uma dedicatória que lhe é dirigida pelo autor. Curiosa, inicia uma série de correspondência com Dawsey e com várias pessoas da ilha que lhe revelam fazerem parte de uma sociedade literária, que no fim é um grupo que se reúne a miúde para lerem livros em conjunto. O nome nasce devido a um episódio passado durante a ocupação ao serem apanhados em incumprimento da hora de recolher, por terem estado reunidos a comer um porco assado que sonegaram à rapacidade das tropas alemãs, acabam por justificar que estavam apenas a ler numa sociedade. Tendo-lhes sido perguntado que sociedade era essa, um dos intervenientes, que tinha feito e levado uma tarte de apenas com cascas de batata (pouco mais havia para comer), mostra-a e tenta dá-la a provar aos militares. Estes recusam e acabam por deixar seguir o grupo. Pelos vários depoimentos que vai obtendo, Juliet começa a interessar-se e a pensar que aquela história poderia muito bem ser o argumento do seu próximo livro. De tal maneira se deixa envolver pelo assunto que resolve visitar aquela ilha deixando para trás os seus anteriores planos com muita pena do seu editor e do seu riquíssimo namorado americano.
Na sua permanência na ilha desenvolve uma relação de amizade com toda a comunidade, principalmente com os membros da Sociedade Literária da Tarte de Cascas de Batata. Mas dentro dessa sociedade há fantasmas nas mentes de alguns por casos passados durante a ocupação, que as pessoas há muito escondem, mas que a pouco e pouco vão revelando.
Tudo o que Juliet ali vive, entra de tal modo na sua vontade de ajuda que a leva a constituir laços de grande amizade com todos os intervenientes e até de amor que a pouco e pouco começa a sentir por Dawsey, mas ao qual tenta não ligar em demasia. Mas tudo isso vai modificar a sua vida. Na ilha conhece pessoas boas, pessoas más, alguma inveja e também traição. E mais não digo para não tirar o interesse a quem queira ver o filme. Digo-vos que dei por bem empregue o tempo que levei a vê-lo.
O elenco não é muito conhecido, dado a nossa grande tendência para os filmes americanos, mas todos excelentes actores, principalmente a protagonista, Lily James, que nos transmite uma simplicidade de carácter com uma profusão dos mais belos sentimentos. A realização é de Mike Newell que já nos tinha dado filmes como “Quatro Casamentos e Um Funeral", "Harry Potter e o Cálice de Fogo", "O Amor em Tempos de Cólera", "Grandes Esperanças", etc.
Vão ao cinema ou aproveitem-no mesmo em TV quando aparecer. Vão gostar.


quarta-feira, 25 de abril de 2018

Escrito a pedido



Uma das coisas que mais me custa é escrever a pedido. Normalmente escrevo quando me dá na gana e sobre os mais diversos assuntos que me surgem de repente. Dizerem-me assim: “Escreve qualquer coisa”, dá sempre asneira, fico embutido, penso em montes de assuntos e nada sai. Hoje é um desses dias. Apesar de ser 25 de Abril, assunto que daria pano para mangas, mas não consigo colocar no word quaisquer palavras que dignifiquem o dia. Mas pediram-me, e quem me pediu merece algo. Há um local perdido no mundo, lá nos confins dos mares, que me é querido e também a quem me pede algo escrito hoje. Sobre Timor já quase esgotei a minha lembrança e imaginação, mas aquela terra enraizava-se de tal forma em nós, que há sempre uma imagem, lembrança ou recordação que talvez ainda não tenhamos passado ao papel. Tinha 22 anos quando aportei naquela ilha. Ao olhar do navio que ali me levara, apenas uma linha era visível e não conseguia ver o casario. Claro que a minha imaginação me fez vir à memória cenas das aventuras lidas, como as do capitão Morgan ou do corsário Sandokan, e já me via a desembarcar no meio de povos indígenas que me olhariam com espanto. Ao aproximar-me mais, lá consegui vislumbrar um farol com algumas casas de volta e também muitas construções que me pareceram mais palhotas do que casas de habitação. Da escada do portaló tive de saltar para uma embarcação pequena que me deixou num tabuleiro mal-amanhado construído em cima de bidons. Desse tabuleiro seguia uma ponte também suportada por bidons que se prolongava por terra. Fardado de branco e com espada, aprontado para a cerimónia de apresentação no Quartel General, não era propriamente o melhor atavio para aquele equilíbrio instável. E o insólito aconteceu. Os meus, impecavelmente limpos com alvaiade, sapatos brancos, de sola ainda quase por estrear, escorregaram nos limos da ponte e estatelei-me ficando com a celestial farda manchada de verde no fundo das calças. Não sou nada supersticioso, mas talvez tenha sido premonição para o acidente que quase 6 meses depois me partiu uma perna. Na apresentação, lá tive que me desculpar pela sujidade, mas o Comandante Militar limitou-se a sorrir dizendo-me que já havia um projecto para iniciar a construção de um porto acostável. Esse porto iniciou a sua construção estava eu a terminar a minha comissão e de regresso à Metrópole.
Não começou bem a minha estadia em Timor, mas digo-vos que, apesar do tal acidente que me partiu a perna, foi o local onde mais gostei de ter estado e mais recordações me deixou. Clima tropical, vegetação exótica, paisagens de montanha, praias lindas e excelentes, fauna variada e paisagens submarinas admiráveis. Mas foram as gentes de Timor que mais me tocaram, apesar de ter chegado numa época em que uma pequena sublevação ia estragando o ambiente. Passada que foi essa situação, felizmente resolvida sem grandes traumas, a paz voltou àquela ilha paradisíaca e tudo voltou ao normal. Entre a população civil fiz grandes amizades e tive também amor. Ao recordar tudo isto parece que os 40 anos passados, foram ontem.

terça-feira, 24 de abril de 2018

Quem é Jesus?


— Ó mãe, quem é Jesus?
— Jesus, meu filho, é o filho de Deus.
— Ó mãe, e quem era a mãe de Jesus?
— A mãe de Jesus era a Virgem Maria.
— Então essa Virgem Maria era a mulher de Deus.
— Não meu filho. Deus não tinha mulher. A virgem Maria era a Mulher de José que era carpinteiro.
— Ah! Era divorciada.
— Onde fostes buscar essa, claro que não era.
— Então teve um filho de Deus, era casada com José e não era divorciada? Coisa esquisita. Aqui a nossa vizinha também teve um filho que não era do marido e lixou-se. Levou uma carga de porrada e foi expulsa de casa.
— Ó filho, tu um dia vais compreender isso. Deus é todo poderoso. Tem o dom de poder fazer um filho na mulher que lhe apetecer.
— Ah! O Pai no outro dia também disse à vizinha que gostava de ser o pai do filho dela.
— O teu pai disse isso? Já vai ver com quantos paus se faz uma canoa.
— Para que precisa o pai de uma canoa? Ouvi dizer que os filhos se faziam na cama, não é verdade?
— Olha! Estas conversas não são para ti. Um dia vais compreender.
— Ó mãe, porque não compreender já? Ficavam as coisas já esclarecidas.
— Tens razão rapaz. Pergunta que a mãe explica.
— Bem! Já sei que Deus fez um filho á virgem Maria. Ó mãe o que é virgem?
— Olha lá! Lá na escola ainda não te ensinaram o que é uma floresta virgem?
— Já. É uma floresta onde o homem nunca entrou.
— Pois é. Bem explicado. Com as mulheres é a mesma coisa.
— Ah. Então foi por isso que a Marina aqui do lado levou uma carga de porrada do pai. Parece que era virgem e deixou de ser. E eu até sei quem foi que lá deve ter entrado. Foi aquele tipo que é mecânico na oficina aqui atrás.
— As coisas que tu sabes. E depois, houve algum azar?
— Parece que sim. Acho que vai ter um bebé. Ó mãe o Francisco é Deus?
— Que disparate filho. O Francisco é um homem.
— Ó mãe e deus não é homem?
— Ai rapaz, dás.me cabo da cabeça. Claro que Deus é Deus e não é homem. Está acima dos homens.
— Então o Francisco não percebe nada disso. Deus fez um filho à Maria que continuou virgem, o Francisco fez um filho à vizinha e ela não continuou. Ouvi a mãe a gritar: “Perdeste a virgindade filha. E agora o que vai ser de ti?”
— Ó mãe?
— Diz filho.
— O José bateu na Maria?
— Claro que não. O José era santo.
— Santo? Acho que era santo e parvo. Faziam filhos na mulher dele e ele não se importava. Acho que era parvo ou muito distraído.
— Ó filho. Vê se compreendes. Deus mandou a virgem conceber um filho que no fim era ele mesmo para poder vir à terra comunicar o que ele queria que fosse ensinado.
— Porque não veio ele próprio?
— Ai filho, caramba! Deus é espírito e espíritos não andam por aí a falar com as pessoas.
— Mas a minha professora de catequese disse que Deus falou com Abraão e com Moisés. Se falava com uns porque não com todos?
— Ai rapaz, dás-me cabo da cabeça. Isso foi muito tempo atrás. Parece que Deus achou que devia ser um homem a falar com os outros homens.
— Afinal Jesus era homem ou Deus?
— Era Deus feito homem.
— Que confusão. E afinal ouviram-no ou não?
— Uns ouviram-no outros não. Até houve os que não acreditaram nele e mataram-no. Mas ele deixou-se matar para nos salvar.
— Não percebo. Como nos salvará depois de morto?
— Ó filho. Acho que vai interceder lá em cima pelas nossas almas se formos bons.
— Ó mãe. Temos de ser bons para que Jesus tome conta das nossas almas?
— Claro filho. Se formos maus vamos para o Inferno e lá está o Diabo para nos supliciar.
— Então o Diabo é mau e Jesus não o leva para ao pé dele.
— Pois é filho. Bons para ao pé dos bons e maus para ao pé dos maus.
— Ó mãe, podiam fazer isso para que ficassem metade bons e outra metade maus, até podia ser que os bons tornassem os maus menos maus e quando todos estivessem bons já Jesus tomava conta de todos.
— Olha filho. Não sei que dizer-te. Tens alguma razão. Naturalmente até será assim.
— Só não percebo porque é que Jesus sendo Deus ou filho dele, ou lá o que era, tenha tido de morrer para nos salvar. Sendo Deus podia ter feito tudo isso enquanto era vivo.
— Mãe. Quando o pai chegar vou fazer-lhe as mesmas perguntas a ver se ele me explica melhor.
— Quem lhe vai pedir explicações vou ser eu. Sempre quero ver o que me vai dizer sobre o querer fazer filhos à vizinha.
— Olha mãe. Se o pai conseguir é porque é Deus.






domingo, 11 de março de 2018

Num quarto de hospital


O Homem estava em fase terminal. Os médicos já não acreditavam na sua recuperação. Estava para ali já colocado num quarto, ao lado de outro que, com o mesmo, só esperava o fim. Revia toda a sua vida e pensava que tudo tinha sido estranho. Passara o tempo a pensar na mulher e nos filhos. De casa para o trabalho, do trabalho para casa, sem tempo para a diversão, e mesmo que o tivesse tido, os proventos não lhe dariam azo a isso. Tanto que almejara, tanto que queria ter feito e dado aos outros e nada tinha conseguido. E agora aquela maldita doença que o apanhara. O cancro é muitas vezes curável, mas outras não. O dele tinha sido galopante e não lhe dera tempo para nada. Hospitais, consultas e tratamentos, tinham-no feito andar numa fona e afinal para quê. Também, afinal, para quê mesmo? A família ficaria bem melhor sem ele. Neste momento já era um encargo e bem pesado. Poderia ser até que a mulher ainda conseguisse encontrar alguém. E que esse alguém lhe pudesse dar a vida que merecera e bem melhor mereceria agora. Tanto pediram a Deus, nas suas orações e durante as missas dominicais, para terem saúde, algum conforto, harmonia e saúde e afinal… Mas Deus continuava no seu pensamento. Fechava os olhos e via Deus. Não era bem uma pessoa, talvez uma forma em nuvem esbatida e esfumada, que de vez enquanto se transformava na figura de Jesus Cristo, seu Filho. Eram os dois Deus e a Sua vontade seria sempre única, fosse tomada por um ao outro. Rezava baixo, sempre na esperança de ser atendido. E porque não? Fora bom homem, bom marido, bom pai, bom empregado. Porque não ser atendido por um Deus a quem sempre se dirigira nas horas más e a quem agradecera nas horas boas. O seu companheiro de quarto agonizava. Os ruídos que lhe saíam da garganta já anunciavam a morte. Faleceu dois depois.
O médico vinha vê-lo todas as manhãs. Chegava, cumprimentava-o perguntando: “Como vai isso?” Como se ele não soubesse. Nessa manhã demorou mais um pouco. Chamou a enfermeira e fez-lhe algumas perguntas em voz baixa. Ao sair disse-lhe:
— Senhor António, tenho boas notícias. Surpreendentemente, os últimos tratamentos produziram algum efeito. Há uma esperança. Amanhã vamos continuar. Tenha fé.
Sorriu-lhe. Fé tinha ele, mas esperança muito pouca. Pelo sim pelo não virou os olhos ao céu e agradeceu ao seu Deus. Três semanas depois estava com alta. Regressou a casa e foi recebido com júbilo. Tinha de voltar ao hospital para controlo e exames de confirmação. Num desses dias, passou pela maior enfermaria da ala oncológica. Muitos dos doentes eram praticamente cadáveres vivos. Enquanto esperava para entrar no gabinete médico, junto ao balcão das enfermeiras, ouviu uma a dizer para a outra que; “hoje já foi o segundo. Com dois que foram ontem já foram quatro para a morgue”. O nosso homem começou naquele momento a tomar consciência de uma realidade. Não fora só o seu companheiro de quarto. Todos os dias morriam muitos doentes com a mesma doença. Ele fora um abençoado. Nesse momento perguntou: “Porquê ele? Porque não aqueles todos também? Não teriam Deus? Seriam ateus? Seriam assim tão pecadores? Porque Deus não lhes perdoara? Será que ele era mais merecedor?
Então aí ele viu o porquê. Não era ele o merecedor. Eram os outros. Deus gostava mais deles e por isso levou-os para ao pé de Si. Afinal eles é que estavam destinados à companhia divina. Ele não era merecedor, por isso teria de continuar a mourejar. E aí ficou triste. Podia estar agora junto do seu Deus e ele não o quisera. Porquê se tão bem sempre se tinha portado? Não merecia isto…
À saída foi atropelado por um autocarro.



sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Popol Vuh


Tenho um parente, homem culto e viajado, que sempre que se lhe apresenta algo sobre deuses e religiões, se lembra de mim. Há pouco tempo, viajando pelas regiões dos Maias, deparou-se-lhe algo chamado “Popol Vuh” que, em dialecto “quiché”, originário da região dos Maias, parte da Guatemala e Sudeste do México, significa “Livro da comunidade”, que tinha como base a concepção e a criação do mundo. Este documento foi traduzido para o castelhano pelo frei Francisco Ximénez em 1701. Acho que foi ditado em língua “quíchua” e escrito depois em castelhano. Encontra-se hoje em Chicago, na Biblioteca Newberry.
Esta tradução, feita por cristãos, acabou por puxar a brasa à "nossa" sardinha e ficou totalmente adulterada na sua concepção original.
Consultada a Whikipédia verifica-se que o Popul Vuh definia 4 idades do mundo:
1ª idade:
No início havia calma, silêncio e imobilidade.
Os deuses decidem, juntos, criar o homem. Antes disso, criaram as árvores, a vida e os animais. Os últimos, apesar de terem sido dotados de voz, não foram capazes de invocar os deuses, e por isso foram punidos, que passariam a ter suas carnes servidas de alimento.
Foi criado então, do barro, o homem, mas estes se desmanchavam facilmente e eram incapazes de louvar os deuses, que em consequência destruíram-nos.
2ª idade:
Os deuses consultaram os adivinhos Ixpiyacoc e Ixmucané para criar um homem que pudesse invocá-los, e a indicação obtida foi fazê-los de madeira. Os homens de madeira povoaram a terra, mas não possuíam sequer alma ou entendimento e, portanto, não podiam invocar seus criadores. Foram destruídos com um dilúvio, e os sobreviventes tornaram-se macacos.
3ª idade:
Epopeia dos Gêmeos. Os Gêmeos tornam-se o Sol e a Lua.

4ª idade:
Criação dos homens de milho, que se tornaram a actual humanidade.
Estes possuíam percepção do mundo e invocaram seus criadores que lhes concederam limites mortais para que não ameaçassem a soberania dos deuses.
Os deuses focados no Popul Vuh eram:
Quetzalcoatl ou Gucumatz. Deus central e criador
e:
Ixpiyacol e Ixmucané, como adivinhos e guias espirituais.  Mas havia mais,  que para o efeito não interessam.

O interessante de tudo isto é que o, já referido, Frei Francisco Ximénez, ao traduzir o texto tratou de o adaptar à religião Cristã ao ponto de referir que as almas após a morte se dividiam em duas indo metade para o seio de Cristo (Deus) e a outra metade para o deus Maia (Quetzalcoatl).
Claro que um ateu como eu não pode deixar de rir a bandeiras despregadas por ver que os homens, quando se trata de religiões, tentam levar os outros a admitir que as deles são também boas, mas não totalmente porque a “nossa” a “verdadeira” é melhor. Vejam o ridículo de tudo isto.
Mais uma vez fica provado que os homens criaram os deuses (todos) à sua imagem e semelhança.

Agradeço ao meu primo, por afinidade, a oportunidade que me deu para mais este escrito. Viaja António, que a minha “cultura” agradece.