quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O Nada

Hoje não me apetece escrever. Não tenho motivo, não tenho paciência, não tenho nada. O nada às vezes é óptimo. Dá para preguiçar, ler, pensar, passear e para dormir. Estou sem sono não durmo, estou sem paciência não escrevo, estou com preguiça não passeio. Enfim, um cérebro totalmente desocupada e apanhado pela ausência ou “enchimento” de coisa nenhuma. Vou ao computador e vejo as msgs a entrar, uma duas, três, ena tantas… Já ando nisto há muito, as msgs são conhecidas e algumas repetidas. Parece-me até impossível como é que tanta gente ainda não as conhece. Pelo número de vezes que já aqui entraram custa a crer que tipos que, como eu, que já cultivam este “vício” desde há muito, nunca as tenham recebido. Talvez andem esquecidos ou gostem tanto delas que não são capazes de as apagar sem as reencaminhar. Lá me aparece uma ou outra inédita para mim. Repasso aquela a que acho graça ou que tenha algum conteúdo sério. A outra não merece repassar. Dei comigo a olhar o monitor e a não ver nada. Sacudi a cabeça e abri um word. Nada me abre a mente, mas já que tenho o word aberto vou escrevendo isto. Que não é nada. Já que não tenho nada, escrevo sobre o nada. O que se pode escrever sobre o nada? Acho que nada. Está bem, pronto! Vou tentar. O nada é apenas uma palavra e as palavras podem ter vários significados;
- Que fazes hoje? - Acho que nada. - Que faz o peixe? - Nada.
Às vezes substitui interjeições fortes; - Nada! (p….) Aleijaste-me! Outras vezes: - Vais sair? – Qual nada! – Foste para a cama com ela? – Fui. – E então? – Nada!
De qualquer maneira e seja qual for o contexto, o nada é quase sempre igual a zero.
A propósito do zero! Aí está uma forma de escrever algo sobre algo que é nada. Será?
- Quanto dinheiro tens? – Zero. Aqui está! Dinheiro zero = a nada. – Quanto dinheiro tens? – 10 Euros. Aqui está um zero que afinal já não é o mesmo que nada. Quem inventou o zero? Parece que foram os árabes. Ou terão sido os hindus?
Fomos à NET:
“ … aproximadamente no ano 500, textos gregos usavam o ômicron, que é a primeira letra palavra grega oudem (“nada”). Anteriormente, o ômicron, restringia a representar o número 70, seu valor no arranjo alfabético regular.
Talvez o uso sistemático mais antigo de um símbolo para zero num sistema de valor relativo se encontre na matemática dos maias das Américas Central e do Sul. O símbolo maia do zero era usado para indicar a ausência de quaisquer unidades das várias ordens do sistema de base vinte modificado. Esse sistema era muito mais usado, provavelmente, para registrar o tempo em calendários do que para propósitos computacionais. 
É possível que o mais antigo símbolo hindu para zero tenha sido o ponto negrito, que aparece no manuscrito Bakhshali, cujo conteúdo talvez remonte do século III ou IV d.C., embora alguns historiadores o localize até no século XII. Qualquer associação do pequeno círculo dos hindus, mais comuns, com o símbolo usado pelos gregos seria apenas uma conjectura.  
Como a mais antiga forma do símbolo hindu era comumente usado em inscrições e manuscritos para assinalar um espaço em branco, era chamado sunya, significando “lacuna” ou “vazio”. Essa palavra entrou para o árabe como sifr, que significa “vago”. Ela foi transliterada para o latim como zephirum ou zephyrum  por volta do ano 1200, mantendo-se seu  som mas não seu sentido. Mudanças sucessivas dessas formas, passando inclusive por zeuero, zepiro e cifre,  levaram as nossas palavras “cifra” e “zero”. O significado duplo da palavra “cifra” hoje - tanto pode se referir ao símbolo do zero como a qualquer dígito - não ocorria no original hindu.

Parece pois que o “nada” preocupou muitas mentes antes da minha. Gostava era mesmo de saber como é que os romanos faziam divisões. E como é que os grandes matemáticos gregos, antes de 500, se safaram sem o zero?

E com isto ainda fiquei mais vazio. Estou a zero. Não resolvi nada e nada disse. Também não me importo. O que estava mesmo era a dissertar sobre o nada…

sábado, 20 de outubro de 2012

O Cavalo que não quis ser burro


(dedicado à crise)
O Cavalo estava lindo, luzidio, gordo, livre e feliz. O seu dono tirava-o todas as manhãs das baias e levava-o para o pasto onde podia correr, escolher a melhor erva, espinotear e até espojar-se na terra do prado. Tinha água fresca no tanque que, para o efeito, enchiam todos os dias, uma manjedoura com ração e alfarroba para entremear com o pasto e palha fresca para se deitar quando lhe apetecia. Agradava-lhe sobremaneira ser aparelhado e levado ao picadeiro onde os netos do seu dono o montavam na aprendizagem da nobre arte de dominar um cavalo. Vivia, portanto, feliz e contente, num correr dos dias suaves e mornos, acompanhado às vezes pelo burro que, ao contrário dele, pouco tempo passava no prado, pois tinha que puxar o arado, rodar a nora, carregar os alforges cheios de hortaliças e outros artigos, muitas vezes demasiado pesados para as suas pobres costas. O pobre bicho também puxava uma enorme e pesada carroça enquanto ele passeava o dono e os netos numa elegante e leve charrete, bem pintada e reluzente.
Mas, começou a sentir que algo estava a mudar. O seu dono andava cabisbaixo e meditabundo. Quando normalmente o escovava, estava sempre cantando e a dizer-lhe palavras bonitas que o incentivavam a portar-se cada vez melhor e a querer ser cada vez melhor cavalo. Agora, além de o fazer menos vezes, fazia-o cabisbaixo, calado e triste. Que se passaria?
Um dia, ao lavá-lo e escová-lo, enquanto lhe passava a brussa pelo lombo, começou com uma conversa esquisita. De voz um pouco embargada, foi-lhe dizendo que as coisas estavam mal, as vendas andavam a baixar, as pessoas tinham pouco dinheiro e compravam menos, os intermediários cada vez queriam os produtos mais baratos, o estado aumentara-lhe os impostos, etc… enfim, as coisas andavam mal e as despesas da quinta cada vez eram mais elevadas e as receitas minguavam a olhos vistos. Um tipo do banco passara por lá, propusera-lhe um empréstimo, pagaria pouco por mês, mas tinha de dar a quinta como hipoteca. Fora na conversa e realmente, no início, tudo ficara melhor, mas agora via que fora uma ilusão, tudo estava pior e nem conseguia pagar o empréstimo. Tinha de cortar nas despesas. Não aguentaria continuar com tantos animais. Pensou vendê-lo a ele, mas não foi capaz. A amizade que lhe tinha era muita e partia-se-lhe a alma só de pensar em perdê-lo. Teria de vender o burro, a charrete, diminuir as vacas, porque o leite também já aumentara e não conseguia vendê-lo todo, desfazer-se das cabras e ficar só com meia dúzia de ovelhas. Assim, pedia-lhe desculpa, mas ele, que era o seu querido cavalo e seu orgulho, como tinha mais força, teria de fazer todo o trabalho.
O nosso pobre cavalo, que adorava o seu dono, disse para consigo que teria todo o gosto em o ajudar e que não se importasse. Iriam conseguir.
A partir daí tudo mudou. Puxou arados e carroças, moveu a nora para as regas, acartou alforges para a praça, deixou de comer alfarroba e nem forças tinha para se deslocar até ao prado deixando-se ficar na cocheira, entre baias, triste e cabisbaixo. O seu lindo pelo tornou-se baço por falta de tratamento, lavagem e escova. Tinha sido cavalo e passara a burro. Via agora quão difícil era a vida daquele animal que se fora dali. Onde estaria? Certamente já morto nalgum matadouro. Talvez tivesse sido a melhor sorte. Na quinta já nem apareciam os netos do seu dono. As selas, sempre limpas e luzidias, já não se viam penduradas na parede, tinham sido vendidas para ajudar nas despesas. Os campos, até ali sempre verdes e viçosos, pareciam agora terra seca e erma apenas com carrascos e estevas acastanhadas. Seria que as coisas iriam continuar assim ou o seu dono conseguiria dar a volta por cima e mudar o rumo dos acontecimentos?
O tempo foi passando e tudo piorou. O nosso cavalo mudara para burro e teria de continuar assim. Como era difícil. O seu dono, não aguentava a tristeza de ter de entregar a casa e a quinta ao banco e caiu à cama bastante doente. A filha, que morava na cidade, não tinha tempo nem sabia tratar da quinta. A bicharada foi desaparecendo a pouco e pouco. Um dia, de uma velha e desengonçada carroça, saiu um homem moreno e barba rala, vestido de negro, acompanhado de uma mulher também de negro e saia até aos pés. Falava com a filha do seu dono, numa algaraviada esquisita mas deu para entender que vinham buscá-lo.
Não o levariam. Estava solto e livre. Ganhou forças e correu saltando por cima da cerca da portada. Correu como o vento sentindo-se cada vez mais livre. Não seria mais burro. A brisa, com cheiro a mar, chegou-lhe às ventas e deu-lhe mais forças para a corrida. Chegou à orla marítima, a um ponto da falésia que conhecia de passeios que ele e o dono davam antigamente. Uma rocha saliente formava uma plataforma. Nem abrandou. Chegado à ponta saltou, caindo na água com alguma violência.
Com os olhos no horizonte, nadou, nadou, nadou… o seu amigo burro talvez o esperasse lá bem no fim…
Já estava longe da costa quando olhou para trás. Se continuasse morreria. Se voltasse talvez as coisas se recompusessem. Pensando no seu dono e na tristeza de o deixar, ganhou forças e voltou. Já na praia, deixou-se ficar recompondo as forças. Galopou até à quinta. O dono estava melhor, em pé na varanda como se esperasse por ele. Com um relincho aproximou-se colocando-se de modo a que o dono o pudesse montar. Partiram os dois rumo ao desconhecido. Amanhã seria outro dia e juntos haveriam de sobreviver.

domingo, 14 de outubro de 2012

O Pardal

Parei, como habitualmente nos meus passeios matinais, em frente da livraria alfarrabista. Chamou-me a atenção “ A Origem do Homem” de Charles Darwin. Como ando a ler um livro que a ele alude inúmeras vezes, “Breve história de quase tudo” de Bill Brysson, pensei em comprá-lo mas depressa engoli essa vontade. A “crise” que actualmente se vive, até esses pequenos prazeres me está a tirar. O dinheiro que penso gastar em livros e outras actividades culturais ou de prazer, faz-me falta para prover às necessidades diárias de manutenção de uma casa e família. Maldito dinheiro! Maldito capitalismo exacerbado! Malditos os governos que nos conduziram a isto! Maldita a vida que teima em acabar assim!
Dava mais uma vista de olhos pelas outras publicações quando, reflectido na vidraça da montra, reparei num velho pardal que debicava a terra junto de uma das árvores do passeio. Era um pardal dos velhos, já com gravata preta. Um macho, “senhor” do seu forte bico, procurando algo que lhe pudesse servir de repasto. Fiquei ali, embevecido, a olhar o bicho. O gato, à porta da livraria, olhava também. Não mostrou qualquer sinal de que pretendia atacar o passarito e eu congratulei-me com isso. Certamente vivia bem e não tinha fome, não precisando de caçar para comer. Naquele momento, dei conta de como a minha sensibilidade se tinha alterado. Como caçador, abato as espécies cinegéticas, sem ficar com qualquer problema de consciência, aqui na cidade, enterneço-me por ver um pardalito, bem vivinho, procurando sobreviver. Nem sempre foi assim…

− Pai. Dá-me dez tostões.
− Para que queres o dinheiro?
− Para comprar elásticos para uma fisga. Vou fazer uma como as que os rapazes daqui usam. Aquela que me compraste, com elásticos redondos e aquele cabo enorme, não serve. Custa a esticar e não dá pontaria nenhuma. Os rapazes usam elásticos de câmara-de-ar que compram no ferro-velho. O tipo corta um bocado que dá para dois elásticos e ainda sobram umas tiras para as ataduras. Com uma forqueta feita de uma haste de acácia e um bocado de cabedal duma lingueta de um sapato velho, faço o resto.
− Estou a ver. E depois vais para aí atirar fisgadas a torto e a direito e partir os vidros aos vizinhos. Não me arranjes sarilhos que já bastam os que tenho.
− Não. A fisga é para ir à caça dos pássaros, mais os rapazes daqui.
− Bem, toma lá e constrói a tua fisga. Depois mostra-ma para ver como ficou.
O puto correu ao ferro-velho e de lá trouxe o bocado de câmara-de-ar. Com uma tesoura que pediu à mãe, cortou os elásticos, foi à acácia mais próxima e escolheu uma forqueta bem apertada, cortou-a de cabo curto tirando-lhe a casca alisando-a com o canivete. De um sapato velho cortou a lingueta e com a tesoura cortou a sola da fisga. Montou tudo utilizando “cordões” do próprio elástico e saiu para a rua onde a experimentou. Estava óptima.
Com essa fisga, depois de alguns treinos, tornou-se um exímio atirador. Apanhou imensos passaritos pequenos procurando-os esgueirando-se por debaixo das oliveiras e outras árvores. O produto da caça era normalmente por ele preparado e depois frito pela mãe. Mas o puto andava triste. Nunca tinha sido capaz de caçar um pardal velho. Só os muito novos, quase acabados de sair do ninho, se deixavam surpreender por ainda não terem calo nem esperteza. Os pardais velhos eram demasiado matreiros e esgueiravam-se não se deixando caçar. Muitas horas foram gastas tentando enganar os pardalões. Um dia conseguiu.
Numa oliveira alta o pardal piava. O puto esgueirou-se por entre as árvores de modo a não ser pressentido. Já debaixo da grande árvore foi um sarilho para vislumbrar o bicho. Até que o viu. Piava olhando em frente e deixava a descoberto o peito roliço. O miúdo esticou os elásticos, apontou bem e desferiu a fisgada. A pedra atingiu o pardal em cheio, produzindo um ruído cavernoso. O pardal caiu entrechocando-se com os ramos, abatendo-se morto aos pés do rapaz, cujo coração batia com tal intensidade que quase se podia ouvir no silêncio do campo.
A alegria foi tanta que correu logo para casa para mostrar à mãe.
− Olha mãe! Consegui apanhar um pardal velho. Tenho de o mostrar ao pai.
− O teu pai hoje vem tarde. Fica a trabalhar e quando vier jantar já estarás deitado.
Foi uma tristeza para o puto, mas não se deu por vencido. Escreveu um bilhete a descrever a caçada e deixou-o em cima da mesa, no lugar do pai, com o pardal em cima…


Uma ambulância passou, com o seu desagradável “pi-nó-ni” afugentando o pardal. As minhas recordações foram-se desvanecendo. Hoje não faria tal coisa, mas caçar aquele pardal deu tanto prazer como actualmente abater uma perdiz em voo. Pode ser que um dia sinta pelas perdizes o que agora sinto pelos pardalitos.
Recomecei a caminhada. A porcaria da crise retornou à minha cabeça.
Ah! A fisga ainda a tenho, os elásticos foram mudando mas o cabo e o cabedal são os mesmos. A consciência é que já é outra. Não sei se para pior…