quarta-feira, 30 de abril de 2014

2014 Odisseia no Ministério das Finanças



(ou “A (bug)unçada computorizada do Estado”)

Certamente todos se lembram, pelo menos os mais cinéfilos, da história de 2001 odisseia no espaço, que Stanley Kubrick tão excelentemente realizou em filme. Aí o computador “Hal 9000”, incomodado com o rumo que os homens estavam a dar à missão, resolveu rebelar-se passando à acção e tomou conta das operações. Foi preciso esperarmos 13 anos para que a profecia do filme, isto é, os computadores passarem a ter vontade própria, se concretizasse, e logo havia de ser no Ministério das Finanças. Os computadores zangaram-se com os governantes, que haviam dado certamente um prazo demasiado curto para reembolso do IRS, e criaram um “bug”, trocando as voltas aos cuidadosos e pressurosos senhores que queriam que o povo fosse reembolsado a tempo e horas.
Lembro-me de, em tempos idos, quando fiz um curso na IBM, levado por um amigo que lá trabalhava como programador do “Service Bureau”, os computadores ainda serem estimulados por cartolinas perfuradas e os programas completamente lineares, serem elaborados de fio a pavio, isto é, com instruções em ASSEMBLER ou COBOL, começando na 1ª linha e terminando na última. Quando os erros sucediam, o meu amigo e os companheiros, chegavam a estar uma noite inteira a resolver o problema, pois era necessário rever a programação do princípio ao fim, encontrar o erro, identificar o cartão com os buracos a menos ou a mais, fazer novos cartões, correr as rotinas de novo até tudo estar correcto. O certo é que nenhuma empresa ficou sem o trabalho feito dentro do prazo porque a IBM não brincava em serviço e os seus funcionários não se poupavam a esforços para resolver os problemas.
Agora, quando os programas são elaborados por módulos e com linguagens muito mais acessíveis, vem o Ministério das Finanças declarar que, devido a um erro informático, não é possível reembolsar o IRS aos cidadãos por crédito em conta bancária, ficando os pagamentos adiados, mas que serão pagos por cheque no mais breve prazo possível, que terá de ser no máximo até ao fim da semana segundo um pressuroso Secretário de Estado, que, claro está, se armou em coitadinho, como não tendo qualquer culpa, passando esta apenas para o desgraçado computador do MF.
Não brinquem comigo, sou informático, sei do que falo. Ou o computador resolveu imitar o “Hal” tomando conta das operações para lixar o povão, ou os técnicos de informática do MF tiraram os cursos juntamente com o Relvas, ou ainda o Governo está a brincar connosco.
Hoje, um erro, num programa há muito elaborado e testado, só acontece quando a esse programa é feita qualquer alteração e, as alterações normalmente são elaboradas nos módulos, apenas naqueles que são passíveis de alteração. Se o erro aparece, basta procura-lo nos módulos alterados e quaisquer duas ou três horas chegam para isso e, se não chegarem, trabalhem de noite que não lhes faz mal nenhum. Não me venham dizer que não podem creditar as nossas contas devido a um erro. Enquanto o MF, tenta resolver o malfadado erro, o nosso dinheirinho continua nas mãos do Estado e nós à espera dele para pagarmos ao senhorio, à mercearia, à oficina do carro ou para comprarmos os preservativos ou viagra para nos irmos entretendo a fazer amor enquanto o tempo passa (As time goes by).

O MF tem as costas largas e os pobres computadores também. Os técnicos passam por ineptos (coitados são funcionários públicos e como tal nada fazem), entretanto o governo vai-se governando e continuando a mentir aos portugueses. Não me copulem sem que eu queira senão é violação.

sábado, 19 de abril de 2014

Para Quê?


Junto da cama, olhava aquele corpo magro, esquelético até, ali, quase estático, sem nada dizer, nada fazer, interrogando-me se pensaria e se o fizesse em quê. Perguntava à auxiliar o porquê daquela magreza, como se ela pudesse saber… “Que comia e bem, tinha uma boca santa, tudo o que lhe levavam à boca ela engolia…”
Perguntei se queria chocolate, disse sim sumidamente, sempre adorara chocolate…
Fico por ali com os meus pensamentos, tentando perscrutar o seu íntimo, tentando adivinhar o que pensará ou sentirá.
Recordei a nossa infância, aquele sábado fatídico em que, por não termos aulas fomos até ao ringue de patinagem alugar patins com alguns trocos que os pais nos deram, a queda que deu, como a olhar-lhe a perna vi logo a fractura da canela. Gritei para que chamassem os bombeiros que nos levaram a Lisboa para S. José. Lembrei a ansiedade enquanto esperava, como entrei por ali dentro contra tudo e contra todos, o porteiro atrás de mim… “Que não podia entrar ali, que era proibido, que“ …Que se lixasse!... o médico estava junto da minha irmã, atendeu-me apesar dos meus 14 anos, que teria de ser operada pois a fractura era grave.
Lembro de ainda ter uns trocos e ir à cabine telefonar para casa, felizmente foi o meu pai que atendeu, a mãe entraria em pânico.
Levou cerca de três meses sem se levantar da cama, não conseguia andar com o gesso, desequilibrava-se, pensávamos nós que pelo medo. Já anteriormente aquela rapariga caía imenso, andava sempre de joelhos esfolados. Depois da fractura passou a ter um andar ainda mais desequilibrado, partia a loiça e deixava cair as coisas das mãos.
Depois de imensos exames médicos foi-lhe diagnosticada uma atrofia cerebelar congénita. Que a doença não tinha cura e que seria progressiva mas lenta. E foi. Porquê?
O congénito não é necessariamente hereditário, ninguém da família padecia ou padeceu desse mal. Deixou de estudar e passou a ficar ao cuidado da nossa mãe que acabou por ser demasiado protectora ao ponto de a tornar um pouco egoísta e bastante agressiva na sua maneira de ser. Era uma rapariga interessante sem ser uma beleza. Apenas ano e meio mais velha do que eu, demasiado magra e alta não passava despercebida aos rapazes. Casou com um oportunista convencido que o meu pai tinha dinheiro. Quando viu que dali nada ganharia saiu de casa e desapareceu. Divorciou-se e, mais tarde, o tipo morreu. Não tiveram filhos porque ela não os podia ter. Voltou para casa dos meus pais.  Consegui arranjar-lhe emprego como dactilografa num dos serviços por que passei. Após alguns anos já não conseguia escrever à máquina por errar muitas teclas. Continuou como telefonista e até foi prestando um serviço razoável. Andar de comboio todos os dias para Lisboa era um perigo, mas pior seria ficar em casa sem nada fazer. Deu imensas quedas e partiu mais alguns ossos. Para cúmulo, outra doença apareceu, sem ter nada a ver com a cerebelose. Esclerose do nervo óptico. Outra também incurável e progressiva. A cegueira foi tomando conta dela. A minha mãe, até uma idade muito avançada foi a sua guia. Após a morte de minha mãe ainda tentei que ficasse em casa. Depois de demasiadas quedas e muitas idas para o hospital, desisti internando-a. Durante alguns anos ia vê-la duas vezes por semana levando-a a almoçar, muitas vezes acompanhado do meu filho, que também visitava a tia nos meus impedimentos. Com o agravar da doença, cada vez era mais difícil conduzi-la e ampará-la. A falta de vista nada ajudava. Deixámos de sair e as visitas faziam-se apenas na instituição.
Agora piorara e ali estava, acamada, completamente cega, drogada, com calmantes e ansiolíticos, sem nada dizer nem fazer. Porquê e para quê?
A médica diz que já há demência senil. Com 78 anos? Por quê? Será que tanto medicamento a tornou assim? Fará o cerebelo falta ao cérebro? Não sei. Só sei que estou a perder a irmã.
Todas as semanas lá estou. Levo-lhe chocolate que continua a comer mas sem o agrado de antigamente. Não reage quando lhe digo que tenho de ir embora. Também não reage quando chego. Digo-lhe olá que ela repete sem qualquer indicação de alteração do seu íntimo. Será que pensa? Julgo que o cérebro humano, enquanto há vida, está sempre activo. Será? Não parece. Isto que eu vejo e sinto não é vida, e pergunto mais uma vez; Para quê?

Claro que, como não crente, sei que não tem de haver uma razão para a vida, somos animais e como animais, vivemos, adoecemos, morremos e desaparecemos. Mas, como ser pensante, custa-me assistir a tanta degradação e tanto tempo para chegar ao fim. Viver assim não interessa. Para quê? É minha irmã e gosto muito dela, mas por isso é que gostaria que acabasse rápido e sem sofrimento. Assim, para quê? Não é viver.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

CHOCOLATE


Num destes dias revi na TV o filme que dá título a esta crónica. Quanto mais o revejo mais o aprecio. O sueco Lasse Hallström, coloca muito bem em imagens o que o preconceito, exacerbado pelos costumes católicos, provoca nos comportamentos das pessoas e ainda mais quando o medo a deus, é aproveitado pelos caciques, de modo a levarem os seus conterrâneos a portarem-se da forma que lhes convém, isto é, fazendo apenas aquilo que eles querem, de forma a tornarem-se nos chefes totalitários e fascistas senhores de tudo e de todos.
Mostra também, como uma mentalidade aberta e liberta de preconceitos, chega a uma aldeia rural em França e, pelo seu comportamento e maneira de ser, começa a fazer ver àquelas mentes fechadas, que a vida poderá ser vivida de forma muito diversa daquilo que o padre, sujeito ao cacique, determina. A pouco e pouco, sem nada impor, Vianne Rocher, excelentemente interpretada por Juliette Binoche, vai transformando aquelas mentalidades. Pelo seu comportamento, aberto e independente, em contraste com o apreço da maioria, vai ganhando o ódio do cacique, conde  Paul de Reynaud numa interpretação soberba a que Alfred Molina nos habituou, vendo na bela Vianne, uma intrusa que poderá vir a ser um sério obstáculo ao seu poder e ainda mais raivoso fica quando Vianne enceta uma relação amorosa com Roux (Johnny Depp), um músico nómada pertencente a uma comunidade, por eles proscrita, que vive em barcos a quem os habitantes da aldeia chamam “ratos do rio”. Vianne impõe-se também por ajudar as mulheres da aldeia a libertarem-se dos maridos prepotentes que as maltratavam sujeitando-se a todas as ignomínias, não conseguindo libertarem-se, mais pelo medo do castigo divino por quebrarem os laços sacramentais, do que do medo dos respectivos cônjuges, que já pouco respeito lhes infundiam. Tudo isto é catalisado pelo chocolate que Vianne prepara na sua loja a que chamou Maya, em homenagem à sua avó descendente dessa etnia e, que a nossa heroína, teve a ousadia de abrir mesmo em frente à Igreja, desafiando os habitantes que, no início, consideraram uma afronta, por ter sido colocado o pecado, na forma de gula, mesmo em frente a deus e durante a quaresma. Mas o chocolate é afrodisíaco e viciante e, a pouco e pouco, os aldeões vão perdendo o medo e cometendo o “pecado”, de deglutir, com volúpia, os excelentes doces que Vianne tão bem confeciona. Admirável também a sua relação com a filha, que educa de forma aberta e livre sem deixar de ter mão no controlo dessa liberdade. A garota não dorme sem que a mãe, a quem adora, lhe conte pela enésima vez, a história do seu Avô, que teve a coragem de casar com uma mestiça descendente de uma princesa Maya, o que lhe trouxe a animosidade das comunidades onde viveu e o fez tornar-se um nómada. Vianne, que devido à sua maneira livre de viver e pensar, também se viu obrigada a mudar várias vezes de local, resolve deixar a aldeia e recomeçar tudo de novo, mas, levada pela aceitação da comunidade, decide continuar e assentar de vez.
Um filme que nos mostra um lado sórdido de uma igreja que se junta ao poder, exercendo um papel castrador de mentalidades, impondo aos crentes a sua vontade pelo medo da não obtenção do perdão e apoio divino, beneficiando assim de todas as benesses que o cacique local lhe garante.
O realizador, servindo-se do chocolate, tal como outros nórdicos, segue o tema da gastronomia,  como catalisador de excelentes histórias. Este, consegue ombrear com o magnífico filme dinamarquês “A Festa de Babette” dirigido por Gabriel Axel, baseado num conto de Karen Blixen a carismática personagem de “África Minha”.

Chocolate, um doce divinal para comer e um filme sempre a rever.