domingo, 19 de dezembro de 2021

Gato Preto, Gato Branco.

 

Já há muito que o meu filho me tinha falado num filme que classificou de excepcional e eu não cheguei a ver. “Gato Preto, Gato Branco” de Emir Kusturica, foi há alguns anos um êxito de bilheteira no nosso País. O filme tinha sido agraciado com um Leão de Ouro no festival de Veneza e teve excelentes classificações dos críticos. O Cinema Ideal na Rua do Loreto colocou novamente em exibição o filme agora com uma cópia restaurada. Desta vez não me escapou e fui vê-lo ontem. Depois de um trânsito infernal, nesta época anda tudo doido, consegui chegar à Praça de Camões para pôr o carro no parque. Tive de deixar a Catarina na esquina e que fosse andando para o cinema que eu tinha de guardar o carro. Conclusão: levei montes de tempo para entrar. Ora estava completo, ora livre, mas entrava-se a um e um. Lá consegui um lugar no piso -4 e tive de utilizar o elevador para sair e tentar “correr” até ao cinema. Cheguei uns bons minutos atrasado, coisa que me provoca um stress dos diabos. Ainda tive de mostrar o certificado de vacinação antes de me poder sentar. Parece que não perdi muito do filme. Mas falemos do dito:

No início o ambiente choca-nos um pouco pelo insólito das personagens, trajes e ambiente. A pouco e pouco vamos entrando na “história” e o choque vai-se desvanecendo. Numa comunidade cigana, penso que meios sérvios, que vive numa terreola à beira do Danúbio, vive-se de esquemas, trafulhices, roubos, festa e música. As pessoas, quase todas, feias, desdentadas, divertidas,  e trajadas de cores garridas, vão fazendo negócios duvidosos com soldados russos, tais como desviar comboios de vagões de gasolina. Um dos ciganos envolve-se num negócio com outro, “ganster”, rico, cocainómano e devasso, e fica a dever-lhe bastante dinheiro que não tem como pagar. O Malandro apresenta-lhe uma solução, casar o seu filho com a sua irmã mais nova, mas que não deve muito à beleza e é meia anã. Mas nem a anã, nem o filho do nosso cigano querem casar, uma porque está à espera do seu príncipe encantado e o outro apaixonado por uma linda rapariga filha da dona de uma tasca onde vende comida, bebida e cujo divertimento era, munida de uma carabina, atirar nos barcos que passam no rio destruindo os pertences dos seus proprietários. A partir daqui é o granel total. No casamento a noiva foge com o apoio do noivo e acaba por ser apanhada pelo filho de um outro “ganster”, esse ainda mais rico, altíssimo e de grandes bigodes e é o amor à primeira vista. Desata tudo aos tiros, mas lá se acalmam e resolvem por bem fazer dois casamentos. A música no filme é primordial e desde uma banda atada nas alturas ao tronco de uma árvore e de irem buscar um avô ao hospital com uma fanfarra a tocar por ali dentro e a tocarem nas festas, está sempre presente. No meio daquilo tudo dois gatos um macho branco e uma fêmea preta andam por ali como que a gozarem a maluqueira dos humanos, aproveitando tudo a que podem deitar a unha e fazendo “amor”. No fim acabam como testemunhas do casamento do rapaz. Cenas insólitas como uma partida que os noivos fazem ao “ganster” armadilhando-lhe a retrete de madeira  acabando o malogrado por cair dentro do “caldo”  interior e mal cheiroso à ressurreição de dois avôs que se pensavam mortos e tinham sido colocados num sótão com gelo em cima para que os funerais não adiassem o casamento, tudo aconteceu.

Dito assim parece uma comédia burlesca, mas não é, está lá muito ensinamento da vida. É realmente um filme insólito mas interessantíssimo. Valeu a pena.

domingo, 5 de dezembro de 2021

Tim-Tim

 

Até que enfim consegui ir ver a exposição do Tim-Tim que está na Gulbenkian. Uma exposição bastante completa e bem apresentada, mas é mais sobre Hergé e a sua dedicação à banda desenhada do que propriamente ao seu herói. Para alguém como eu, fã incondicional do Tim-Tim, não acrescentou muito.

Quando nasci, o meu herói já andava lá por casa. A revista O Papagaio apareceu em 1935 e a minha irmã também. A nossa tia e madrinha, irmã do meu pai, trabalhava na renascença e tratou de fazer uma assinatura, a que tinha direito, em nome da primeira sobrinha. Todas as semanas recebíamos pelo correio a revista que o funcionário dos CTT anunciava gritando “Pacagaio” o que nos fazia rir, mas corríamos a ir buscar a revista que nos deliciava. A primeira aventura de Tim-Tim publicada foi Tim-Tim no Congo que no Papagaio foi apresentada como Tim-Tim em Angola. A primeira aventura deste herói foi Tim-Tim no País dos Sovietes, mas Hergé deixou da editar por achar que era demasiado crítica e, portanto, já estava fora de contexto. Ainda não sabia ler e era minha mãe que me lia as filacteras e eu fazia-a voltar atrás quando algo não era para mim muito perceptível. Aos 6 anos entrei na primária e julgo que foi a vontade de ler sozinho as suas aventuras que me fez aprender a ler bastante depressa. Ficámos com as encadernações anuais da revista papagaio (11 volumes) que muito triste me deixou quando acabou. Todas as aventuras foram mais tarde redesenhadas e modernizadas por Hergê e passei a comprar os álbuns editados pela Casterman na sua versão brasileira. Muito mais tarde apareceu a revista Tim-Tim editada pela Bertrand. Era semanal e até em Angola a recebia enviada “religiosamente” por um tio da minha mulher, que líamos primeiro só depois a passando para o nosso filho. Infelizmente essa revista também acabou. Ficámos com cerca de 29 volumes que mandei encadernar e que ainda existem em casa do meu rapaz. Tudo o que saiu respeitante ao Tim-Tim eu adquiri ou me foi oferecido, inclusive alguns estudos apresentados por “experts” em Banda desenhada. O Tim-Tim era um herói infantil, mas muito lida também por adultos que viram nela não só aventuras infantis, mas também algo do íntimo de Hergé. Este foi por muitos acusado como anti-semita, misógino, etc. Chegaram a acusá-lo de alguma aproximação ao partido nazi. Penso que isso se deveu ao facto de querer continuar a trabalhar sem ser boicotado. Para mim, Tim-Tim ficou sempre o meu herói preferido. Para quem quiser ficar a saber muito do Tim-Tim, e seu “pai” Hergé, vale a pena visitar a exposição.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Orfeu

 Orfeu

Não acredito em coincidências, mas algumas há que me encantam. Estava na Wikipédia a ler sobre Orfeu. Gosto imenso de mitologia grega e pena tenho de não a ter estudado em profundidade. Estava, pois, embrenhado na ida do dito aos infernos para resgatar a sua Eurídice, quando na TV a meu lado oiço uma música excelente e espantado fico quando vejo: “Descida de Orfeu aos infernos de Offenbach”. Não é extraordinário? Não fosse eu um impecável ateu e diria que aqui andaria o divino a mostrar-me os horrores infernais. Foi como se a lira de Orfeu me tivesse encantado. O trecho de Offenbach é curto, mas interessantíssimo, aliás de Offenbach além dos seus “Contos de Hoffmann”, conheço pouco. Fiquei agora mais culto. A propósito da Wikipédia, tenho reparado que, se soubermos aproveitar o que de bom tem, poderíamos tirar qualquer curso. Sorte têm os estudantes de hoje por terem à mão fontes tão interessantes de saber. Orfeu, talvez levado por Caronte, o barqueiro de Hades, não se safou. Trouxe realmente Eurídice, mas o malvado do demo obrigou-o a caminhar sempre à frente dela e só poder olhá-la quando chegasse ao mundo exterior. A paixão cegou-o e não conseguiu. Olhou-a antes e perdeu-a para sempre. Pobre Orfeu e, nem a sua lira, cuja melodia se sobrepunha às vozes das ninfas encantadoras, permitindo a passagem dos argonautas de Jasão, foi capaz de fazer regressar das profundezas a sua querida Eurídice. Triste. Lembrei-me agora do excelente livro de Orlando da Costa, pai do nosso primeiro, “Podem chamar-me Eurídice”. A personagem feminina, tal como a adorada de Orfeu, não podia voltar ao mundo exterior. Aproveitem e leiam-no.

sábado, 6 de novembro de 2021

O Último Duelo

 

Ontem foi sexta-feira, o dia em que normalmente vou ao cinema. Olhando para o cartaz resolvi ir ver O Último Duelo do Ridley Scott. Não ia muito entusiasmado, mas acabei por ver um belíssimo filme. Uma história de traição e vingança passada na França do século IV em plena guerra dos cem anos. Scott apresenta um filme tecnicamente muito bem feito, com cenários impecáveis que nos transportam para a vida nos castelos em plena Idade Média, com o seus cavaleiros e damas excelentemente bem ataviados nas suas armaduras e vestidos sumptuosos, mas ao mesmo tempo num ambiente demasiado sórdido e de pouca limpeza que nos dá a ideia que debaixo daqueles adereços muita sujidade e maus cheiros devem abundar. A história é baseada num livro de Eric Jager que por sua vez relata factos reais.

Matt Damon é Jean de Carrouges, um cavaleiro nobre que casa por interesse com Marguerite (Jodie Comer), mulher muito bela por quem acaba por se apaixonar sendo correspondido e ficando a viver no castelo da família juntamente com sua mãe, figura um pouco sinistra de sogra que se sente segunda figura com a entrada de Marguerite. Este cavaleiro combate o lado de Jacques Le Gris (Adam Driver) um escudeiro culto e de rara inteligência, de bela figura muito falado entre as damas da corte, mas cuja fama de mulherengo as afasta. A corte é na Normandia nos domínios do Conde Pierre d’Alençon (Bem Affleck) protector de Le Gris e invejoso de Carrouges. Le Gris cobiça Marguerite e acaba por violá-la numa altura em que Carrouges está fora e a sogra a deixa só no Castelo deslocando-se com todos os criados e aias. Heroicamente e com coragem Marguerite acusa Le Gris junto do marido exigindo castigo e reparação. Marguerite e o marido ainda não tinham conseguido uma gravidez, que tardava o desejo de terem um varão, engravida precisamente nessa altura. O cavaleiro de Carrouges acredita na sua mulher e para que não lhe fique a sensação última de ter sido possuída por um violador exige que sua esposa se lhe submeta sexualmente apesar dos protestos desta. Quanto a mim uma violação a seguir a outra, mas marido era dono e senhor. Numa época em que a mulher era completamente dependente do marido, quase seu dono, em que a sociedade não lhe dava crédito e a Igreja Católica as condenava logo de início, como pecados vivos, o assunto acaba exposto ao rei adolescente, em Paris, Carlos VI que autoriza o julgamento, que segue sob o jugo da Igreja expondo Margarite a situações absolutamente impensáveis, mas esta suporta heroicamente a situação. Como Le Gris nega que tenha sido violação, Carrouges exige um duelo de morte deixando a Deus o apuramento da verdade. O rei acaba aceitando essa prática que há muito estava posta de parte e os esbirros da ICAR fazem ver a Margarite que, caso o seu marido seja derrotado ela será supliciada e queimada viva. Muito simpáticos, aqueles pequenos.

O interessante do filme é que a história é narrada por cada um dos protagonistas vendo-se em “flash back” as imagens dessa narração.

O Duelo realiza-se com uma violência atroz. Excelentes cenas que colocam o expectador na liça.

Como sei que os meus leitores facebuquianos não vão ao cinema vou contar o final.

Le Gris acaba morto por Carrouges. Este e Margarite saem aclamados pelo povo.

No final ficamos a saber que Carrouges morre numa cruzada dois anos depois e que Margarite vive mais 30 anos com o seu filho, governando excelentemente as suas terras.

Resta-me referir que as cenas de guerra são tremendamente reais e que, para mim fica a ideia que a violação, não muito violenta, não tenha sido totalmente desagradável a Marguerite (enfim pensamentos de um pecador).

 

 

 

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

 

Dádiva Divina

 

Conhecia Rui Zink apenas da TV e da rádio, principalmente de um programa que mantém na Antena 1 entre as onze e a meia-noite. Já apreciava o seu senso de humor, mas nunca tinha lido nada dele. Dádiva Divina chamou-me a atenção. Gosto de motivos religiosos principalmente se não forem sectários. Comecei a ler um pouco de pé atrás. Ao fim de dois dias tinha devorado 300 páginas. É uma espécie de policial com um detective particular um misto de Sam Spade de Dashiell Hammett e o Filósofo Spinoza, daí o seu nome Samuel Spinosa.

Este norte americano, judeu não crente, é contratado por uma firma tipo clínica particular e é-lhe dado um retracto robô para encontrar o original. O nosso Sam começa a desconfiar pois o “cachet” foi enorme. Disseram-lhe para não se poupar a despesas e que começasse por Adis Abeba onde um contacto o procuraria e que não se preocupasse, pois, esse contacto saberia encontrá-lo. No avião, em classe executiva, Sam olhava o retracto robô e cada vez mais espantado ficava pois poderia ser qualquer um, olhando bem até poderia ser Jesus Cristo.

Na cidade etíope Sam correu tudo o que era café e tascas. Num deles deu com um padre católico acompanhado de uma italiana de olhos grandes. Sam, com o seu faro detectivesco aproxima-se e nota grande animosidade por parte do padre que se diz irlandês de nome O’Reilly e a acompanhante, de seu nome, Chiara. Esta mais tarde revela-se aquilo que Sam já esperava, o seu contacto. Mais tarde um etíope magrinho e de barba que se confessa judeu coisa que surpreendeu Sam, faz-se encontrado. Este último parece saber quem Sam procura e diz-lhe que terá de ir à África do Sul e depois certamente a Roma e só aí encontrará respostas.

Após um encontro com um sul africano, Van Nuydem, um Boer anti-apartaide, que viajava com um africano de nome Massano que não tinha polegares, porque lhos cortaram, mas que tudo manejava e bem. Ao saber que Sam desejava rumar ao seu país oferece-se por lhe dar boleia de carro até Moçambique a dali logo se via.

Após muitas peripécias Sam é mordido por uma mamba. Massano usa o seu saber para tentar extrair-lhe o veneno, mas Sam entra num coma prolongado. Sam sonha muito e revê toda a sua vida: a separação da mulher e que é apanhado por uma seita que o quer baptizar para aceitar Cristo, coisa que recusa com repulsa, mas acaba mergulhado em água…

Os companheiros dão-no como morto, mas Sam acorda num hospital em Moatize, Moçambique onde uma branca tenta curar crianças e poucos adultos vítimas do HIV. Aqui Sam apaixona-se e acaba envolvido com a mulher que lhe confessa ser seropositiva e agora ele certamente também será. O hospital acaba atacado por bandidos armados comandados pelo padre católico, O’Reilly que dispara a torto e a direito gritando “Blasfémia! blasfémia!”. A Drª Graça é atingida e morre. Massano, grande lutador, acaba com muitos dos bandidos, mas é ferido de morte. O’Reilly foge. Graça, antes de morrer, confessa ter dado a Sam uma transfusão do seu sangue, única maneira de o salvar, mas que o tornou seropositivo. Sam fica a saber que o ataque sofrido era para o apanhar. O´Reilly tentava por todos os meios que ele não encontrasse quem pretendia.

É muito difícil contar um livro que tem muitos pensamentos e sonhos. Um judeu ateu a tentar encontrar alguém que julgam ser Cristo e que não sabem por onde anda. Daí muitos pensamentos de ordem filosófica e religiosa. Mas o nosso Sam encontra-o e logo em Lisboa, onde ajudado por uma prostituta que o leva a um túnel antro de droga e lá estava ele, apático, quieto e abúlico. Depois de atacado e espancado consegue fugir e leva-o com ele. Já na clinica, em Hudson na nova Inglaterra, Sam entrega-o ao que o contratara a quem chamava Ken, namorado da Barbie, sempre impecável bem vestido e aprumado. No gabinete estava o padre O’Reilly e Chiara. Ken explica que aquele era Jesus ressuscitado e só um judeu não crente o poderia ter encontrado. Com o sangue dele iriam fazer fortuna vendendo a imortalidade. Sam riu-se, mas O’Reilly grita mais uma vez “Blasfémia”. Chiara puxa por uma arma e dá-a a Ken que a encosta à cabeça do padre e diz:  Você vai morrer, e não vai encontrar Deus porque pecou e Jesus também não vai encontrar porque ele vai ficar aqui por todo o sempre a ajudar-nos. Sam reagiu por instinto. Deu uma palmada na mão de Ken que disparou e acertou na barriga de Chiara. O segurança apontou a pistola metralhadora e Sam deu-lhe um tiro no peito, mas não o matou devido a um colete anti bala. Surpreendentemente o padre prostra o segurança com um golpe em cutelo que o abateu. Ken atirou-se a Sam e o padre também surpreendentemente derruba-o com uma coronhada. Chiara continuava viva e Sam meteu-lhe uma bala na testa. O padre, já ferido, volta-se para Sam e diz-lhe: “Leve-o daqui, proteja-o, esconda-o e se não conseguir ponha-lhe termo à vida.”

Sam termina a sua actividade de detective e acaba numa comunidade de judeus ortodoxos que lhe fornecem um quarto com duas camas onde ele vai vivendo com o seu mudo e quedo companheiro que todos julgam ser atrasado mental, mas Sam pensa ir para outro lado. Parece já haver desconfianças, todos vão envelhecendo e “Jesus” permanece na mesma.

Que tal? Não é uma delícia?

Já gosto mais de Rui Zink.

 

 

O Que Diz Molero

 

Reparei que o indivíduo sentado na mesa ao lado olhava para mim com ar espantado, pudera, enfronhado que estava na leitura, nem reparava que de vez enquanto dava uma audível gargalhada. Raramente releio um livro, mas alguns há que me merecem essa atenção. Dinis Machado era um nome pouco conhecido. Director das publicações de Banda desenhada da Bertrand passava despercebido nos meios literários. O Que Diz Molero foi uma bomba revolucionária e um sucesso literário não esperado. Em dois anos fizeram-se 11 edições. O meu filho conseguiu um exemplar autografado.

Dinis Machado já escrevia, mas sob pseudónimo. Denis McShade era um escritor policial que o público português pensava ser americano. Resolveu escrever com o nome próprio e o seu primeiro livro foi uma explosão. O interessante do livro é que é escrito sobre uma personagem principal que nem nome tem. Um indivíduo, Austin, lê a Mister DeLuxe um relatório encomendado a um tal Molero, sobre a vida de um tipo a quem tratam por rapaz e rapaz foi até ao fim. Esse tal de rapaz, era um procurador da palavra para escrever uns poemas e ao mesmo tempo fazer um estudo sobre Miró. O relatório foca a vida do rapaz desde a infância num bairro de Lisboa e a sua peregrinação pelo Mundo procurando sempre a palavra certa.

A descrição da vida do rapaz no seu bairro é uma delícia. Para quem conhece Lisboa e seus arredores e lá viveu a sua infância vai reconhecer todo os personagens criados pelo autor bem como os filmes, livros, banda desenhada e artistas daqueles tempos. Dinis Machado cria alcunhas para os personagens amigos do rapaz, que são no fim, as alcunhas dos nossos amigos de infância. Está lá o Zuca, exímio contador de filmes, que imitava o som da espadeirada e cavalgadas, catapum, catapum, corria e esbracejava, murro para aqui e murro para acolá. Havia o Peida Gadocha, o Lucas Pireza, o Penteadinho, O Bigodes Piaçaba da drogaria, o Bexigas doidas, o Aranhiço, o Roque Sacristão, a Mafalda Capoeira vendedora de galinhas, o Evaristo que dizia que o importante era a tusa e que se espremia em qualquer buraco fosse galinha ou tijolo, o Vovô Resmungas e muitos outros. Havia o Ângelo que não se metia com ninguém, mas quando havia sarrafusca levava tudo e todos pela frente a murro e a pontapé, que o digam os camones desembarcados em lisboa que por tudo e por nada levantavam os punhos como grandes admiradores do boxe que eram. A esses o Ângelo despachava em série levando o vovô resmungas a fugir, coxo com a sua bengala a não tocar no chão e a dizer foda-se, foda-se…

Mas além da vida de bairro Dinis Machado descreve as amizades do rapaz como com Leduc, ginasta que conseguiu, nas argolas, o Cristo perfeito que levou 15 anos a aperfeiçoar e no dia seguinte numa festa comemorativa, numa desordem, levou com uma cadeira nas costas que o atirou para uma cadeira de rodas para toda a vida. O rapaz continuou amigo de Leduc com quem tinha conversas intelectuais sobre poesia e livros levando-o para uma falésia onde observavam o por do sol. Um dia, quando o rapaz se afastou para ir buscar umas bebidas, Leduc destravou a cadeira de rodas… o rapaz correu e ainda viu a espuma onde Leduc se afundou.

Molero descreve também os amores do rapaz primeiro com uma Mireille que conheceu em Paris e mais tarde com algumas outras ao longo do seu périplo pelo Mundo.

Alternando entre as piroseiras bairristas e a intelectualidade poética, o relatório de Molero descreve um pouco da vida de todos nós com uma excelente linguagem narrativa que nos encanta fazendo rir e chorar. Já da primeira leitura me diverti imenso e muito mais ainda, quando com o meu rapaz, recordávamos as peripécias mais caricatas. Enfim, uma segunda leitura que ainda me deu muito mais gozo.

 

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Tiro desportivo militar

 

 

 

 10, bom tiro, + 10, 2º tiro, + 10, 3º tiro, +10, 4º tiro, +10, 5º tiro, isto está a correr bem, boa arma, + 10, 6º tiro, + 10, 7º tiro, +10, 8º tiro, +10, 9º tiro. Tenho 90 pontos, vou fazer 100, nunca consegui tal coisa, ainda bem que comprei estas armas para a equipa.

A barriga assente na prancha de tiro começou a revolver, acomodei-me melhor, coloquei bem os pés. O nervoso miudinho entrou comigo. Respirei fundo. Tentei acalmar-me, tinha de fazer outro 10. Sustive a respiração. O dióptero estava circular com o negro do alvo. Só tinha de fazer sair o tiro quando tudo estivesse perfeito. O tiro saiu. Fiz um 9. 99 pontos, bom demais, mas uma frustração. Como se conseguirá fugir a este “stress” do último tiro?

Era chefe da equipa de tiro da Guarda Fiscal. Tínhamos 6 atiradores de espingarda e 6 de pistola. O tiro de espingarda era a 300 metros e só na serra da Carregueira podíamos treinar. Começámos a atirar de G3 com o “decalitro” na cabeça e botas de polainitos. Como sub-chefe do Serviço de finanças tentei melhorar os equipamentos. O chefe não orçamentou as despesas necessárias. Ficávamos sempre em último, mas competíamos galhardamente. Quando passei a chefe orçamentei o necessário. Adquiri o melhor dos melhores equipamentos. Espingardas Mauser de competição último modelo, casacos e botas de tiro, óculos de longo alcance para ver os resultados, toalhas próprias para limpeza das faces, líquido para lavagem ocular. Não nos faltava nada. No próximo campeonato das Forças Armadas ficámos a meio da tabela. Os resultados de pistola melhoraram muito. Comprei também armas altamente sofisticadas para tiro desportivo militar. Os rapazes melhoraram muito.

Fui fazer a estreia da minha espingarda à Carregueira, carreira de tiro militar minha velha conhecida desde os tempos de Pilão. Depois de acertar a arma e calcular o desvio do vento consegui 99 pontos. Foi muito bom, mas uma frustração, pois convenci-me que pela primeira vez ia conseguir 100. Puro engano. O “stress” não deixou. A GF subiu muito nas classificações. Fomos atirar no campeonato à Base Aérea da Ota que na altura dispunha da melhor carreira de tiro militar. Já possuía alvos electrificados que nos mostravam electricamente as pontuações obtidas. Nunca fiquei em primeiro na minha equipa, um major era bastante melhor e ficava sempre uns pontos acima, mas fui aquilo a que se chama um atirador de elite. Teria sido um bom “sniper” se tivesse estômago para isso. As bichezas em África é que se lixaram.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

 

Nomadland (Sobreviver na América)

Depois de tanto recolhimento obrigatório, lá consegui ir ao cinema.

O filme é realizado por uma chinesa de 39 anos, já com algumas realizações na América, baseado num livro de várias estórias de Jessica Bruder, mas esta imaginada e trabalhada pela própria realizadora e produzida por ela e pela actriz principal Frances MacDormand, que já nos tinha dado magníficas interpretações como no excelente filme 3 Cartazes à Beira da Estrada.

Numa cidade do Nevada completamente baseada numa importante empresa, que se desmorona e cessa a actividade, uma trabalhadora Fern (Frances MacDormand) apanhada de surpresa como tantas outras, fica desempregada e opta pela reforma antecipada. Depois da morte, por cancro, do seu companheiro, não conseguindo continuar a viver ali, deixa a sua casa desfazendo-se de quase todos os seus haveres e, ficando apenas com uma velha carrinha que transforma numa pequena autocaravana, deita-se à estrada e passa viver como nómada parando nos diversos parques de caravanas, onde outros nómadas como ela, vivem em pequenas comunidades com os seus líderes, uns de carácter religioso, outros mais filosóficos como condutores de gente sem rumo. Nos entrementes vai empregando-se na gigante Amazon de comércio electrónico.

Quem for à espera de um filme altamente dramático com grandes e histriónicas cenas, sai de lá altamente frustrado pois, apesar de um drama, tudo se passa num ambiente sereno e calmo em que a arte dramática da actriz se revela nas suas expressões faciais.

O filme retracta uma América triste, centrada nas suas grandes empresas empregadoras de milhares de americanos, mas que os descartam assim que as coisas descambam. Vêem-se, pois, estes empregados a braços com o desemprego e com as pequenas reformas que mal lhes dão para viver.

Uma excelente fotografia, uma realização serena e calma, uma excepcional actriz, numas paisagens frias e inóspitas dos grandes desertos americanos, em que a linha das estradas é o único sinal de civilização. Fern, a nossa personagem, é bem acolhida por todos. Inclusive, passa por casa da sua irmã, uma burguesa abastada e bem casada, que a convida a viver com eles dado que tem uma bela casa. Fern permanece uns dias, mas não consegue. Uma noite regressa á sua carrinha e volta á estrada. Fern não se considera uma sem abrigo, apenas uma sem casa.

Um filme que vale a pena, mas em que tantos óscares me parecem um pouco descabidos.

 

 

 

quarta-feira, 24 de março de 2021

Kon-Tiki

 Recordações...

Em 1947 o aventureiro norueguês Thor Heyerdahl construiu uma jangada em madeira de balsa e folhas de palmeira e fez-se ao mar a partir da América do Sul e navegou no pacífico durante 101 dias cerca de 4300 milhas até um atol na Polinésia. Heyerdahl quis provar que, no período pré-colombiano, os povos sul americanos, poderiam muito bem ter navegado com meios muito rudimentares até àquelas paragens. Não sei se isso foi real, mas o certo é que Heyerdahl conseguiu. Esta odisseia sempre me fascinou e muito gostaria de ter podido fazer parte de tal expedição.
Em Vilanova de Milfontes, teria o meu rapaz uns 6 a 7 anos, pus toada a família e amigos a apanhar paus dos gelados que por ali abundavam e enchi um saco deles. Depois de bem lavados, desinfectados e bem secos, meti-me na construção de algo parecido com o Kon-Tiki e, enquanto o construía, a minha imaginação levava-me com ventos e marés pacífico fora, arrostando perigos e tempestades. Com um bocado de tecido de nylon branco, construí uma vela onde desenhei um inca que copiei da aventura do Tim-Tim O Templo do Sol. E até não estava mal de todo dado que Kon-Tiki seria um dos nomes do deus Inca Pachacamac ou Viracocha.
Para fazer flutuar a embarcação, colei-lhe no casco umas placas de esferovite e “brinquei” mais o meu filho várias vezes em lagos e tanques. O meu Kon-Tiki andou cá por casa vários anos, até que cheio de pó e com imensas equimoses, ficou tão degradado que, com muita pena minha, tive de o deitar fora. Tenho pena de não o ter fotografado.
Estas lembranças vieram à tona por ter feito umas pesquisas na Net e, sem querer, ter dado com a expedição do norueguês. Não sei se o homem era rico para poder meter-se numa aventura daquelas, mas pobre não seria. Eu penso como bom seria ter dinheiro, tempo e coragem para me meter numa aventura daquelas. Em tempos de confinamento a minha mente navegou durante um bom bocado, na jangada Kon-Tiki.
Vivi em locais difíceis e passei alguns perigos. Tive aventuras de caça incríveis em zonas de guerra, mas nada se deve comparar ao que aquele maduro e os seus companheiros viveram durante 101 dias em pleno Pacífico. Recordo agora que já tinha escrito algo sobre o meu Kon-Tiki. Não importa, recordei-o de novo.


João Paulo Telo, Ernani Balsa e 17 outras pessoas
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terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Karnal e Eu.

 

Não conhecia Leandro Karnal. Normalmente não me interesso muito por intelectuais brasileiros. Encontrei-o na Net e o facto de ser ateu moveu a minha curiosidade. Logo numa das primeiras audições achei que homem tinha tido uma experiência religiosa muito parecida com a minha. O homem é um portento. Historiador, filósofo e professor, fala com uma dicção excelente e uma clareza extraordinária. Claro que comparar Karnal comigo é um abuso da minha parte. Até devia mudar o título deste meu texto. A sua estrutura intelectual não tem nada a ver comigo. Karnal fala com todos de uma forma tão serena e atenciosa que prende crentes e não crentes. Conhecedor da história das religiões, ao falar não hostiliza ninguém e apresenta factos das religiões como se os considerasse totalmente verdadeiros. E é aqui que está uma grande diferença de mim quando falo de religiões. Eu sou muito mais acutilante e às vezes demasiado agressivo na apresentação das minhas ideias. “Mea culpa”. Karnal fez-me ver que tentar incutir na cabeça dos outros aquilo que nós cremos ser a verdade, é errado. Mas, se pudesse estar a sós com Karnal, gostaria imenso de lhe fazer umas perguntas. Vamos ver se consigo expor as minhas ideias. Karnal, em várias das suas exposições, apresenta passagens dos evangelhos, como se as mesmas tivessem sido verdades, não sei se para colocar nas mentes dos ouvintes a ideia de que aquilo de que fala é uma forma de regra social, se acredita mesmo na veracidade do facto. E isso confunde-me. Vamos, pois, tentar criar em pensamento, uma sala onde eu e Karnal estivéssemos juntos. Então eu teria uma pergunta para ele:

“Dr. Karnal, o senhor nas suas dissertações cita muitas vezes frases e actos de Jesus. E, nessas citações, dá a ideia que acredita na veracidade daquilo que foi dito. Sendo o Senhor, além de filósofo um historiador, de certeza sabe que está provado que o evangelho mais antigo, foi escrito 70 anos depois da pretensa data da morte de Jesus, e o último cerca de 100 anos depois. Também sabe que os mesmos não foram escritos por Mateus, Marcos, Lucas e João, mas sim segundo estes. Portanto, estes homens, se por acaso seguiram Jesus, teriam na altura no mínimo 20 anos. Parece-me que pessoas com 90 anos ou mais não estariam em condições de relatar com exactidão tudo aquilo que está escrito em grego, por escribas que certamente ouviram estes relatos em aramaico, língua que se falaria nessa época na Palestina. Por outro lado, também certamente sabe que evangelhos houve muitos, mas canónicos só esses quatro, por serem os únicos que endeusavam Jesus. Como grande historiador que é e, também um excelente conhecedor da história das religiões, certamente se apercebeu da similitude da história de Jesus com outros deuses redentores, tais como Hórus, Mitra, Dionísio e mais alguns. Quer-me parecer, portanto, que tais escritos não passam de mitologias tais como a vida dos deuses, egípcios, gregos, romanos, etc… será assim?”

Não sei o que me responderia, mas certamente não me deixaria na ignorância.

Aproveito para recomendar que vão à Net ver e ouvir Leandro Karnal. Vale a pena.