sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Goa: quase seis décadas depois

 

Hoje tomei a liberdade de postar aqui no meu blog uma carta publicada no Diário de Notícias, da autoria do meu amigo Professor Doutor Valentino Viegas, cidadão português originário de Goa.


"18 Dezembro 2020 — 10:24

Em finais de 1960, quando vivia em Goa, creio que nem o governo português nem eu imaginávamos que um ano depois, precisamente no dia 18 de Dezembro de 1961, Goa pudesse ser invadida, conquistada e anexada pela União Indiana, pois o intransigente Salazar acreditava que a Inglaterra e a NATO dissuadiriam Nehru de tomar essa iniciativa e este não gostaria de ver o seu nome manchado com prática de uma política belicista. Todavia, a realidade é por demais conhecida: após consumação do facto, uma montanha de gelo interpôs-se entre os dois países.

Com a revolução de 25 de Abril de 1974, Portugal, na pessoa do seu Ministro de Negócios Estrangeiros, Dr. Mário Soares, em 31 de Dezembro desse mesmo ano, aceitou de forma oficial a integração e reconheceu a situação de facto existente em Goa, sem conhecimento nem mandato dos goeses, e sem negociar e garantir um estatuto especial para Goa.

Todavia, no artigo IV do "Decreto n.º 206/75 do Tratado entre a Índia e Portugal Relativo ao Reconhecimento da Soberania da Índia sobre Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar Aveli e Assuntos Correlativos", consta:

Será concluído o mais brevemente possível um acordo cultural entre Portugal e a Índia. As Partes Contratantes acordam em tomar medidas para desenvolver contactos no campo cultural e, em particular, na promoção da língua e cultura portuguesas e na conservação de monumentos históricos e religiosos em Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar Aveli.

Assim, mais uma vez, desde a conquista portuguesa daquela terra oriental, Portugal e Índia decidiram sobre Goa e jamais consentiram que os goeses deliberassem sobre o seu futuro.

Como escreveu o general António Ramalho Eanes, Presidente da República Portuguesa, "Outro destino merecia Goa, bem diferente do que sofreu"..."possuía ou podia criar todas as condições para decidir sobre o seu futuro e viver em paz e progresso"...faltou a Salazar o golpe de asa para fazer de Goa o Brasil do Oriente ("A injustiçada Goa", in Revisitar Goa, Damão e Diu, pp. 15-19).

Entretanto, lutando pelos seus direitos, no "The Goa Opinion Poll", - que na prática tratou-se de um referendo -, realizado em 16 de Janeiro de 1967, os goeses decidiram permanecer na União Indiana, votando contra a sua fusão no Estado de Maharastra; posteriormente, em 30 de Maio de 1987, conseguiram que Goa fosse declarado Estado autónomo; e em 20 de Agosto de 1992 o concani foi reconhecido como língua oficial.

Contudo, a negligência no cumprimento do artigo IV do Decreto n.º 206/75, designadamente, "na promoção da língua e cultura portuguesas", revelou-se por uma lenta agonia da utilização da língua portuguesa nos meios de comunicação social em Goa que até o resistente O Heraldo, primeiro diário de todo o Ultramar português, em 1983, deixou de publicar na língua de Camões.

Porém, Homem Cristo Prazeres da Costa, filho do falecido Amadeu Prazeres da Costa, antigo redactor principal e editor de O Heraldo, com apoio do actual editor Alexandre Moniz Barbosa e de Raúl Fernandes, dono e editor-chefe do mesmo jornal, a partir de 6 de Setembro de 2020, introduziram, nesse jornal, uma secção semanal em língua portuguesa, que tem vindo a ser publicada regularmente.

Sabemos que existe um plano de infra-estruturas para Goa, - com conversão de auto-estrada NH4A em quatro faixas, a duplicação da linha férrea, para acelerar o processo do transporte de carvão, e instalação da linha de transmissão eléctrica para facilitar esse transporte -, que ameaça a floresta e a vida selvagem da área protegida do santuário "Bhagwan Mahaveer" e Mollem National Park, e poderá provocar o corte de muitas dezenas de milhares de árvores.

Sabemos também que de 1 de Janeiro a 30 de Junho de 2021, Portugal vai assumir a presidência rotativa do Conselho da União Europeia, cujo lema será: «Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital».

António Costa, primeiro-ministro português, numa conferência realizada na Universidade Católica, em Lisboa, defendeu que "Portugal destacou-se sempre na Europa como uma plataforma de ligação à escala global" e afirmou que "em matéria de política externa, a jóia da coroa da presidência portuguesa será a realização da cimeira de todos os líderes europeus com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, em 08 de Maio, no Porto".

Em relação ao lema português, as palavras de António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas, avalizam a justeza e o valor dos objectivos traçados, em contraposição com os da Índia, quando afirma que a Índia precisa de parar de construir infra-estruturas baseadas em carvão e focar-se na geração de energia renovável para ajudar na luta global contra as mudanças climáticas e tirar a sua população da pobreza. Acrescentando "Investir em combustíveis fósseis significa mais mortes, doenças e aumento dos custos de saúde". "Resumidamente, é um desastre humano e ruim para a economia".

Como português e goês, que prezo ser, gostaria de lembrar ao meu primeiro-ministro, Dr. António Costa, que Portugal deve honrar os seus compromissos, designadamente o artigo IV do Decreto n.º 206/75, e jamais esquecer que Goa foi a jóia da coroa portuguesa, terra que deu fama e glória a Portugal em todo o mundo.

Por isso, gostaria de lhe fazer dois pedidos:

Primeiro: - Como a língua é uma mais-valia universalmente reconhecida e o português é a sexta língua mais falada no mundo, - para benefício da Índia e Portugal, que propusesse ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, a feitura de um acordo conjunto entre Portugal, Índia e Goa para a promoção e dinamização da língua e cultura portuguesa em Goa.

Segundo: - Como o lema da presidência portuguesa será: «Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital», - e o transporte de carvão importado para a Índia é também feito através do território de Goa, a partir do porto de Mormugão, com grave prejuízo para a saúde dos goeses -, que sensibilizasse e solicitasse ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, que seguisse o conselho do Dr. António Guterres e poupasse Goa mandando reavaliar o nefasto problema do transporte de carvão através do território goês, que tem provocado doenças respiratórias graves e protestos populares, havendo até quem escreva nos jornais, em Goa, dizendo que estamos perante um novo colonialismo.

Tomo a liberdade de lembrar ao Dr. António Costa, primeiro-ministro português, que, tendo Portugal uma dívida de gratidão para com Goa, não pode abandoná-la, permitindo que seja sujeita a uma política governamental perniciosa para a sua biodiversidade e saúde populacional."

Historiador


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Carpe Diem

 Raramente posto aqui no meu blog algo que não seja meu. Hoje vou aqui transcrever um artigo do meu amigo Professor Doutor Valentino Viegas. Um português natural de Goa. Historiador, escritor e meu companheiro diário da piscina de Benfica. Aqui vai. Apreciem:


 Carpe Diem
A eternidade é ilusão que alimenta os seres humanos.
Ao invocar as recordações da meninice navego nas águas serenas da perenidade da vida.
Não me recordo a partir de quando é que ganhei consciência de não sermos eternos e comecei a enfrentar a realidade, segundo a qual, quem nasce, fatalmente morre, nem sei se a partir dessa tomada de consciência a minha atitude perante a vida sofreu alterações substanciais ou mudanças radicais.
Embora a finitude da existência humana seja uma verdade inquestionável, comporto-me como se a morte só dissesse respeito aos outros e continuo a planificar os meus passos como se o futuro não tivesse balizas temporais e pudesse ser gerido a meu bel-prazer.
Quando me questiono se tenho medo da morte, para ser sincero, não sei como responder. Claro que se um médico, da minha inteira confiança, me dissesse que teria no máximo um mês de vida, apanharia um grande susto. Todavia, creio que encararia a situação, por ele considerada irreversível, de uma forma racional, tentando recompor-me do choque e começando a definir prioridades.
A primeira seria como prolongar a vida de forma responsável, – não apenas com ausência da doença, mas sobretudo com bem-estar físico, mental e social -, porque acredito que possuímos forças internas suficientes capazes de fintar ou atrasar a morte desde que saibamos como recorrer e utilizá-las.
Durante o período da guerra, no teatro de operações em Angola, nos momentos mais difíceis, não me lembro de ter pensado na minha morte. Sabia que ela podia ocorrer a qualquer momento, mas por razões intuídas que não sei explicar, estava seguro de ser um assunto que não me dizia respeito.
Embora não seja adepto das redes sociais, no entanto, troco correspondência electrónica com amigos e conhecidos.
Desde que a Covid-19 invadiu o mundo, disseminou os seus malefícios e começou a fazer parte do nosso vocabulário quotidiano, tenho recebido mensagens dos meus correspondentes que me aconselham “carpe diem”, citando parte de uma das Odes do poeta latino Horácio “carpe diem quam minimum credula postero”, ou seja, aproveita o dia e confia o mínimo possível no amanhã.
Realmente existem pessoas que não se cansam de descobrir motivos para andarem preocupadas, tristes e angustiadas. Tudo lhes causa transtorno e provoca medos. No dia-a-dia vivem apavoradas por quererem movimentar-se e não conseguirem, porque transportam às costas uma volumosa mochila carregada de culpas e recriminações. Andam deprimidas por não poderem libertar-se dos traumas incriminatórios que os afligem. Acusam-se constantemente por terem tomado determinadas atitudes e decisões, em certo momento de vida, em vez de outras, como se pudessem mudar o passado e, a partir daí, reconstituir a vida rumando noutra direcção.
Essa situação torna-se ainda mais grave, quando vivem também ansiosas pois, além de transportarem a mochila às costas, carregam ainda um pesado saco, pendurado ao pescoço e colocado na dianteira do peito, onde atafulham planos futuros, com estabelecimento de metas complicadas e difíceis de serem cumpridas.
Apetece-me perguntar-lhes: acham que podem andar, ou dar o primeiro passo, sem se libertarem do pesado fardo da mochila e do saco pendurado ao pescoço?
Todavia, nas redes sociais, há respostas para todos os gostos e, como sou alvo preferencial de Covid-19, despacham-me com carpe diem.
Na verdade, com a minha provecta idade, depois de ter estudado em tantos livros, investigado em numerosos arquivos, discutido inúmeros assuntos, esclarecido algumas dúvidas, conhecido muitos países e meditado diversas vezes, inferi que, em termos de conhecimento e sabedoria, ando a subir o primeiro degrau de uma extensa escadaria em ziguezague cujo termo não consigo enxergar.
Como a experiência me foi revelando que o futuro, mesmo quando planificado, pode ser imprevisível, há muito cheguei à conclusão de que o melhor é desfrutar o dia-a-dia e tirar o melhor partido dos encantos da vida. Por isso, sorrio e procuro ser positivo, como me recomendam os entendidos.
Continuo na ilusão de que, enquanto lerem este ou outros textos meus ou se lembrarem de mim, hei-de permanecer vivo.
Porém, há quem seja mais sofisticado e se apegue ao conceito de transmigração, segundo o qual quando um indivíduo morre, morre apenas o seu corpo, mas o espírito liberta-se do corpo e transmigra, integrando-se num outro invólucro em função do valor das acções praticadas durante a sua existência, reiniciando assim um novo ciclo de vida. Outros ainda vivem esperançados que, depois da morte, a sua alma suba aos céus e viva em comunhão com Deus.
Enquanto vivo no meio desta pandemia com as minhas dúvidas e inquietações, resta-me participar na cultura de responsabilidade, individual e colectiva, contribuindo para impedir a disseminação de Covid-19 pois, como dizem as autoridades oficiais, “cuidar de si é cuidar de todos”.
Valentino Viegas
Lisboa, 2 de Novembro de 2020.
Luis Vicente