sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Goa: quase seis décadas depois

 

Hoje tomei a liberdade de postar aqui no meu blog uma carta publicada no Diário de Notícias, da autoria do meu amigo Professor Doutor Valentino Viegas, cidadão português originário de Goa.


"18 Dezembro 2020 — 10:24

Em finais de 1960, quando vivia em Goa, creio que nem o governo português nem eu imaginávamos que um ano depois, precisamente no dia 18 de Dezembro de 1961, Goa pudesse ser invadida, conquistada e anexada pela União Indiana, pois o intransigente Salazar acreditava que a Inglaterra e a NATO dissuadiriam Nehru de tomar essa iniciativa e este não gostaria de ver o seu nome manchado com prática de uma política belicista. Todavia, a realidade é por demais conhecida: após consumação do facto, uma montanha de gelo interpôs-se entre os dois países.

Com a revolução de 25 de Abril de 1974, Portugal, na pessoa do seu Ministro de Negócios Estrangeiros, Dr. Mário Soares, em 31 de Dezembro desse mesmo ano, aceitou de forma oficial a integração e reconheceu a situação de facto existente em Goa, sem conhecimento nem mandato dos goeses, e sem negociar e garantir um estatuto especial para Goa.

Todavia, no artigo IV do "Decreto n.º 206/75 do Tratado entre a Índia e Portugal Relativo ao Reconhecimento da Soberania da Índia sobre Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar Aveli e Assuntos Correlativos", consta:

Será concluído o mais brevemente possível um acordo cultural entre Portugal e a Índia. As Partes Contratantes acordam em tomar medidas para desenvolver contactos no campo cultural e, em particular, na promoção da língua e cultura portuguesas e na conservação de monumentos históricos e religiosos em Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar Aveli.

Assim, mais uma vez, desde a conquista portuguesa daquela terra oriental, Portugal e Índia decidiram sobre Goa e jamais consentiram que os goeses deliberassem sobre o seu futuro.

Como escreveu o general António Ramalho Eanes, Presidente da República Portuguesa, "Outro destino merecia Goa, bem diferente do que sofreu"..."possuía ou podia criar todas as condições para decidir sobre o seu futuro e viver em paz e progresso"...faltou a Salazar o golpe de asa para fazer de Goa o Brasil do Oriente ("A injustiçada Goa", in Revisitar Goa, Damão e Diu, pp. 15-19).

Entretanto, lutando pelos seus direitos, no "The Goa Opinion Poll", - que na prática tratou-se de um referendo -, realizado em 16 de Janeiro de 1967, os goeses decidiram permanecer na União Indiana, votando contra a sua fusão no Estado de Maharastra; posteriormente, em 30 de Maio de 1987, conseguiram que Goa fosse declarado Estado autónomo; e em 20 de Agosto de 1992 o concani foi reconhecido como língua oficial.

Contudo, a negligência no cumprimento do artigo IV do Decreto n.º 206/75, designadamente, "na promoção da língua e cultura portuguesas", revelou-se por uma lenta agonia da utilização da língua portuguesa nos meios de comunicação social em Goa que até o resistente O Heraldo, primeiro diário de todo o Ultramar português, em 1983, deixou de publicar na língua de Camões.

Porém, Homem Cristo Prazeres da Costa, filho do falecido Amadeu Prazeres da Costa, antigo redactor principal e editor de O Heraldo, com apoio do actual editor Alexandre Moniz Barbosa e de Raúl Fernandes, dono e editor-chefe do mesmo jornal, a partir de 6 de Setembro de 2020, introduziram, nesse jornal, uma secção semanal em língua portuguesa, que tem vindo a ser publicada regularmente.

Sabemos que existe um plano de infra-estruturas para Goa, - com conversão de auto-estrada NH4A em quatro faixas, a duplicação da linha férrea, para acelerar o processo do transporte de carvão, e instalação da linha de transmissão eléctrica para facilitar esse transporte -, que ameaça a floresta e a vida selvagem da área protegida do santuário "Bhagwan Mahaveer" e Mollem National Park, e poderá provocar o corte de muitas dezenas de milhares de árvores.

Sabemos também que de 1 de Janeiro a 30 de Junho de 2021, Portugal vai assumir a presidência rotativa do Conselho da União Europeia, cujo lema será: «Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital».

António Costa, primeiro-ministro português, numa conferência realizada na Universidade Católica, em Lisboa, defendeu que "Portugal destacou-se sempre na Europa como uma plataforma de ligação à escala global" e afirmou que "em matéria de política externa, a jóia da coroa da presidência portuguesa será a realização da cimeira de todos os líderes europeus com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, em 08 de Maio, no Porto".

Em relação ao lema português, as palavras de António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas, avalizam a justeza e o valor dos objectivos traçados, em contraposição com os da Índia, quando afirma que a Índia precisa de parar de construir infra-estruturas baseadas em carvão e focar-se na geração de energia renovável para ajudar na luta global contra as mudanças climáticas e tirar a sua população da pobreza. Acrescentando "Investir em combustíveis fósseis significa mais mortes, doenças e aumento dos custos de saúde". "Resumidamente, é um desastre humano e ruim para a economia".

Como português e goês, que prezo ser, gostaria de lembrar ao meu primeiro-ministro, Dr. António Costa, que Portugal deve honrar os seus compromissos, designadamente o artigo IV do Decreto n.º 206/75, e jamais esquecer que Goa foi a jóia da coroa portuguesa, terra que deu fama e glória a Portugal em todo o mundo.

Por isso, gostaria de lhe fazer dois pedidos:

Primeiro: - Como a língua é uma mais-valia universalmente reconhecida e o português é a sexta língua mais falada no mundo, - para benefício da Índia e Portugal, que propusesse ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, a feitura de um acordo conjunto entre Portugal, Índia e Goa para a promoção e dinamização da língua e cultura portuguesa em Goa.

Segundo: - Como o lema da presidência portuguesa será: «Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital», - e o transporte de carvão importado para a Índia é também feito através do território de Goa, a partir do porto de Mormugão, com grave prejuízo para a saúde dos goeses -, que sensibilizasse e solicitasse ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, que seguisse o conselho do Dr. António Guterres e poupasse Goa mandando reavaliar o nefasto problema do transporte de carvão através do território goês, que tem provocado doenças respiratórias graves e protestos populares, havendo até quem escreva nos jornais, em Goa, dizendo que estamos perante um novo colonialismo.

Tomo a liberdade de lembrar ao Dr. António Costa, primeiro-ministro português, que, tendo Portugal uma dívida de gratidão para com Goa, não pode abandoná-la, permitindo que seja sujeita a uma política governamental perniciosa para a sua biodiversidade e saúde populacional."

Historiador


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Carpe Diem

 Raramente posto aqui no meu blog algo que não seja meu. Hoje vou aqui transcrever um artigo do meu amigo Professor Doutor Valentino Viegas. Um português natural de Goa. Historiador, escritor e meu companheiro diário da piscina de Benfica. Aqui vai. Apreciem:


 Carpe Diem
A eternidade é ilusão que alimenta os seres humanos.
Ao invocar as recordações da meninice navego nas águas serenas da perenidade da vida.
Não me recordo a partir de quando é que ganhei consciência de não sermos eternos e comecei a enfrentar a realidade, segundo a qual, quem nasce, fatalmente morre, nem sei se a partir dessa tomada de consciência a minha atitude perante a vida sofreu alterações substanciais ou mudanças radicais.
Embora a finitude da existência humana seja uma verdade inquestionável, comporto-me como se a morte só dissesse respeito aos outros e continuo a planificar os meus passos como se o futuro não tivesse balizas temporais e pudesse ser gerido a meu bel-prazer.
Quando me questiono se tenho medo da morte, para ser sincero, não sei como responder. Claro que se um médico, da minha inteira confiança, me dissesse que teria no máximo um mês de vida, apanharia um grande susto. Todavia, creio que encararia a situação, por ele considerada irreversível, de uma forma racional, tentando recompor-me do choque e começando a definir prioridades.
A primeira seria como prolongar a vida de forma responsável, – não apenas com ausência da doença, mas sobretudo com bem-estar físico, mental e social -, porque acredito que possuímos forças internas suficientes capazes de fintar ou atrasar a morte desde que saibamos como recorrer e utilizá-las.
Durante o período da guerra, no teatro de operações em Angola, nos momentos mais difíceis, não me lembro de ter pensado na minha morte. Sabia que ela podia ocorrer a qualquer momento, mas por razões intuídas que não sei explicar, estava seguro de ser um assunto que não me dizia respeito.
Embora não seja adepto das redes sociais, no entanto, troco correspondência electrónica com amigos e conhecidos.
Desde que a Covid-19 invadiu o mundo, disseminou os seus malefícios e começou a fazer parte do nosso vocabulário quotidiano, tenho recebido mensagens dos meus correspondentes que me aconselham “carpe diem”, citando parte de uma das Odes do poeta latino Horácio “carpe diem quam minimum credula postero”, ou seja, aproveita o dia e confia o mínimo possível no amanhã.
Realmente existem pessoas que não se cansam de descobrir motivos para andarem preocupadas, tristes e angustiadas. Tudo lhes causa transtorno e provoca medos. No dia-a-dia vivem apavoradas por quererem movimentar-se e não conseguirem, porque transportam às costas uma volumosa mochila carregada de culpas e recriminações. Andam deprimidas por não poderem libertar-se dos traumas incriminatórios que os afligem. Acusam-se constantemente por terem tomado determinadas atitudes e decisões, em certo momento de vida, em vez de outras, como se pudessem mudar o passado e, a partir daí, reconstituir a vida rumando noutra direcção.
Essa situação torna-se ainda mais grave, quando vivem também ansiosas pois, além de transportarem a mochila às costas, carregam ainda um pesado saco, pendurado ao pescoço e colocado na dianteira do peito, onde atafulham planos futuros, com estabelecimento de metas complicadas e difíceis de serem cumpridas.
Apetece-me perguntar-lhes: acham que podem andar, ou dar o primeiro passo, sem se libertarem do pesado fardo da mochila e do saco pendurado ao pescoço?
Todavia, nas redes sociais, há respostas para todos os gostos e, como sou alvo preferencial de Covid-19, despacham-me com carpe diem.
Na verdade, com a minha provecta idade, depois de ter estudado em tantos livros, investigado em numerosos arquivos, discutido inúmeros assuntos, esclarecido algumas dúvidas, conhecido muitos países e meditado diversas vezes, inferi que, em termos de conhecimento e sabedoria, ando a subir o primeiro degrau de uma extensa escadaria em ziguezague cujo termo não consigo enxergar.
Como a experiência me foi revelando que o futuro, mesmo quando planificado, pode ser imprevisível, há muito cheguei à conclusão de que o melhor é desfrutar o dia-a-dia e tirar o melhor partido dos encantos da vida. Por isso, sorrio e procuro ser positivo, como me recomendam os entendidos.
Continuo na ilusão de que, enquanto lerem este ou outros textos meus ou se lembrarem de mim, hei-de permanecer vivo.
Porém, há quem seja mais sofisticado e se apegue ao conceito de transmigração, segundo o qual quando um indivíduo morre, morre apenas o seu corpo, mas o espírito liberta-se do corpo e transmigra, integrando-se num outro invólucro em função do valor das acções praticadas durante a sua existência, reiniciando assim um novo ciclo de vida. Outros ainda vivem esperançados que, depois da morte, a sua alma suba aos céus e viva em comunhão com Deus.
Enquanto vivo no meio desta pandemia com as minhas dúvidas e inquietações, resta-me participar na cultura de responsabilidade, individual e colectiva, contribuindo para impedir a disseminação de Covid-19 pois, como dizem as autoridades oficiais, “cuidar de si é cuidar de todos”.
Valentino Viegas
Lisboa, 2 de Novembro de 2020.
Luis Vicente

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Tomaz Alcaide

Hoje, ao ouvir Biemiamino Gigli, lembrei-me do nosso esquecido Tomaz Alcaide https://pt.wikipedia.org/wiki/Tom%C3%A1s_Alcaide

Um dos melhores intérpretes das óperas, principalmente de Geatano Donizetti. Parece impossível, mas um cantor como ele, foi completamente esquecido pelo público português. Conta-se que Gigli em Milão, teve uma constipação e a ópera Elixir do Amor de Donizetti, teria de ser interrompida. Alguém lembrou que havia um cantor português que interpretava muito bem as óperas deste autor. Foi chamado à pressa e substituiu de tal maneira o Gigli que, quando este melhorou, o público já não permitiu a troca e Tomaz Alcaide continuou. Tomaz Alcaide foi considerado o cantor que melhor interpretava as árias "Spirto Gentile" da ópera Favorita e "Una furtiva lágrima" do Elixir do Amor, ambas de Donizetti. Curiosamente Alcaide foi aluno do Colégio Militar e cursou medicina, abandonando depois para seguir canto em Itália. Cantou e foi apreciado em quase todo o mundo. Em Portugal foi mais conhecido pelas canções que interpretou no Cinema e no Teatro, como podem ler na Wikipédia. Tratámos sempre muito mal os nossos bons artistas. https://www.youtube.com/watch?v=7av7jSARpw8
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domingo, 15 de novembro de 2020

A quinta do meu padrinho

 


Quando nascemos temos de ser registados. Nesse registo eram necessárias duas testemunhas. Não sei de onde veio o conhecimento, mas um dos meus padrinhos foi Joaquim Ribeiro de Carvalho https://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_Ribeiro_de_Carvalho. Na quinta da Bela Vista passei muitos dias de brincadeira e assisti à feitura de vinho, matança de porco, etc. Lembro-me que não gostei nada da primeira matança a que assisti. O pobre bicho fez tal berraria quem me impressionou imenso. O meu padrinho morreu em 1942. Eu tinha ido para o Cacém em 1941 com apenas 4 anos. Conheci-o, portanto apenas um ano, mas tenho na memória a sua figura. Era um homem imponente, alto, já um pouco gordo. Usava óculos e andava sempre pela quinta dando ordens e verificando os afazeres dos empregados. Usava botins de cano, de atanado, com solas cardadas. Gostava de o ver, mas infundia, na minha mentalidade de criança, um misto de respeito e receio. Um dia, o seu motorista, com um carro enorme, americano, tipo Dodge ou coisa parecida, fez um curto recuo para arrumar o carro, não reparando que o meu padrinho estava atrás e tocou-lhe nas pernas desequilibrando-o. Homem pesado como era, caiu desamparado e bateu com a cabeça na estrutura do carro, naquele tempo em chapa muito forte. Chamaram-se os bombeiros pois a ferida na cabeça era um pouco grande e sangrava imenso. Foi operado no Hospital de São José a um traumatismo craniano com fractura. Veio para casa em recobro.  Lembro-me de estar ao pé dele, sentado na varanda ao sol, onde passava os dias lendo. Passados uns tempos, sentindo-se mal, voltou ao hospital tendo sido operado de novo. Nessa operação extraíram-lhe uma lasca óssea que tinha passado despercebida na primeira intervenção. Já não regressou e morreu pouco tempo depois. No Cacém houve grande consternação pela sua morte.

Continuei a visitar a quinta mas, já não com assiduidade. A quinta era grande e havia zonas da mesma que nós, os rapazes da zona, frequentávamos saltando os muros e fazendo as nossas explorações. Foi num desses “assaltos” que descobri uma enorme gruta onde se encontrava uma cama já meio desfeita, uma mesa e alguns utensílios de cozinha. Viam-se também alguns livros meio desfeitos e manchados pela humidade. Mais tarde vim a saber que era um refúgio onde o meu padrinho se escondia da polícia política, a famigerada PIDE. Como podem ver no artigo da Wikipédia, Ribeiro de Carvalho foi um defensor da 1ª República e obviamente um elemento contra ao Estado Novo. O jornal República foi muitas vezes censurado e o meu padrinho procurado pela PIDE. Os seus companheiros de luta contra Salazar, Araújo e Sá e o Dr. Ramon de La Feria, passaram alguns anos na prisão, mas Ribeiro de Carvalho nunca era encontrado por se esconder na tal gruta que não era fácil de descobrir. Nunca soube se o meu Pai foi ou não incomodado por essa amizade. No Cacém, a quinta da Bela Vista, foi sempre apelidada por Quinta Ribeiro De Carvalho e a minha rua também tinha o seu nome. O seu filho, Rui Ribeiro de Carvalho, não residindo lá, manteve a quinta durante muitos anos. Foi nessa quinta que comecei a treinar os meus tiros às rolas, pois ali era um ponto de passagem. O filho mais velho do motorista, cuja família continuou a morar numa das residências, era um grande caçador e deu-me algumas lições de como atirar. Dei cabo de muitos cartuchos ao meu Pai. Desde que a minha mãe e irmã morreram, que deixei de ir ao Cacém, mas quando por lá passava, junto aos muros de bonitos azulejos portugueses, lembrava sempre a figura de Ribeiro de Carvalho, na sua imponência, com as calças metidas para dentro dos botins, a comandar as operações. Os seus amigos diziam que o homem tinha sido assassinado por propositadamente lhe terem lá deixado a esquírola óssea. Claro que não acredito que médicos tivessem entrado nessa. Ribeiro de Carvalho foi uma figura que me marcou, mais pelo que vim a saber do que pelo pouco que conheci dado a idade que tinha. Hoje, ao fazer umas pesquisas na NET reencontrei-o.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

O COVID

 


Pois. Esse bicho ranhoso e peganhoso, com cara de extraterrestre com cornetas nos cornos, esse miasma peçonhento que mata que se farta, principalmente velhos. E continuo a dizer, pois! Se me apanha lá vou para o bé-lé-léu, mais a mais com a pneumonia que tive vai para 13 anos. Estávamos em 2007, era o último dia de caça e tínhamos marcado a reunião de prestação de contas e eu era o tesoureiro. Estava constipado, a mulher idem e a sogra também. Claro que não deixei de ir mesmo com uma tosse de cão e a espirrar de 5 em 5 minutos. Esta mania do espírito de missão. Cacei a manhã toda, estava uma ventania do caraças. Após almoço fizemos a nossa reunião e eu apresentei contas. Tínhamos uma máquina de lançar pratos e alguém sugeriu que fizéssemos um torneio. Com tossidela daqui e espirro dali ainda ganhei o torneio a 15 pratos. Fui o único a partir 10. No fim do torneio a tosse era cavernosa. No dia seguinte tive de mandar a minha sogra para o hospital e eu fui à consulta urgente. Mandaram-me para casa com montes de comprimidos e xaropes. Entretanto a minha Sogra faleceu. No dia do velório uma médica amiga ao ver a minha tosse diz-me que me quer ver no dia seguinte no Pulido Valente onde prestava serviço. Já não saí de lá. Foram 10 dias para me restabelecer. Nem fui ao funeral. E agora? Se este Covid me pega…

Pois. Lá estou eu com o pois. Pois é. Houve uma suspeita de contágio e eu “corro” para o hospital. A mulher dá positivo e eu negativo. Grande caca. Divido a casa ao meio, vou dormir para o maple… pois sim, no dia seguinte começo com febre e no outro dia volto ao hospital. Ora toma; Positivo. E agora? Benuron, Brufene e nada mais. Digo-vos: Tive constipações mais chatas. Ao fim de 10 dias não tinha sintomas, ao fim de 14 estava com alta. Isto é que era o Covid? Afinal mata velhos, mas não todos. Estou convencido que só indivíduos diminuídos fisicamente ou com outras doenças, são apanhados pela foice covídica.

Ouvindo as notícias parece que 96% dos “agarrados” são tratados em casa apenas pelo tempo. Dos outros 4% que são hospitalizados só 0,5% vai para os cuidados intensivos.

E pronto, lá mandámos o Covid ás couves e o gajo nem quis saber se eu já tinha sido ou não um pneumónico. A grande chatice é que isto é altamente contagiante e o pessoal tem que entrar em confinamento e não trabalha, o que pode fazer parar um país. Agora vou sossegadamente esperar por uma vacina e, se vier o tal remédio do Trampas, vamos todos tomá-lo que o rapaz precisa de reactivar a economia. Cuidem-se.

sábado, 10 de outubro de 2020


Pã, sentado na rocha, olhava as suas patas de bode. De que lhe servia ser um deus se toda a gente fugia dele em “pânico”. Ele que adorava os bosques e os animais. Como ele gostava de disfrutar de uma boa sesta após a refeição. Todas as tardes dormia refastelado e ai de quem o acordasse. Aí é que ele ficava furioso. Muito mais tarde um tipo aproveitou-se disso e até fez uma “musiquinha” sobre o assunto. Parece que se chamava Debussy (1). Mas Pã culpava o seu pai, que ele não sabia bem quem era. Uns diziam ser filho de Zeus e de uma cabra, outros que seria filho de Hermes. Parece impossível, filho de uma cabra. Mais tarde seria crime de zoofilia. Pobre da cabra Amalteia, ser vítima daquele sátiro. Bem, isso ele perdoava porque também era assim, não podia ver fêmea que logo o seu falo se erguia com fúria. Mas a sua preferida foi a náiade (ninfa dos rios) Sínrinx. Pena que se tivesse amedrontado e, para lhe fugir, se tenha transformado em caniços aquáticos. Não a teve, mas dos seus caniços construiu uma flauta com bocados de tamanhos vários. Chamou-lhe siringe. Mais tarde chamaram-lhe flauta de Pã. O seu som era tão mavioso que encantava todos os habitantes dos bosques. Uma das suas apaixonadas foi Selene. Tão redondinha., tão luminosa. Poderiam ter tido muitos selenitas juntos, mas Pã não era deus para se prender. O seu aspecto animalesco afastava os curiosos e assustava os habitantes dos bosques e os humanos, mais tarde, mudaram-lhe o nome. Os romanos chamaram-lhe Silvano e Fauno. Devido à sua figura, os cristãos, associaram-no ao Diabo. Andou pelos bosques ajudando agricultores e caçadores. Acabou castigado pelos deuses e colocado no universo como constelação, Capricórnio, ficando a fazer parte dos signos de Zodíaco

 

 

(1)    - https://www.youtube.com/watch?v=Y9iDOt2WbjY

 

Todas as coisas maravilhosas

Fui ver o Ivo Canelas ao estúdio da Praça da Ribeira num monólogo com o nome supra. Bem, não se poderá chamar um monólogo dado que o actor põe o público a interferir. Distribui uns papeis com um número e uma frase e pede para que quando disser esse número o espectador diga a frase em voz bem audível, o que em alguns não foi o caso. Também, durante a sua actuação, chama uns espectadores que terão de desempenhar pequenos papeis. A peça é da autoria de um dramaturgo inglês chamado Duncan McMillan, mas notam-se pequenas adaptações. O tema é um pouco mórbido/depressivo, mas o rapaz compensa com alguma vivacidade e muito movimento, amenizando bastante a coisa.
Um rapaz começa, aos sete anos, uma lista de várias coisas que considera serem as mais maravilhosas. Essa lista destina-se a sua mãe depressiva com tendências suicidas. Ele tenta chegar a um milhão de coisas para preencher a lista. Entretanto, vai contando episódios da sua vida em que descreve um pai pouco presente e alheado, mas ele tenta não pensar que esse afastamento sentimental seja culpado do problema da mãe. Entretanto, o actor, vai dizendo os números e os espectadores vão dizendo as frases anteriormente entregues. Apesar do esforço do rapaz, que, entretanto, se casa, mas que, com a sua preocupação em tentar fazer com que a mãe encontre na vida algo a que se agarrar, acaba por não ser nem fazer a companheira feliz. A lista é entregue à mãe e ao pai, mas a dúvida que sequer tenha sido lida permanece, e acaba por não produzir o efeito desejado. A mãe põe termo à vida. Um pouco deprimente, mas o actor vai bem e torna a peça bastante mais leve do que o tema levaria a crer.
O estúdio é grande com cadeiras à volta em rectângulo, a duas filas e com espaço entre elas. Bastantes medidas de desinfecção e o próprio actor, a meio, vai desinfectando locais, materiais e bancos usados durante a representação.
Não é nenhuma obra-prima, mas vê-se com agrado e mereceu grande ovação final. De notar que alguns espectadores chamados a intervir se portaram bastante bem contribuindo para tornar a representação mais “soft”.
Ivo Canelas, antes do início, e enquanto distribui as frases, espalha simpatia e dirige a todos palavras que agradam.
Quanto a mim ficou a sensação de que poderia ser um pouco mais curto, mas…
Valeu a pena.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O cinema, o covid e o filme

 


6ª feira fomos ao cinema. A Catarina e eu já andávamos com saudade de uma saída à noite. Mandámos o covid às couves e lá fomos até ao Centro Comercial das Amoreiras. Escolhi um filme português, mais por patriotismo do que por qualquer outra coisa. Andamos sempre agarrados à filmografia norte americana, que é o que normalmente nos é impingido. Fujo muitas vezes a isso, procurando filmes franceses, mas desta vez deu-me uma de portugalidade e lá fui ver uma realização portuguesa. Munidos das nossas máscaras lá entrámos par uma sala pequeníssima onde além de nós estavam 6 pessoas. Chegado ao meu lugar, agora marcado para obedecer às distâncias obrigatórias, sentei-me e tirei a porcaria do “açaimo” que me causa uma sensação de claustrofobia enorme. Ex senão quando me aparece um funcionário dizendo-me que só podia tirar a máscara para comer. Bolas! Se levar um balde pipocas que dê para o filme inteiro posso estar sem máscara. Será que o covid não ataca os pipoqueiros?

Depois de quase meia hora de anúncios e apresentações lá começou o filme realizado por Vicente Alves do Ó, que não conhecia. Nós, os da minha geração, ainda não estamos preparados para tratar de forma totalmente aberta a homossexualidade. Dizemos que sim, que não somos homofóbicos, mas cá dentro há algo que rejeita a explanação do tema. Ora o filme trata precisamente de homossexualidade aberta e assumida. Um cenário idílico, uma cor fantástica, uma casa de sonho no litoral alentejano, uma límpida piscina e quatro amigos reunidos tranquilamente ao sol. Uma mulher e três homens. A quietude é interrompida com a notícia de que um amigo comum vem visitá-los e aí começam as recordações dado que esse amigo foi amante de 3 deles, inclusive da rapariga, e há dez anos que não dava sinal de vida. O único não amante do misterioso personagem, também está por ele apaixonado, dado manter uma relação constante com ele através do Skype, mas nunca esteve com ele pessoalmente. A rapariga dorme com um deles e conversam sobre o assunto até porque o companheiro também teve forte paixão pelo tal esperado David. O ambiente decorre quase todo à volta da piscina, tudo em traje de banho, nadando e estendendo-se ao sol. A rapariga é escultural e os rapazes todos tipo metrossexual de físicos tratados em ginásio. Durante o filme, com as tensões a subir, vamos ficando a saber que a moça além daquele com quem dormia, já tinha tido relações com todos eles. Enfim, tudo ao molho e “deusnosvalha”. Um dos mais angustiados, o namorado virtual do esperado, por não saber qual a sua reacção perante o “desejado” e até por não saber para que lado ele irá pender, para soltar os fantasmas tem uma relação na mata, contra um pinheiro, com um rapaz do restaurante próximo que costumava levar-lhes refeições. Ficamos a saber também que a moça teve uma gravidez do tal David, da qual se desfez, mas que a traumatizou. Não conto o fim porque alguém poderá estar interessado. Mais tarde, perante um bom prego de bife do lombo e umas bjecas, no Foxtrot, falávamos do que víramos e eu não estava ainda totalmente refeito. Bom? Mau? Bem, pelo menos o som não estava mal e foi tudo muito perceptível. Até demais. Vê-se com certo agrado, mas deixa macaquinhos no sótão.

Vão ver. O cinema português precisa de vós.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Caça e “guerra” em São Salvador

 

 

São Salvador do Congo em 1964/65 era uma “cidade” onde a vida decorria com normalidade e sem problemas com o IN. Apenas para os lados de Cuimba, junto à serra da Canda, havia sarrafuscas e contactos. Para sul após o Quiende e depois do rio M’Pozo, já havia alguma actividade operacional. Antes do rio havia uma região chamada Zauévoa onde existiam duas enormes lagoas. Era aí a minha zona de caça. Essa zona tinha sido outrora uma reserva e havia montes de pacaças, palancas, burros do mato (quissemas), sofos, gulungos e até hipopótamos. As pacaças eram as minhas preferidas. Adepto da actividade cinegética desde pequeno, arranjei logo forma de que o comando de sector autorizasse uma equipa de caça que me propus chefiar. Era considerada uma patrulha e tinha que sair devidamente autorizada e indicar nos mapas as zonas para onde me deslocasse. Havia uma pequena equipa escolhida por mim e o resto da malta era recrutada pelas unidades assim como as viaturas. Normalmente ia o meu jeep, da Intendência, devidamente armadilhado com uma estrutura onde um palanque com um banco de madeira devidamente almofadado servia para sentar os dois atiradores de serviço, que eram: eu e um cabo operador de rádio natural de Maquela filho de um grande caçador profissional, também ele muito sabedor dos segredos da mata e da bicharada. O condutor era um sargento mecânico do pelotão de apoio directo, cujo comandante era um alferes meu conhecido do Grupo de Companhias de Trem Auto em Lisboa. Foi devido a essa amizade que consegui a estrutura do jeep e as reparações das equimoses que as viaturas sofriam pelas nossas marchas malucas por todo o terreno. Saíamos sempre com uma metralhadora ligeira Drise, tubo de morteiro de 60 com algumas granadas, granadas de mão ofensivas e os soldados de G3. O meu cabo enfermeiro sempre equipado com a sua bolsa, fazia também o papel de meu guarda-costas pois era um matulão de força hercúlea. Normalmente atrás do jeep ia um jipão, com roldana e guincho para puxar para cima as pesadas pacaças, levando uma escolta para o que desse e viesse e, em cima de um morro alto ficava o resto do pessoal com uma viatura pesada, normalmente uma GMC ou Diamond. O alferes da aeronáutica, que gostava da caça, foi algumas vezes como convidado e quando não podia ir passava com os teco-tecos (austers) por cima de nós e pelo rádio indicava-nos onde estava a caça. Julgo que nem o John Waine fez melhor no cinema. O comandante da CART situada no início de São Salvador era o Veiga da Fonseca, o 218 do Colégio Militar, meu contemporâneo na EE, amigo infelizmente já falecido, a quem convidava muitas vezes para me acompanhar. Nunca ele apanhou tanta caça como quando começou a sair comigo. No regresso, eram cerca de 180 a 200 Km que fazíamos, a caça era distribuída pelas unidades e o homem que vendia a carne tinha-me um pó danado, mas disfarçava bem.

Tudo isto para apresentar o Veiga da Fonseca, rapaz com senso de humor, e contar um episódio insólito que se passou numa noite em que ele estava de oficial de segurança e, por acaso tinha passado na Intendência onde bebíamos uns copos. Havia um sistema de comunicações telefónicas para todos os postos de defesa que circundavam a cidade. Cada um podia ligar para o oficial de segurança e este podia falar para todos eles ao mesmo tempo. Não sei bem como aquilo funcionava, mas naquela noite toca o meu telefone e o operador pergunta pelo Cap. Veiga da Fonseca. Uma sentinela queria falar com ele. Feita a ligação o rapaz do posto diz que estava a ver umas sombras junto ao arame farpado, mas que não tinha a certeza se eram homens ou bichos que por ali andavam. O V. da Fonseca que já estava um pouco toldado, pensando que só falava para aquele, diz: “Se não tens a certeza Fogo!” Disse isto demasiado alto e empolgado, só que todos os postos estavam ligados e todos à escuta. E foi a guerra total. Nunca se vira tanto tiroteio na cidade.

Foi um esforço do caraças fazer parar aquilo e mais esforço foi necessário para apaziguar o comandante de sector. Os poucos civis da cidade, o governador de distrito e duas ou três senhoras, que por lá havia, apanharam um tremendo cagaço. Afinal os IN eram apenas cabras que pastavam tranquilamente. Nenhuma morreu…

A primeira vez que o meu amigo Veiga da Fonseca me acompanhou, dei-lhe a primazia para poder abater a primeira peça. Era ainda noite e uns olhos foram focados pelo Rino, o tal profissional. O Veiga da Fonseca aponta e… pum. O bicho nem se mexeu, mais dois tiros e ao terceiro caiu. Quando nos aproximámos vimos um enorme macho burro do mato com um corno partido. O primeiro tiro acertara-lhe na base do dito e cortou-o cerce. Depois todos gozávamos.

“Claro. O bicho não fugiu porque andava à procura do corno perdido”.

O animal tinha ficado tão atordoado que nem caia nem fugia.

Resta dizer que após a minha saída de São Salvador começaram a haver emboscadas naquela zona e puseram lá um batalhão que se servia das picadas que eu abri no mato. Estou convencido que as minhas “patrulhas” serviam de dissuasão ao In.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Se Isto é Um Homem


(Leituras de Praia)

De: Primo Levi

 

Primo Levi foi um judeu italiano de Turim. Licenciado em Engenharia Química e escritor. Em 1944 foi preso pela polícia italiana e entregue aos alemães que o internaram em Auschwitz Teve a sorte de naquela altura os nazis precisarem de muita mão de obra e, portanto, ter sido poupado ao extermínio como muitos outros, velhos, doentes ou demasiado novos para o trabalho duro. Neste livro, Primo Levi quase não descreve, ou pouco refere os algozes, limitando-se apenas a descrever a vivência entre os internados; as privações, a fome, o frio, o trabalho duro e, principalmente, os roubos, as manipulações maliciosas para conseguirem alimento, roupas, etc. O aproveitamento feito pelos SS daqueles mais duros para serem os dirigentes. Chefes que se impunham pela força e que tratavam os seus iguais de pior forma que os próprios nazis. Os alojamentos com montes de beliches duplos na lateral e em três andares, deixando um espaço exíguo onde os prisioneiros mal cabiam de pé, não podendo durante o dia tocar nas camas feitas apenas com dois pobres cobertores onde mal se podiam enrolar. Em cada andar dos beliches tinham que dormir dois que, não cabendo lado a lado, tinham de deitar-se um com a cabeça junto aos pés do parceiro. A descrição dos cheiros, das latas da urina, das latrinas, etc… é de tal forma que o leitor imaginando, quase consegue sentir os maus odores. Tinham de roubar trapos e papéis para por nos sapatos de madeira que esfolavam os pés ao ponto de terem chagas enormes. Trocavam tudo o que apanhavam por um bocado de pão negro ou por mais litros de sopa de más hortaliças e nabos. O tormento da fome e do frio era enorme e muitos não resistiam, mas muitas vezes preferiam ficar doentes para poderem permanecer uns dias na enfermaria sem irem trabalhar em locais que os obrigavam a grandes marchas demasiado penosas devido ao mau calçado e às feridas nos pés. Só que a doença não podia ser demasiada ou corriam o risco de serem enviados para os fornos de extermínio. Não eram tratados pelo nome que praticamente se perdia, mas sim pelo número tatuado num antebraço. Pouco falavam uns com os outros e as amizades criadas quase não existiam. Havia prisioneiros de imensas proveniências e as línguas eram tantas que mais parecia uma Babel. Eram obrigados a prender imensas palavras em alemão se queriam fazer-se entender por um maior número de internados. O livro foi escrito entre 1945 e 1947, portanto, após os factos vividos. Todo o livro é um registo de horrores que só termina com a fuga dos nazis devido à aproximação dos soldados russos. A partir daí os prisioneiros, com a liberdade, conseguem algum alimento e roupas que os aguentou até à libertação total. Se até ali, Levi perguntava “Se Isto É Um Homem?”, começou então a sentir-se de novo um homem. 

Será que os que ainda hoje põem em causa o Holocausto, leram este livro? Será que alguém pode defender aquele regime?

Primo Levi escreveu muitos mais livros e eu já li pelo menos outro “A Tabela Periódica”. Nesse não falava de Auschwitz, mas apenas de química, a sua química que muito o ajudou nos trabalhos que lhe foram impostos. Mas o mal ficou lá. Primo Levi acabou por se suicidar mais tarde caindo de uma escada interior, apesar da família ter sempre defendido a queda acidental.

À época, Elie Wiesel, um escritor judeu também ele sobrevivente dos campos de concentração nazis, disse que: "Primo Levi morreu em Auschwitz há quarenta anos".    

 


O Estrangeiro


de Albert Camus

Leituras de praia

Nunca tinha lido Camus. Fazia ideia de um filósofo cheio de silogismos e sofismas, e não saiu nada disso. Este Romance até o comecei a achar cheio de vulgaridades, mas a filosofia está lá. Aliás mais na segunda parte do livro do que na primeira.

Um cidadão francês vive e trabalha na Argélia há cinco anos com a mãe, mas esta colocada num asilo por estar doente e ele não ter recursos para a manter num lugar melhor. Pouco a visita, dado o ambiente constrangedor e, até por não haver grande comunicação com a sua progenitora, que pouco fala durante os momentos em que está com ela. Falou apenas uma ou duas vezes no pai que ele não chegou a conhecer e nada lhe dizia.

Recebe uma carta do director asilo a comunicar-lhe a morte da mãe e o nosso homem desloca-se lá para o funeral. Quando na morgue do asilo lhe perguntam se quer ver a mãe diz que não. No funeral um padre faz-lhe a mesma pergunta e torna a recusar. Sente a morte da mãe, mas toma-a como um facto natural.

No prédio onde vive faz amizade com um morador, Raimundo de seu nome, e é visitado pela sua amante Maria. Deseja-a, mas quando ela lhe pergunta se a ama responde que não. Para ele bastava-lhe a companhia, o desejo, o sexo e a comunicação. Amor? Não sentia. O amigo tem uma altercação com o irmão da própria namorada, a quem tinha agredido, e chegam a vias de facto.

Um dia, na praia com a amante e o amigo, são atacados por três árabes e acabam numa cena de pancadaria saindo vencedores, mas um deles, armado de uma faca, ainda deixa o amigo ferido na cara e na boca. Os árabes retiram-se, mas o amigo recomenda cuidado, pois voltariam a atacar. Como o nosso homem estava acompanhado pela sua amante, o amigo empresta-lhe um revólver que ele aceita como defesa.

Mais tarde, Meursault, o nosso homem, volta a praia só, para apanhar o fresco marítimo. Passa por uma gruta onde o árabe, o tal da faca, está deitado. Ao ver Meursault leva a mão ao bolso e saca da faca. A nossa personagem fica na expectativa, mas resolve retirar-se. Nessa altura o árabe ataca e Meursault dispara. Depois, sem saber bem porquê, dá mais quatro tiros no corpo inerte.

É preso e ao fim de meses começa a ser julgado. É durante a sua prisão que verificamos as ideias filosóficas de Camus. O tempo passa e o nosso herói vai pensando na vida e não sente o isolamento da cela e a vida de prisioneiro como uma desgraça e vai-se habituando à sua condição. No julgamento é-lhe atribuído um advogado por ele não o ter nem poder pagá-lo. Durante as sessões, o procurador centra-se mais no facto de ele não ter vertido uma lágrima no funeral da mãe e de se recusar a vê-la, além de não mostrar qualquer arrependimento pelo crime cometido e se recusar a receber o padre na cela. Sobre o crime, acusam-no de premeditação por ter voltado à praia e por ter dado 5 tiros no seu opositor sendo quatro deles depois do corpo caído e inerte. Meursault é condenado por um júri e o juiz destina-lhe morte na guilhotina.

No tempo que antecede a execução, Camus dá então largas á sua filosofia de vida. Na hora da morte o padre torna a insistir com o nosso homem para se arrepender e voltar-se para Deus. Meursault recusa e acaba por quase agredir o padre pela insistência deste. Nunca foi crente, nunca quis ser crente e não seria perante a morte que mudaria.

Numa das laudas de capa, vem referido que Camus mais tarde ao falar deste seu livro, resume-o numa frase: “Numa sociedade, todos os homens que não choram no enterro de sua mãe, correm o risco de serem condenados à morte.”

Meursault viveu sendo apenas sincero e pela verdade morreu.

 


segunda-feira, 15 de junho de 2020

O HOMEM

Escrito em tempos conturbados e troicanos com governos que nos delapidaram os proventos.

(reflexões de um cidadão comum)

(Publicado no Boletim da APE nº 229/13)

 

O homem deambulava pela rua de mãos nos bolsos observando os passantes tentando descobrir os pensamentos de cada um através das expressões e do porte de cada qual. Seria que tinham os mesmos anseios que ele? Seria que gostavam das mesmas coisas?

Seriam cultos? Teriam instrução? E teriam gosto em aprender, em saberem coisas? Ele tinha essa ânsia, essa vontade, esse gosto, mas do que lhe servia isso, se o facto de gostar de saber, de aprender, não lhe dava qualquer poder, quer económico quer de estatuto, continuava o mesmo, sem dinheiro, sem poder de compra, sem proporcionar aos seus aquela vida que gostariam de ter, de ver espectáculos, de sair e frequentar bons restaurantes, de vestir e comer bem sem grande trabalho e sem esforço. Que lhe servia saber discutir meia dúzia de assuntos, acabava tornando-se chato contraditando quase tudo o que os outros diziam, as pessoas falam de tudo e sobre tudo pela rama cometendo montes de erros, mas não gostam que lhos emendem e ele não era capaz de se conter e ainda por cima era um ateu convicto gostando de conhecer e entender os porquês e princípios das religiões, coisa que os crentes normalmente não fazem nem procuram esclarecer-se estando-se nas tintas para os quês e porquês bastando-lhes a fé que lhes incutiram desde o berço não se perguntando se todas as lengalengas que papagueavam tinham algum fundamento e serventia. Olhando os seres andantes de ar macambúzio deslocando-se de e para lado nenhum, perguntava-se se teriam dúvidas sobre o que pensam acreditar ou se não acreditando também duvidariam da descrença. Naturalmente sim, mas talvez não se preocupassem muito e o mais certo seria a porcaria de vida que levavam e o esforço que faziam para sobreviverem não lhes dar sequer tempo para pensarem quanto mais duvidarem de alguma coisa.

Gostava de escrever, mas não tinha grande talento para ficcionar e colocar no papel algo que não fosse trivial, que desse que pensar, que tivesse substrato. Andava e imaginava histórias e cenas para passar ao papel, mas chegava a casa e o que pensara já não lhe parecia suficiente para despertar a atenção de alguém e todo o escritor escreve para que o leiam. Por mais que digam que se pode escrever só por e para exercício da mente, todos anseiam que algum leitor se interesse e lhe faça elogios ou críticas construtivas que o levem a escrever mais e melhor.

No computador estavam montes de escritos inertes, estáticos, inactivos, que lhe apetecia apagar, mas não tinha coragem por serem da sua lavra e do seu esforço, mas que não conseguia mostrar a ninguém por achar-lhes sempre falta de qualidade.

Lia muito e bons autores e quanto mais o fazia mais verificava que aquilo que escrevia não se poderia comparar ao conteúdo sério daquelas obras.

Continuava andando e de repente acordava daquelas divagações interioristas dizendo para si próprio que a sua vida fora cheia, plena de acção, aventura, trabalhos bem-feitos, estudos bem-sucedidos, enfim, realizações que não o deixaram mal, mas que não o realizaram totalmente. Agora, aposentado, já sem acção directa em trabalhos remunerados, procurava realizar serviços para organizações não lucrativas como clubes e associações de que fazia parte o que lhe transmitia alguma sensação de utilidade. Estava no último terço da sua vida e sabia já não lhe restar muito tempo para se afirmar sobre o que fosse.

Também, infelizmente, não soubera gerir os parcos proventos que ganhara de modo a poder agora usufruir de um pouco mais de sossego económico. Infelizmente, o seu país nunca fora capaz de garantir aos que o serviram com risco das próprias vidas, o suficiente para poderem ter uma velhice calma e serena até ao fim dos seus dias. Mas, também sabia que muitos estavam em circunstâncias bem piores e a história mostrava que sempre fora assim.

Passou junto de uma igreja com os crentes saindo da última missa talvez convencidos de que estavam mais protegidos e acompanhados por um deus que faziam protector e pessoal, como se não houvesse neste mundo mais nada com que se preocupar. A fé serve para isso mesmo, é uma forma dos que pouco têm se convençam que vão ser ajudados a ter mais e dos que muito têm fiquem convencidos que nunca nada lhes faltará e os seus proventos e patrimónios aumentarão e ninguém nada lhes tire. Poucos são os que nada pedem para si ou que orem pelos outros que sofrem com a ganância dos que já tudo possuem, mas que ainda mais querem, sugando-lhes o esforço a mente e a vontade.

A maioria dos seres mortais constrói o seu mundo com fronteiras demasiado curtas e o que está para lá não lhes interessa por não lhes dizer respeito. Mas a humanidade é imensa e a maioria sofredora e despojada de quase tudo, sem educação, sem capacidade de sobrevivência e em meios hostis que lhes encurtam a vida e castram os pensamentos. Para que vivem então? Mais valia não nascerem só que isso não é programado e a natureza é fértil em produzir seres que apenas servem para alimento de outros seres, que mais fortes os sugam para sua própria sobrevivência. É assim com todos os animais e o homem não é diferente, mas, por ter entendimento que associa ideias, tenta sobreviver contra tudo e contra todos lutando com todas as armas de que pode dispor, causando batalhas que a ninguém aproveita. Os outros, aqueles que tudo obtêm por exploração dos mais fracos, quando lhes negam a possibilidade do saque, criam motivos para actuarem pela força começando guerras colocando as culpas na parte contrária normalmente mais fraca ou totalmente indefesa. Onde está um deus nessas alturas? Quem defende ele?

Ganham sempre os maus morrem os bons, mas serão mesmo bons? Naturalmente não são, se lhes derem azo de ficarem com os bens e proventos dos maus, acabam tão maus como eles.

O passeio estava a terminar, olhou de novo para os passantes, mas nada viu, voltaram a ser apenas seres que se deslocavam sem pensamento e nexo, nem sempre a aura envolvente dos humanos revela idiossincrasias ou então era ele que já não as perscrutava.

Há realmente momentos para tudo, mas também tudo muda e de repente, pois aquilo que se pensa sente e vê muda totalmente um segundo depois com a alteração de visão, local ou estado de espírito…

 


quinta-feira, 11 de junho de 2020

Interstellar


Filme visto há uns tempos. Escrevi sobre ele e publiquei no Boletim da APE. Resolvi agora colocar aqui a minha crítica.


(Publicado no Boletim 237 de 2015)

 

Não sou grande adepto de ficção científica. Procurei sempre fugir dela quer em filmes, banda desenhada ou livros. A excepção foi o estupendo filme de Stanley Kubrick “2001 Odisseia no Espaço”. Este excelente filme foi uma fuga total aos estereótipos do género. O filme que dá origem a este escrito, “Interstellar”, despertou a minha atenção por alguma crítica que li, levando-me a quebrar um pouco esta minha aversão à ficção científica. Não dei o tempo por perdido, e foi muito tempo, 2 horas e 40 minutos de projecção que se passam num ápice. Mesmo as cenas mais lentas e demoradas não cansam pela ânsia do espectador ao que a seguir virá.

Vê-se que Christopher Nolan, realizador do filme, é um fã de Kubrick, mas descanse o leitor que este filme não é só Kubrick, mas sim o seguimento de um certo espírito de Kubrick num filme diferente. Aqui, Nolan explora muito o ser humano como mesquinho, destruidor, provocador de cataclismos capazes de pôr em risco a vida na Terra, mas por outro lado um ser sentimental agarrado a conceitos morais e familiares, munido de uma capacidade de aventureirismo científico que o leva a tentar encontrar outros mundos onde a humanidade possa sobreviver.

A junção de sentimentos com ciência está muito bem entrosada nesta película e, quem tiver interesse em conhecer alguma coisa sobre o universo e as suas leis, algo de Einstein e de Stephen Hawking, consegue perceber muito bem a odisseia que o filme mostra. Quem não entender nada disso vê o filme como uma boa aventura inter-espacial com personagens dotadas de sentimentos humanos e esperança na continuação da vida. Realmente “wormholes” (buracos de minhoca ou vermes), buracos negros, teoria quântica e domínio da gravidade, não é propriamente para toda a gente, mas não é preciso perceber muito disso pois no filme também não se explicam as coisas de modo a serem entediantes.

Não interessa expressar aqui o argumento mas, no entanto, aqui fica um cheirinho:

 Cooper (Matthew McConaughey), um engenheiro espacial e ex-piloto da NASA, viúvo, dedica-se agora a cultivar milho em larga escala, numa tentativa de produzir alimento para uma população terrestre que já não consegue sustento suficiente num planeta devastado por catástrofes ambientais, onde a seca, os ventos e nuvens de pó tudo secam e devastam. A sua relação com os filhos é excelente e muito próxima mas, acaba convidado por um cientista a retomar a pilotagem de naves com vista a prosseguir investigações iniciadas por três cientistas que tinham partido para três planetas nas proximidades de Saturno, que tinham deixado de transmitir notícias. A sua filha Murphy (Mackenzie Foy, excelente papel) adolescente, sofre com a separação e pede ao pai que não parta, mas o amor entre eles não segura o astronauta que pretende encontrar novo poiso para continuação da espécie humana. A viagem com alguns companheiros, entre eles Brand (Anne Hathaway) a filha do cientista chefe do processo (Michael Caine), acompanhados do super robot-computador Tars (aqui está um elemento kubickiano, uma espécie do computador Hall de 2001) é atribulada mas atinge o objectivo. Cooper, sempre com a ideia de reencontrar os filhos, inicia o regresso vindo a reencontrar a filha, já numa estação na órbita de Saturno como plataforma para o novo mundo entretanto já possível pela resolução, por parte de Murph, da equação em que o professor Brand trabalhava. Só que Murphy está 60 anos mais velha do que ele, apenas poucos anos mais velho, devido à distorção temporal (teoria da relatividade de Einstein) pelo atravessar do buraco negro Gargantua.

A tentativa de procura de um final feliz, mesmo ao estilo americano, foi do que menos gostei. Mas valeu a pena. Filme a não perder.

 


O Padre Ruy


 Esta andava perdida, mas merece estar aqui:

 

Ruy Correia Leal, filho de um general, na altura comandante da antiga Escola do Exército, apareceu nos Pupilos do Exército como padre capelão. Logo de início o nosso padre mostrou-se totalmente diferente daquilo a que os padres nos habituaram. Além de ser um rapaz novo, era companheiro da rapaziada, acompanhava-nos à praia, jogava futebol com a malta e já dizia o seu palavrãozito de quando em vez. Eu, com 17 anos e no meu 1º ano de contabilistas, começara a pôr em causa a minha fé que, até ali, sempre devotara ao Deus que desde muito pequenino me ensinaram a adorar e respeitar. O meu pai, agnóstico, pedia-me para acompanhar a mãe, minha avó, à missa todos os domingos, além da escola e do estado novo que nos obrigava a frequentar a catequese. Aborrecia-me ter de empinar todas aquelas rezas, melopeias que tinham de ser ditas sem falhar uma vírgula, mas por outro lado, encantavam-me os textos bíblicos e as histórias fascinantes da bíblia das escolas. Sabia quase de cor todos os trechos desde Sansão aos irmãos Macabeus e quejandos. Curioso que era li muita coisa de vários autores, muitos deles ateus convictos que se interrogavam e punham em causa todas as religiões. Não é fácil deixar de acreditar em algo que nos vem sendo inculcado desde criança e, como tal, tinha grandes conversas com o padre Ruy solicitando-lhe explicações para aquilo que eu pensava e para as dúvidas que tinha. De princípio, o nosso padre ainda teve alguma paciência para comigo, mas quanto mais difíceis se tornavam as minha perguntas, a atitude do nosso capelão começou a mudar. Além de nada conseguir explicar-me com alguma coerência, começou a embirrar comigo e a tomar-me de ponta. Ora dúvidas em cima de dúvidas, leitura de livros de ciência que muito iam explicando tornando corriqueiro e lógico o que até aí era considerado divino, afastaram-me completamente da religião e dos deuses. Mas aconteceu pior. Por essa altura eu já namorava uma moça, desde o ano anterior, mais velha do que eu três anos. Um dia de Inverno, mas bonito, depois de um passeio pelos campos, chegados a casa, com o frio enrolámo-nos demais e, palavra puxa palavra festinha puxa festinha acalorámo-nos e …

Se fosse hoje era caso corriqueiro, mas naquele tempo foi complicado. Cheio de problemas, resolvi fazer do padre Ruy meu confidente pensando que os seus conselhos me seriam úteis mas, qual quê, a partir daí se já não me podia ver pelas minhas convicções cada vez mais ateístas, pior ficou tratando-me quase abaixo de cão e dando-me não conselhos, mas só proibições que nada me ajudaram e, quando eu lhe mostrava que o que estava feito já estava e, portanto, a continuação dos factos seria natural, as minhas canelas sofreram as pancadas que o piedoso padre me aplicava com a biqueira das pesadas botas que usava.

O meu pai, pessoa de pensamentos já bastante avançados para a época, acabou por ser muito melhor conselheiro. Naquela época a rapaziada pelava-se por ver umas revistas de raparigas pouco ou nada vestidas e fazíamo-lo às escondidas guardando ciosamente essas pecaminosas folhas. Apareceram naquela altura os primeiros calendários com umas pequenas em “topless”

mas bastante compostas com uns calções curtos bem decentes. Em casa, o meu pai arranjou um e eu pedi-lho para mostrar à rapaziada pilónica. Foi um êxito e perante tal, resolvi colar as folhas nas contracapas dos meus cadernos. Um dia, num estudo presidido pelo padre Ruy, estava eu deleitosamente olhando as minhas ninfas quando fui surpreendido pelo padre com olhos em brasa, tipo mefistofélico. As carteiras eram abertas e as minhas pobres canelas pagaram pelo desaforo por mim cometido contra a moral pública. Quando ingenuamente lhe disse que aquilo era bonito e nada tinha de mal além de que me tinha sido oferecido pelo meu próprio pai, não houve qualquer deus ou semideus que me safasse de mais caneladas e algumas galhetas. Que me perdoem os meus camaradas pilões que gostaram do padre Ruy, mas aquilo não era um pedagogo nem um capelão para uma escola como o Pilão. Levei muitas galhetas de oficiais e professores. Todas profícuas e nenhuma me deixou rancores. As do padre Ruy nunca perdoei. Para conclusão da história digo que não casei com aquela namorada. Ao fim de quatro anos, já era alferes, acabámos o namoro por incompatibilidade de feitios além de que já colocado nas Caldas da Rainha me apaixonei por uma “baixinha” muito bonita. Essa também passou à história devido à minha ida para Timor em 1959. No regresso, à terceira foi de vez e encontrei aquela que ainda hoje é minha companheira. O padre Ruy já faleceu, mas não o esquecerei e não pelas suas boas obras. Se alguém se sentir ofendido com este meu escrito paciência, não foi essa a minha intenção.