segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O cinema, o covid e o filme

 


6ª feira fomos ao cinema. A Catarina e eu já andávamos com saudade de uma saída à noite. Mandámos o covid às couves e lá fomos até ao Centro Comercial das Amoreiras. Escolhi um filme português, mais por patriotismo do que por qualquer outra coisa. Andamos sempre agarrados à filmografia norte americana, que é o que normalmente nos é impingido. Fujo muitas vezes a isso, procurando filmes franceses, mas desta vez deu-me uma de portugalidade e lá fui ver uma realização portuguesa. Munidos das nossas máscaras lá entrámos par uma sala pequeníssima onde além de nós estavam 6 pessoas. Chegado ao meu lugar, agora marcado para obedecer às distâncias obrigatórias, sentei-me e tirei a porcaria do “açaimo” que me causa uma sensação de claustrofobia enorme. Ex senão quando me aparece um funcionário dizendo-me que só podia tirar a máscara para comer. Bolas! Se levar um balde pipocas que dê para o filme inteiro posso estar sem máscara. Será que o covid não ataca os pipoqueiros?

Depois de quase meia hora de anúncios e apresentações lá começou o filme realizado por Vicente Alves do Ó, que não conhecia. Nós, os da minha geração, ainda não estamos preparados para tratar de forma totalmente aberta a homossexualidade. Dizemos que sim, que não somos homofóbicos, mas cá dentro há algo que rejeita a explanação do tema. Ora o filme trata precisamente de homossexualidade aberta e assumida. Um cenário idílico, uma cor fantástica, uma casa de sonho no litoral alentejano, uma límpida piscina e quatro amigos reunidos tranquilamente ao sol. Uma mulher e três homens. A quietude é interrompida com a notícia de que um amigo comum vem visitá-los e aí começam as recordações dado que esse amigo foi amante de 3 deles, inclusive da rapariga, e há dez anos que não dava sinal de vida. O único não amante do misterioso personagem, também está por ele apaixonado, dado manter uma relação constante com ele através do Skype, mas nunca esteve com ele pessoalmente. A rapariga dorme com um deles e conversam sobre o assunto até porque o companheiro também teve forte paixão pelo tal esperado David. O ambiente decorre quase todo à volta da piscina, tudo em traje de banho, nadando e estendendo-se ao sol. A rapariga é escultural e os rapazes todos tipo metrossexual de físicos tratados em ginásio. Durante o filme, com as tensões a subir, vamos ficando a saber que a moça além daquele com quem dormia, já tinha tido relações com todos eles. Enfim, tudo ao molho e “deusnosvalha”. Um dos mais angustiados, o namorado virtual do esperado, por não saber qual a sua reacção perante o “desejado” e até por não saber para que lado ele irá pender, para soltar os fantasmas tem uma relação na mata, contra um pinheiro, com um rapaz do restaurante próximo que costumava levar-lhes refeições. Ficamos a saber também que a moça teve uma gravidez do tal David, da qual se desfez, mas que a traumatizou. Não conto o fim porque alguém poderá estar interessado. Mais tarde, perante um bom prego de bife do lombo e umas bjecas, no Foxtrot, falávamos do que víramos e eu não estava ainda totalmente refeito. Bom? Mau? Bem, pelo menos o som não estava mal e foi tudo muito perceptível. Até demais. Vê-se com certo agrado, mas deixa macaquinhos no sótão.

Vão ver. O cinema português precisa de vós.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Caça e “guerra” em São Salvador

 

 

São Salvador do Congo em 1964/65 era uma “cidade” onde a vida decorria com normalidade e sem problemas com o IN. Apenas para os lados de Cuimba, junto à serra da Canda, havia sarrafuscas e contactos. Para sul após o Quiende e depois do rio M’Pozo, já havia alguma actividade operacional. Antes do rio havia uma região chamada Zauévoa onde existiam duas enormes lagoas. Era aí a minha zona de caça. Essa zona tinha sido outrora uma reserva e havia montes de pacaças, palancas, burros do mato (quissemas), sofos, gulungos e até hipopótamos. As pacaças eram as minhas preferidas. Adepto da actividade cinegética desde pequeno, arranjei logo forma de que o comando de sector autorizasse uma equipa de caça que me propus chefiar. Era considerada uma patrulha e tinha que sair devidamente autorizada e indicar nos mapas as zonas para onde me deslocasse. Havia uma pequena equipa escolhida por mim e o resto da malta era recrutada pelas unidades assim como as viaturas. Normalmente ia o meu jeep, da Intendência, devidamente armadilhado com uma estrutura onde um palanque com um banco de madeira devidamente almofadado servia para sentar os dois atiradores de serviço, que eram: eu e um cabo operador de rádio natural de Maquela filho de um grande caçador profissional, também ele muito sabedor dos segredos da mata e da bicharada. O condutor era um sargento mecânico do pelotão de apoio directo, cujo comandante era um alferes meu conhecido do Grupo de Companhias de Trem Auto em Lisboa. Foi devido a essa amizade que consegui a estrutura do jeep e as reparações das equimoses que as viaturas sofriam pelas nossas marchas malucas por todo o terreno. Saíamos sempre com uma metralhadora ligeira Drise, tubo de morteiro de 60 com algumas granadas, granadas de mão ofensivas e os soldados de G3. O meu cabo enfermeiro sempre equipado com a sua bolsa, fazia também o papel de meu guarda-costas pois era um matulão de força hercúlea. Normalmente atrás do jeep ia um jipão, com roldana e guincho para puxar para cima as pesadas pacaças, levando uma escolta para o que desse e viesse e, em cima de um morro alto ficava o resto do pessoal com uma viatura pesada, normalmente uma GMC ou Diamond. O alferes da aeronáutica, que gostava da caça, foi algumas vezes como convidado e quando não podia ir passava com os teco-tecos (austers) por cima de nós e pelo rádio indicava-nos onde estava a caça. Julgo que nem o John Waine fez melhor no cinema. O comandante da CART situada no início de São Salvador era o Veiga da Fonseca, o 218 do Colégio Militar, meu contemporâneo na EE, amigo infelizmente já falecido, a quem convidava muitas vezes para me acompanhar. Nunca ele apanhou tanta caça como quando começou a sair comigo. No regresso, eram cerca de 180 a 200 Km que fazíamos, a caça era distribuída pelas unidades e o homem que vendia a carne tinha-me um pó danado, mas disfarçava bem.

Tudo isto para apresentar o Veiga da Fonseca, rapaz com senso de humor, e contar um episódio insólito que se passou numa noite em que ele estava de oficial de segurança e, por acaso tinha passado na Intendência onde bebíamos uns copos. Havia um sistema de comunicações telefónicas para todos os postos de defesa que circundavam a cidade. Cada um podia ligar para o oficial de segurança e este podia falar para todos eles ao mesmo tempo. Não sei bem como aquilo funcionava, mas naquela noite toca o meu telefone e o operador pergunta pelo Cap. Veiga da Fonseca. Uma sentinela queria falar com ele. Feita a ligação o rapaz do posto diz que estava a ver umas sombras junto ao arame farpado, mas que não tinha a certeza se eram homens ou bichos que por ali andavam. O V. da Fonseca que já estava um pouco toldado, pensando que só falava para aquele, diz: “Se não tens a certeza Fogo!” Disse isto demasiado alto e empolgado, só que todos os postos estavam ligados e todos à escuta. E foi a guerra total. Nunca se vira tanto tiroteio na cidade.

Foi um esforço do caraças fazer parar aquilo e mais esforço foi necessário para apaziguar o comandante de sector. Os poucos civis da cidade, o governador de distrito e duas ou três senhoras, que por lá havia, apanharam um tremendo cagaço. Afinal os IN eram apenas cabras que pastavam tranquilamente. Nenhuma morreu…

A primeira vez que o meu amigo Veiga da Fonseca me acompanhou, dei-lhe a primazia para poder abater a primeira peça. Era ainda noite e uns olhos foram focados pelo Rino, o tal profissional. O Veiga da Fonseca aponta e… pum. O bicho nem se mexeu, mais dois tiros e ao terceiro caiu. Quando nos aproximámos vimos um enorme macho burro do mato com um corno partido. O primeiro tiro acertara-lhe na base do dito e cortou-o cerce. Depois todos gozávamos.

“Claro. O bicho não fugiu porque andava à procura do corno perdido”.

O animal tinha ficado tão atordoado que nem caia nem fugia.

Resta dizer que após a minha saída de São Salvador começaram a haver emboscadas naquela zona e puseram lá um batalhão que se servia das picadas que eu abri no mato. Estou convencido que as minhas “patrulhas” serviam de dissuasão ao In.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Se Isto é Um Homem


(Leituras de Praia)

De: Primo Levi

 

Primo Levi foi um judeu italiano de Turim. Licenciado em Engenharia Química e escritor. Em 1944 foi preso pela polícia italiana e entregue aos alemães que o internaram em Auschwitz Teve a sorte de naquela altura os nazis precisarem de muita mão de obra e, portanto, ter sido poupado ao extermínio como muitos outros, velhos, doentes ou demasiado novos para o trabalho duro. Neste livro, Primo Levi quase não descreve, ou pouco refere os algozes, limitando-se apenas a descrever a vivência entre os internados; as privações, a fome, o frio, o trabalho duro e, principalmente, os roubos, as manipulações maliciosas para conseguirem alimento, roupas, etc. O aproveitamento feito pelos SS daqueles mais duros para serem os dirigentes. Chefes que se impunham pela força e que tratavam os seus iguais de pior forma que os próprios nazis. Os alojamentos com montes de beliches duplos na lateral e em três andares, deixando um espaço exíguo onde os prisioneiros mal cabiam de pé, não podendo durante o dia tocar nas camas feitas apenas com dois pobres cobertores onde mal se podiam enrolar. Em cada andar dos beliches tinham que dormir dois que, não cabendo lado a lado, tinham de deitar-se um com a cabeça junto aos pés do parceiro. A descrição dos cheiros, das latas da urina, das latrinas, etc… é de tal forma que o leitor imaginando, quase consegue sentir os maus odores. Tinham de roubar trapos e papéis para por nos sapatos de madeira que esfolavam os pés ao ponto de terem chagas enormes. Trocavam tudo o que apanhavam por um bocado de pão negro ou por mais litros de sopa de más hortaliças e nabos. O tormento da fome e do frio era enorme e muitos não resistiam, mas muitas vezes preferiam ficar doentes para poderem permanecer uns dias na enfermaria sem irem trabalhar em locais que os obrigavam a grandes marchas demasiado penosas devido ao mau calçado e às feridas nos pés. Só que a doença não podia ser demasiada ou corriam o risco de serem enviados para os fornos de extermínio. Não eram tratados pelo nome que praticamente se perdia, mas sim pelo número tatuado num antebraço. Pouco falavam uns com os outros e as amizades criadas quase não existiam. Havia prisioneiros de imensas proveniências e as línguas eram tantas que mais parecia uma Babel. Eram obrigados a prender imensas palavras em alemão se queriam fazer-se entender por um maior número de internados. O livro foi escrito entre 1945 e 1947, portanto, após os factos vividos. Todo o livro é um registo de horrores que só termina com a fuga dos nazis devido à aproximação dos soldados russos. A partir daí os prisioneiros, com a liberdade, conseguem algum alimento e roupas que os aguentou até à libertação total. Se até ali, Levi perguntava “Se Isto É Um Homem?”, começou então a sentir-se de novo um homem. 

Será que os que ainda hoje põem em causa o Holocausto, leram este livro? Será que alguém pode defender aquele regime?

Primo Levi escreveu muitos mais livros e eu já li pelo menos outro “A Tabela Periódica”. Nesse não falava de Auschwitz, mas apenas de química, a sua química que muito o ajudou nos trabalhos que lhe foram impostos. Mas o mal ficou lá. Primo Levi acabou por se suicidar mais tarde caindo de uma escada interior, apesar da família ter sempre defendido a queda acidental.

À época, Elie Wiesel, um escritor judeu também ele sobrevivente dos campos de concentração nazis, disse que: "Primo Levi morreu em Auschwitz há quarenta anos".    

 


O Estrangeiro


de Albert Camus

Leituras de praia

Nunca tinha lido Camus. Fazia ideia de um filósofo cheio de silogismos e sofismas, e não saiu nada disso. Este Romance até o comecei a achar cheio de vulgaridades, mas a filosofia está lá. Aliás mais na segunda parte do livro do que na primeira.

Um cidadão francês vive e trabalha na Argélia há cinco anos com a mãe, mas esta colocada num asilo por estar doente e ele não ter recursos para a manter num lugar melhor. Pouco a visita, dado o ambiente constrangedor e, até por não haver grande comunicação com a sua progenitora, que pouco fala durante os momentos em que está com ela. Falou apenas uma ou duas vezes no pai que ele não chegou a conhecer e nada lhe dizia.

Recebe uma carta do director asilo a comunicar-lhe a morte da mãe e o nosso homem desloca-se lá para o funeral. Quando na morgue do asilo lhe perguntam se quer ver a mãe diz que não. No funeral um padre faz-lhe a mesma pergunta e torna a recusar. Sente a morte da mãe, mas toma-a como um facto natural.

No prédio onde vive faz amizade com um morador, Raimundo de seu nome, e é visitado pela sua amante Maria. Deseja-a, mas quando ela lhe pergunta se a ama responde que não. Para ele bastava-lhe a companhia, o desejo, o sexo e a comunicação. Amor? Não sentia. O amigo tem uma altercação com o irmão da própria namorada, a quem tinha agredido, e chegam a vias de facto.

Um dia, na praia com a amante e o amigo, são atacados por três árabes e acabam numa cena de pancadaria saindo vencedores, mas um deles, armado de uma faca, ainda deixa o amigo ferido na cara e na boca. Os árabes retiram-se, mas o amigo recomenda cuidado, pois voltariam a atacar. Como o nosso homem estava acompanhado pela sua amante, o amigo empresta-lhe um revólver que ele aceita como defesa.

Mais tarde, Meursault, o nosso homem, volta a praia só, para apanhar o fresco marítimo. Passa por uma gruta onde o árabe, o tal da faca, está deitado. Ao ver Meursault leva a mão ao bolso e saca da faca. A nossa personagem fica na expectativa, mas resolve retirar-se. Nessa altura o árabe ataca e Meursault dispara. Depois, sem saber bem porquê, dá mais quatro tiros no corpo inerte.

É preso e ao fim de meses começa a ser julgado. É durante a sua prisão que verificamos as ideias filosóficas de Camus. O tempo passa e o nosso herói vai pensando na vida e não sente o isolamento da cela e a vida de prisioneiro como uma desgraça e vai-se habituando à sua condição. No julgamento é-lhe atribuído um advogado por ele não o ter nem poder pagá-lo. Durante as sessões, o procurador centra-se mais no facto de ele não ter vertido uma lágrima no funeral da mãe e de se recusar a vê-la, além de não mostrar qualquer arrependimento pelo crime cometido e se recusar a receber o padre na cela. Sobre o crime, acusam-no de premeditação por ter voltado à praia e por ter dado 5 tiros no seu opositor sendo quatro deles depois do corpo caído e inerte. Meursault é condenado por um júri e o juiz destina-lhe morte na guilhotina.

No tempo que antecede a execução, Camus dá então largas á sua filosofia de vida. Na hora da morte o padre torna a insistir com o nosso homem para se arrepender e voltar-se para Deus. Meursault recusa e acaba por quase agredir o padre pela insistência deste. Nunca foi crente, nunca quis ser crente e não seria perante a morte que mudaria.

Numa das laudas de capa, vem referido que Camus mais tarde ao falar deste seu livro, resume-o numa frase: “Numa sociedade, todos os homens que não choram no enterro de sua mãe, correm o risco de serem condenados à morte.”

Meursault viveu sendo apenas sincero e pela verdade morreu.