domingo, 22 de julho de 2012

FRASSINO MACHADO E FERNANDO PESSOA

Em todo o lado se encontram pessoas interessantes, com quem aprendemos conversando. Falo de Francisco de Assis Machado da Cunha que, nas suas obras e no seu blogue, se intitula Frassino Machado:



Conheci este professor de história, filósofo, poeta, músico, cantor e literato, na piscina onde normalmente vou todos os dias nadar para ver se mantenho o físico mais ou menos direito e se a coluna ainda se aguenta por mais uns anitos. No pouco tempo de que dispomos, enquanto nos aprontamos, no vestiário, para entrar e sair, conversamos sobre vários assuntos. Trocámos e-mails e blogues e vamos inserindo um ou outro comentário nos nossos artigos.
Num desses artigos, Frassino Machado inseriu o célebre poema “O Mostrengo” de Fernando Pessoa, que mereceu, de uma sua amiga, um comentário em que dizia ser Pessoa um astrólogo e mítico talvez influenciado pelas religiões orientais, etc.
Frassino Machado não concordou contrapondo que Pessoa nunca tinha sido astrólogo e que no poema e em toda a “Mensagem” nada havia de astrologia nem de misticismo mas apenas se notavam as influências da aventura e da vontade indomável dos portugueses.
Eu, que de pessoano nada tenho, mas que pelo que tenho lido, sempre o achei um tipo deveras esquisito, acabei interferindo, concordando com o que o professor Machado disse, menos de que Pessoa não era astrólogo.

Pessoa multifacetado
Fernando Pessoa era uma pessoa bastante eclética, com conhecimentos de diversas áreas. Além de poeta, era, também, um dramaturgo, ficcionista, pensador, crítico, ocultista, esotérico, e astrólogo
A título de curiosidade, Fernando Pessoa foi o responsável pela introdução do planeta Plutão, descoberto em 1930, nas cartas astrológicas. Os seus estudos de astrologia permitiram-lhe, também, fazer algumas previsões sobre o futuro literário e político da sua pátria. Dessas, destaca-se a previsão acertada da Revolução dos Cravos, que se deu quatro décadas após a sua morte. 
Esta profunda atracção pela astrologia e cabala está demonstrada nas inúmeras cartas astrais que o poeta elaborou ao longo da sua vida. Chegou, inclusive, a realizar uma para os seus três grandes heterónimos! 
A sua excentricidade revela-se, também, no ocultismo e esoterismo de Pessoa. Sabe-se hoje que este nutria um interesse especial por Sociedades Secretas, destacando-se a Maçonaria, os Templários, e Rosa-Cruz. O poeta afirma mesmo na sua nota biográfica ter sido “Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.”

(Retirado de um artigo na Internet – Blog Ler Mais Pessoa -)

Pessoa era um indivíduo muito introvertido, solitário, alcoólico e misógino. Nunca lhe foi conhecida nenhuma mulher e até a aquela de quem ele fala, Ofélia, parece nunca ter sido totalmente dele (?).
No romance de Saramago “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, Pessoa manteve uma relação com a tal Ofélia, mas julgo que essa relação foi mais fruto da imaginação do autor do que verdadeira. Já o facto de Fernando Pessoa ter criado todos aqueles heterónimos, nos leva a crer que era um indivíduo com personalidade dúbia e se escondia, talvez de si próprio. São conhecidas montes de cartas astrológicas que elaborou de diversas personalidades. Aliás, os seus amigos mais conhecidos, eram também tipos, grandes autores literatos, mas não muito seguros. O grupo Orfeu, constituído por ele, Mário de Sá Carneiro e Almada Negreiros, foi intitulado de modernista e futurista. Defendiam que o poder só deveria ser detido pelos intelectuais e que os outros, o povo, não tinha capacidade de se governar. Agora, a indivíduos como estes, chamar-lhes-íamos fascistas. Mário de Sá Carneiro era um triste e acabou como se sabe, dando cabo da própria vida e Almada era um homem de inteligência superior mas completamente alucinado. Quem elabora um poema como a “A Cena do Ódio” não pode estar bom da cabeça, apesar de ser uma obra excepcional de tão louca. Pessoa, o grande vulto da nossa literatura, também não batia bem. Até a sua sexualidade não estava bem definida. O seu heterónimo Álvaro de Campos era nitidamente homossexual o que se pode inferir em inúmeros dos seus escritos. Ora, Álvaro de Campos era Pessoa…
Claro que estou a dissertar como leitor e não como estudioso da obra de Pessoa. Por outro lado também não tenho bagagem literária suficiente para me meter em grandes estudos da personalidade de Pessoa. O meu recente poetAmigo (como normalmente assina) Frassino Machado poderá de certeza dizer muito mais de sua justiça. Conhecer Frassino Machado foi óptimo.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

O LANGÃO

O Langão não se chateia, não reclama. Vive do que lhe dão e não precisa pedir. Dorme quando quer, levanta-se quando quer. É meigo mas medroso do desconhecido. Não tem deus nem religião. Uns gostam dele, outros não lhe ligam nenhuma, outros têm medo e muitos são indiferentes. O Langão está-se nas tintas. Passeia com quem é amigo. Só tem um defeito; gosta demasiado de fêmeas e raramente lhe escapa uma. Assim que certos odores lhe passam pelo nariz, demasiado sensível, aí vai ele no seu trote desengonçado, até encontrar o local onde se encontra a coitada, normalmente encerrada. Espera pacientemente uma escapadela furtiva e trás. O certo é que as suas conquistas são normalmente bem-sucedidas. Nenhuma lhe escapa nem faz por isso. O pobre coitado, já de si magro, pelo pouco repasto que consegue, já tem os quadris meio encaracolados devido à actividade amorosa. É demasiado alto e as companheiras de ocasião nem sempre estão à medida. Já tem tido algumas brigas com outros que, como ele, também se querem aproveitar. Ultimamente anda mais encostado à civilização. Já reparou que há uns habitantes mais sensíveis e generosos. Tem uma amiga, das privilegiadas, que come todos os dias e dorme em cama fofa e recolhida das intempéries, com quem brinca mas não conquista. Infelizmente a companheira foi coarctada dos seus órgãos reprodutores e não tem qualquer apetência para as actividades amorosas. Além do mais é demasiado pequena para ele que é um bom matulão. Dão-se normalmente bem até que a pequena não se chateie da brincadeira, aí ela mostra dentes e às vezes até parte para a agressão.
O Langão merecia que alguém o adoptasse. Quem o levar arranja decerto um bom amigo. Eu e alguns vizinhos estamos a fazer tudo para isso, mas não é fácil. A crise e o modo actual de vida não é propenso a que se adoptem langões e, um “pointer” com uns bons 40 kg não é propriamente um bichinho para andar ao colo mas, será um bom companheiro para umas passeatas e até para a caça se ensinado para isso.
Enquanto um dono não aparece lá o vamos amparando na medida do possível. Pode não comer tudo o que necessita, mas de fome não morre. Entretanto, as cadelas da região, vão vivendo felizes.



domingo, 8 de julho de 2012

ÁFRICA, MINHAS RECORDAÇÕES…


O homem parou o “jeep” á beira da estrada. Um grande embondeiro, uns 60 metros ao lado direito, chamou a sua atenção. Grande árvore aquela. Imponente e nua de folhagem, tronco enorme e grosso, os ramos nus e finos cresceram para o alto de forma desordenada tendo nas pontas frutos pretos e secos pendurados como se fossem grandes morcegos em descanso. O seu olhar passou muito para além tentando vislumbrar qualquer animal. Nada. Parecia que o tempo parara por ali. Uma calmaria silenciosa impressionava. Aquela África estava estranha, não parecia a África que o tinha seduzido há muitos anos atrás. Tudo estava tão diferente…
“− Meu Capitão, agora que já carregámos a lenha, podíamos fazer uns tiros ali aos frutos daquele embondeiro? A malta nunca atira, o meu Capitão nem lá no acampamento nos deixa atirar quando há ataques.
− Claro que não vos deixo atirar. Vocês por acaso já viram algum inimigo quando há confusão por lá?
Os moços tinham razão. O Capitão ficava furioso quando havia tiroteio. A rapaziada do Batalhão e das Companhias, quando havia meia dúzia de tiros, faziam tal estardalhaço que mais parecia que se defendiam de um ataque dum batalhão de infantaria. Era um desperdício total sem qualquer resultado prático. Os seus homens estavam industriados para só atirarem se houvesse aproximações ao arame farpado. Em quase dez meses na região, apenas uma vez vira dois tipos a correr ao longe, depois de terem dado uns tiros para o estacionamento, desaparecendo logo no mato. Os nossos fizeram guerra por conta própria durante meia hora. Os seus rapazes nem um tiro deram.
Agora estavam cheios de vício para dar ao dedo.
− Está bem, atirem mas um de cada vez. Vamos ver qual o primeiro a desfazer um dos frutos.
E o pessoal lá se divertia com os falhanços da rapaziada que, infelizmente eram muito maus atiradores.”
Decorridos quase 40 anos, aquelas imagens vinham-lhe á memória como se aquelas cenas tivessem ocorrido ontem. A nossa guerra terminara e ainda bem. Chegara a altura de deixarmos aquelas populações entregues a si próprias.
Que vantagens trouxera a colonização? Os colonizadores serviram-se das populações para executarem trabalhos que nada lhes deu. Os frutos desses trabalhos apenas serviram aos colonizadores e dentro desses só aos poderosos. Evangelização? Bah! Para quê? Não estavam eles satisfeitos adorando os seus próprios deuses e fetiches? Selvagens? Não sei quem era mais selvagem, se eles se nós que tanta asneira por lá fizemos e tanta dor provocámos. Pois, construímos cidades, ensinámos os povos a vestirem-se e calçarem-se. Pusemos alguns a irem à escola mas tendo sempre o cuidado de não lhes ensinarmos muito pois povo educado pensa e pensar abre as mentes e isso era perigoso.
Agora não estavam melhores. As elites revolucionárias tinham tomado conta do poder e a ditadura instalara-se. A ansia de poder e a corrupção instalou-se nos governos e o povo continuou na miséria. Mas, enfim, pelo menos eram governados pelos seus. Que se desenrascassem.
O homem continuava sentado no banco do “jeep” e não lhe apetecia sair dali. O calor húmido começou a fazer os seus efeitos e a camisa colava-se-lhe ao corpo. Andou com o carro um pouco mais para a frente colocando-se à sombra de uma árvore. A tarde aproximava-se e alguns pássaros começaram a ouvir-se. Estava a passar aquela parte do dia em que a savana africana descansa. Dentro de momentos uma miríade de sons far-se-ia ouvir. Fechou novamente os olhos e as recordações voltaram…
“O Alferes médico corria de maca para maca, na pequena enfermaria do batalhão, tentando fazer a triagem daqueles mais necessitados de cuidados imediatos. Os feridos entravam na enfermaria à medida que iam chegando ao estacionamento. Uma emboscada tinha-os apanhado uns quilómetros antes e as baixas tinham sido consideráveis. Explosões na picada, causadas por armadilhas comandadas à distância, tinham apanhado a coluna em cheio e causado mais estragos que os tiros que se lhe seguiram. A Companhia vinha, há vários dias, fazendo segurança à engenharia que fora reparar vários troços da perigosa picada Nanbuangongo-Zala. O Capitão tinha corrido a prestar o auxílio possível àqueles homens que tanto tinham suportado e agora sofriam pelos ferimentos recebidos. Sentia-se impotente por não saber bem o que fazer no meio daquele caos. O médico tentava socorrer um homem com um traumatismo craniano quando o enfermeiro o chamou por um dos feridos ter começado com convulsões.
− Meu Capitão ajude-me aqui. Segure com a sua mão o parietal deste homem. Contenha o mais possível a hemorragia e veja se a massa encefálica não sai. Este já perdeu alguma e se perde mais não se safa.
E ali ficou o Capitão com uma cabeça entre mãos e massa encefálica a querer sair por entre os dedos. Como era isto possível? Porque aconteciam coisas destas? Pois, estavam mesmo em guerra embora muitas vezes se esquecessem disso. Quando acabaria tudo aquilo? Quando é que os políticos chegariam à conclusão que não se vence um povo determinado a libertar-se? Se lessem mais livros de história rapidamente se aperceberiam que os povos, quando se sentem oprimidos por invasores, se entram em guerras de libertação, ninguém os vence.
A noite foi longa e, graças aos abnegados esforços daquele médico, do seu enfermeiro e de todas as ajudas possíveis, não houve mortes. Já de madrugada fizeram-se as evacuações para o hospital de Luanda.”
O homem pôs o “jeep” a trabalhar e arrancou. O trabalho, que o fizera regressar a África, esperava por ele. Agora já não estava em guerra com ninguém, mas os angolanos continuavam numa guerra fratricida em luta pelo poder. O homem não aprende nem sabe viver em paz. A ganância causa exploração e esta causa rebeliões, mas a ânsia pelo poder é o pior dos males.



segunda-feira, 2 de julho de 2012

O FOGO


O Quim gritou; − Eh! Malta! Há fogo na mata junto à linha lá em baixo.
Corremos todos até ao alto das grandes pedras escarpadas quase a pique e que davam para o grande vale onde corria a ribeira. Dali vislumbrava-se toda a panorâmica à nossa volta. Do lado de cá do pequeno rio, uma ceara, ainda verdejante, ondulava com o vento fazendo lembrar o mar encapelado. O Zeca, irmão mais novo do Quim, lembrou que a “bomba” devia estar a passar e, se corrêssemos, ainda a apanharíamos. Os bombeiros voluntários, permitiam que uns tantos rapazes os acompanhassem e ajudassem no combate a incêndios florestais.
Corremos com asas nos pés. Eu de calções claros e botas cardadas, o Quim, mais velho um ano, já de calças de cotim cinzento e sandálias de couro, o Zeca, o mais novo, descalço e de calções de zuarte. Chegámos à estrada de alcatrão mesmo na hora e os bombeiros abrandaram para nos deixar subir. A “bomba”, como apelidávamos o velho carro vermelho com escadas e mangueiras, ia lançando os uivos de sirene alertando tudo e todos. Pelo caminho apanhámos mais uns quantos rapazes, todos nossos conhecidos ali da terra.
Chegados ao local já o incêndio lavrava bem pela mata fora com labaredas alterosas que lambiam pinheiros e eucaliptos. Os bombeiros, já habituados, apressaram-se a cercar o fogo fazendo umas aberturas corta-fogos, dirigindo os jactos das mangueiras para a base das árvores. Os rapazes tinham entretanto cortado ramos e com eles batiam mato e fenos nos sítios que os homens lhes indicavam. Populares juntavam-se a nós e iam apagando por conta própria mas segundo a indicação dos voluntários. Com pás, atirava-se terra para cima das chamas mais baixas, não permitindo a formação de cinzas incandescentes.
Aqueles fogos eram muito frequentes devido à proximidade da via-férrea. Os velhos comboios, ainda a carvão, eram os culpados pelas fagulhas expelidas das chaminés. O vento, bastante forte naquelas paragens e no verão, encarregava-se de as manter acesas no ar depositando-as nas matas circundantes. A pronta intervenção dos bombeiros e dos seus improvisados ajudantes, foi profícua. Umas 4 a 5 horas depois o fogo estava extinto. Não me lembro de fogos, pelo menos naquela região, que durassem mais de 6 ou 8 horas.
Entretanto as nossas roupas estavam pretas e chamuscadas. O calçado estava uma miséria, mas os pés do Zeca, completamente negros, não tinham uma queimadura. A sola daqueles pés era mais rija que a das minhas botas e nelas nada entrava. A hora de almoço tinha passado e a do jantar aproximava-se. Maldizia a minha sorte por ter de aparecer assim ao pé da minha mãe e muita sorte teria se o meu pai ainda não estivesse em casa.
Quando aparecemos na rua, as nossas mães já nos esperavam impacientes. Ouviram as sirenes e sabiam perfeitamente que tínhamos ido ver o fogo. Só que não nos esperavam naquela figura e com a roupa naquele estado. Fui para a banheira levado por uma orelha e não me livrei de umas palmadas no rabo com a colher de pau, bastante grande, que a minha mãe usava para o efeito.
Ao jantar, já com o meu pai em casa, como a minha mãe, nada dissesse, apressei-me a contar o episódio dourando um bocado a pílula, pela importante ajuda que déramos aos bombeiros e como o fogo tinha sido prontamente extinto. O meu pai, ignorando os estragos na roupa, enalteceu a nossa acção mas não deixou de aconselhar prudência e que estivéssemos sempre atentos às indicações dos bombeiros, pois os fogos eram perigosos, mudando, inúmeras vezes de direcção, apanhando as pessoas desprevenidas. E assim, visto pelo pai como herói e pela mãe como maluco transviado e incauto, lá me safei e fui para a cama satisfeito por ter auxiliado no combate àquela calamidade. No dia seguinte de manhã vim a saber que os dois irmãos tinham apanhado pela medida grossa da mãe e depois do pai, a quem ela se queixara. Eram indivíduos demasiado duros para com os filhos e não perdoavam aventuras daquelas.
Belos tempos esses em que alguns de nós gozávamos de bastante liberdade para nos metermos em alhadas sem que daí viessem grandes males para nós e para os outros.
Domingo à noite, já no meu colégio, o “Pilão”, os meus amigos ouviam o relato que lhes fazia, pintando o quadro com muitas cores e cenas tenebrosas provocadas pelas alterosas chamas que quase me devoraram.
Dante não teria descrito melhor aquele inferno.