A menina não cabia em si de contente. A mãe vestira-lhe o
traje domingueiro e penteara-a a preceito. Na escola, no dia anterior, a
professora dissera-lhes que iriam ter uma festa na igreja onde o pastor faria
uma dissertação sobre Deus Jesus e como era bom estar em estado de graça com fé
nesse Deus feito homem que morrera para remissão dos pecados humanos. Não
percebera lá muito bem o que isso queria dizer, mas sabia que estaria com os
outros meninos e meninas, todos amigos, num passeio domingueiro. A mãe, no
início, não achou lá muito bem. Passeios de autocarro, só com crianças e
naquelas estradas, poderia ser bem perigoso, mas a sua menina tanto implorou
que, condoída, lá condescendeu. Orou devotadamente à mãe de Cristo que
acompanhasse os garotos e que rogasse a seu Filho, a protecção daquelas
crianças inocentes. Sabia que Nossa Senhora, como mãe, os acompanharia e
protegeria.
No autocarro, uma auxiliar nomeada pela escola, sentou-os e
pediu-lhes para apertarem os cintos, pois assim estariam mais protegidos e que
teriam de permanecer nos lugares. A estrada estava bastante degradada e os
solavancos eram constantes devido aos inúmeros buracos. Cantaram e brincaram
proferindo graçolas de uns para os outros e nem deram pelo tempo da viagem. O
condutor seguia devagar, com ar carrancudo e preocupado. Deixaria as crianças
na Igreja e depois teria que ir receber a mercadoria, num serviço que lhe tinha
sido pedido e para o qual lhe pagaram bem.
Na Igreja, o bom pastor, recebeu as crianças com palavras
cristãs e muitos afagos nas cabecitas cheias de alegria devido à sensação de
liberdade que aquela manifestação religiosa lhes proporcionava, podendo
abandonar por algumas horas, a pobreza das suas casas e, juntamente com os seus
amigos, usufruírem da companhia uns dos outros fora da obrigatoriedade dos
deveres escolares.
O Pastor, entre cânticos, foi falando da sensação que, aos
crentes, causava a fé em Deus, a quem deveriam rezar e glorificar, para serem
por Ele protegidos e, assim, em estado de graça, poderem viver em paz e
conforto celestial. Finda a homília, foram distribuídas, para gáudio de todos,
guloseimas e refrigerantes.
À hora marcada, o condutor esperava em frente á Igreja, já
com a sua preciosa carga acondicionada e escondida de olhares curiosos.
Durante todo o regresso, o velho autocarro seguiu bastante
mais devagar, como se o peso dos anos, ou talvez da carga extra, lhe vergasse as
molas já bastante pasmadas.
O motor começou a falhar e uma ruga de preocupação alterou a
testa do motorista. Após uma curva e já próximo de uma povoação, parou mesmo e
não cedeu às sucessivas tentativas de arranque. O motorista saiu e fechou a
porta, não fosse algum dos estouvados miúdos dar-lhe para sair e depois lá
viriam com as culpas para cima dele. Abriu o capou e desapertou o tubo do
acesso da gasolina ao carburador vendo que a gasolina saía normalmente. Não
havia entupimento antes, deveria haver depois. Desapertou o tubo de saída e,
como deixara a chave ligada, acionou o motor de arranque. Uma faísca saltou
incendiando de imediato a gasolina entornada. Uma imensa chama fez o motorista
saltar para trás. Como se de um dragão enfurecido se tratasse, as chamas
rapidamente penetraram no autocarro pegando-se de imediato às vestes dos
pequenos passageiros que, apanhados desprevenidos, nem tempo tiveram para se
soltarem dos cintos. Alguns, antes de serem totalmente apanhados pelo fogo
inexorável, ainda bateram com as mãos e com as próprias cabeças, tentando
quebrar os vidros que lhes permitissem uma fuga para fora daquele inferno que
os queimava e asfixiava. Alguns populares ainda tentaram retirar algumas
crianças mas rapidamente tiveram de se afastar devido à rapidez com que as
mesmas se propagavam e aumentavam. O crepitar dos materiais do veículo abafava
os gritos dos pobres garotos. Certamente algo de muito inflamável estaria
dentro daquele carro para que o fogo se tivesse propagado tão rapidamente.
Do autocarro só sobraram destroços calcinados. Dos passageiros
só corpos carbonizados. No interior da viatura apenas se notaram duas faltas:
Do condutor, que a tempo e cobardemente fugiu e de deus por não existir…