segunda-feira, 19 de maio de 2014

Os Meninos, a Festa e a Tragédia


A menina não cabia em si de contente. A mãe vestira-lhe o traje domingueiro e penteara-a a preceito. Na escola, no dia anterior, a professora dissera-lhes que iriam ter uma festa na igreja onde o pastor faria uma dissertação sobre Deus Jesus e como era bom estar em estado de graça com fé nesse Deus feito homem que morrera para remissão dos pecados humanos. Não percebera lá muito bem o que isso queria dizer, mas sabia que estaria com os outros meninos e meninas, todos amigos, num passeio domingueiro. A mãe, no início, não achou lá muito bem. Passeios de autocarro, só com crianças e naquelas estradas, poderia ser bem perigoso, mas a sua menina tanto implorou que, condoída, lá condescendeu. Orou devotadamente à mãe de Cristo que acompanhasse os garotos e que rogasse a seu Filho, a protecção daquelas crianças inocentes. Sabia que Nossa Senhora, como mãe, os acompanharia e protegeria.
No autocarro, uma auxiliar nomeada pela escola, sentou-os e pediu-lhes para apertarem os cintos, pois assim estariam mais protegidos e que teriam de permanecer nos lugares. A estrada estava bastante degradada e os solavancos eram constantes devido aos inúmeros buracos. Cantaram e brincaram proferindo graçolas de uns para os outros e nem deram pelo tempo da viagem. O condutor seguia devagar, com ar carrancudo e preocupado. Deixaria as crianças na Igreja e depois teria que ir receber a mercadoria, num serviço que lhe tinha sido pedido e para o qual lhe pagaram bem.
Na Igreja, o bom pastor, recebeu as crianças com palavras cristãs e muitos afagos nas cabecitas cheias de alegria devido à sensação de liberdade que aquela manifestação religiosa lhes proporcionava, podendo abandonar por algumas horas, a pobreza das suas casas e, juntamente com os seus amigos, usufruírem da companhia uns dos outros fora da obrigatoriedade dos deveres escolares.
O Pastor, entre cânticos, foi falando da sensação que, aos crentes, causava a fé em Deus, a quem deveriam rezar e glorificar, para serem por Ele protegidos e, assim, em estado de graça, poderem viver em paz e conforto celestial. Finda a homília, foram distribuídas, para gáudio de todos, guloseimas e refrigerantes.
À hora marcada, o condutor esperava em frente á Igreja, já com a sua preciosa carga acondicionada e escondida de olhares curiosos.
Durante todo o regresso, o velho autocarro seguiu bastante mais devagar, como se o peso dos anos, ou talvez da carga extra, lhe vergasse as molas já bastante pasmadas.
O motor começou a falhar e uma ruga de preocupação alterou a testa do motorista. Após uma curva e já próximo de uma povoação, parou mesmo e não cedeu às sucessivas tentativas de arranque. O motorista saiu e fechou a porta, não fosse algum dos estouvados miúdos dar-lhe para sair e depois lá viriam com as culpas para cima dele. Abriu o capou e desapertou o tubo do acesso da gasolina ao carburador vendo que a gasolina saía normalmente. Não havia entupimento antes, deveria haver depois. Desapertou o tubo de saída e, como deixara a chave ligada, acionou o motor de arranque. Uma faísca saltou incendiando de imediato a gasolina entornada. Uma imensa chama fez o motorista saltar para trás. Como se de um dragão enfurecido se tratasse, as chamas rapidamente penetraram no autocarro pegando-se de imediato às vestes dos pequenos passageiros que, apanhados desprevenidos, nem tempo tiveram para se soltarem dos cintos. Alguns, antes de serem totalmente apanhados pelo fogo inexorável, ainda bateram com as mãos e com as próprias cabeças, tentando quebrar os vidros que lhes permitissem uma fuga para fora daquele inferno que os queimava e asfixiava. Alguns populares ainda tentaram retirar algumas crianças mas rapidamente tiveram de se afastar devido à rapidez com que as mesmas se propagavam e aumentavam. O crepitar dos materiais do veículo abafava os gritos dos pobres garotos. Certamente algo de muito inflamável estaria dentro daquele carro para que o fogo se tivesse propagado tão rapidamente.

Do autocarro só sobraram destroços calcinados. Dos passageiros só corpos carbonizados. No interior da viatura apenas se notaram duas faltas: Do condutor, que a tempo e cobardemente fugiu e de deus por não existir…

6 comentários:

  1. Meu caro amigo Rui Telo,

    Terá sido Deus, ele próprio, na sua incompreensível indefinição, que te levou a escrever, num gesto, de como quem escreve por linhas tortas... mesmo muito tortas, dar um sinal da sua própria incompreensão para afinal reconhecer a estranha forma de sempre estar presente e mesmo assim não ser capaz de acudir àqueles que nunca deveriam merecer os martírios de um destino fatal!?...

    Terás sido tu o veículo da sua própria consciência da farsa em que tantos acreditam por não se sentirem aptos a assumir a dúvida e a incompreensão dos actos proclamados como divinos e portanto não imputáveis a ninguém!?...

    Terá sido um sinal de que afinal Deus só existe porque queremos imaginar que Ele existe?... E não procuramos o racional na teia fechada da negação da busca do conhecimento?...

    Um abraço e obrigado pelas tuas reflexões que nos ajudam a reconhecer as dúvidas e o direito de exigir provas do improvável,

    Ernani balsa

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    1. Só tu, com a tua excelente, prosa para postares um comentário como este. Estou mais concordante com os segundo e terceiro parágrafos. É a mente humana com os seus medos, anseios e interrogações que cria deuses onde se refugiam para esconderem a sua incapacidade de raciocínio e racionalização. Continuam sempre com a dúvida mas mais vale ficarem com deus do que com o diabo. O inferno ainda mete medo a muita gente.

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    2. Amigo Telo
      Não comentei a tua crónica, na altura própria, porque o assunto era demasiado doloroso e estava muito bem explicitado. Porém, agora, ao debruçar-me sobre a tua resposta a um comentário, não resisto a dar a minha opinião sobre os conceitos que formulas.
      Eu sei que és honesto nas tuas convicções, mas também sei que tentar discutir a existência de Deus com um incréu, é uma forma de masoquismo inconsequente. Qualquer justificação que se apresente é sempre refutada com a estafada afirmação da falta de prova (que existe, embora não se queira aceitar), com o rebuscado sofisma que tranforma uma situação no contraditório, com o sempre presente argumento do erro humano no desempenho de funções sacerdotais.
      Amigo, eu não me considero um mentecapto que aceita tudo o que lhe querem fazer crer, mas também confesso que não possuo suficiente bagagem para tentar explicar o motivo porque creio num Deus que me apresentaram em criança, que abandonei na adolescência, e que recuperei com a idade.
      Se isto sucede como um refúgio para esconder a incapacidade de raciocínio e racionalização, será que é lícito perguntar-te em que te baseias para produzires esta afirmação? Imagino que estás a colocar o problema num sentido lato, geral, mas eu, ao lê-lo, sinto-o dirigido a mim.
      Que eu saiba, nunca me escondi atrás de nada, nem de ninguém, para analisar, com clareza, todos os meus problemas, possivelmente, nem sempre bem, portanto a minha fé não provém da busca dum qualquer refúgio, mas duma certeza íntima que, do mesmo modo que aceito e respeito opiniões contrárias, me magoa ver adjectivada.
      Para terminar, reafirmo que gostei muito da tua crónica.
      Um grande abraço
      Tiago

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    3. Amigo. Obrigado pelo teu comentário. Quando falo da minha não crença por nada me provar a existência de Deus, não o faço contra ninguém e muito menos contra ti. Apenas constacto que se existe não é bom ou é muito mau. Um Deus bom não faz maldades contra a "sua própria criação". Por outro lado também não consigo conceber que um Deus imaterial possa ter criado um semi-deus para vir à terra transmitir a sua palavra e deixar-se matar para remissão dos pecados humanos, quando era preferível não deixar os tais humanos cometerem esses pecados.Para acreditar em Deus Jesus tenho também de acreditar em Hércules.E não me venham com o livre arbítrio quando se coloca nas escrituras a incongruência de um pecado original. Colocar uma árvore do conhecimento que não pode ser acessível, além de uma incongruência é uma provocação. Bastava não a ter lá colocado. A Bíblia está cheia de erros e incorrecções próprias da ignorância da época em que foi sendo escrita. Se era de inspiração divina, não devia conter erros. Logo, foi escrita pelos homens. Tu só tens conhecimento de Deus através do que te foi ensinado. Se ele quisesse dar-se a conhecer, já devias ter nascido com esse conhecimento nos genes. Mas se tivesses sido criado pelos lobos, além de uivares, comias sem mãos e andavas de quatro sem qualquer conhecimento de Deus e, repara que escrevo Deus com letra grande em atenção à tua crença, pois para mim é ser que não existe. Se estudares todas as religiões antigas e modernas, verificarás sem grande esforço que todas são cópias umas das outras. O mito de Jesus é uma cópia de outros mitos tais como Mitra ou Dionísio e muitos outros. Todos filhos de virgens, nascidos a 25 de Dezembro, mortos e ressuscitados, etc... Lê sobre isso que é muito giro e salutar. Quanto à ideia de que aquilo que escrevo ou digo é para te contestar, estás muito enganado. Respeito as tuas crenças. Só não as sigo e contesto-as na generalidade, não só as tuas. Abração e continua a postar comentários. è sempre bom.

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  2. Meu caro amigo
    Li o seu belo e corajoso artigo, tendo visto, mais tarde, no noticiário televisivo, o relato da tragédia a que se referia; Sabendo que todos nós ficamos compungidos com esses horrorosos factos, que nos ensombram a alma e libertam a lágrima, é-nos lícito explicitar um grito de revolta como purga para o desespero e impotência que povoam a nossa consciência! Meu caro, como eu o entendo! Pergunto a mim mesmo, tantas vezes, como é possível existirem, em espíritos de reconhecido mérito intelectual, uma dualidade de apreciações sobre acontecimentos que a mais simples lógica faz desembocar no acaso? Se um tufão causa milhares de vítimas e destroça uma região, "Deus" não intervém porque limitaria a liberdade que pôs na mão do homem, mas, se, porventura, o cataclismo não causou a desgraça, logo se aponta a intervenção divina! Como constato, não podemos, sobre assunto de tal importância, manter qualquer tipo de discussão, pois que, manifestamente, e com honestidade, perfilhamos a mesma opinião.Ao longo da minha vida, que já leva umas boas dezenas de anos, procurei, arduamente, alguma evidência que sossegasse a intranquilidade que povoava a minha mente, mas, atónito,nunca consegui entender a "FÉ" de muitos que rodeavam, e rodeiam, a minha existência! Creio, por isso, que temos de aceitar a limitação da nossa inteligência. Parabéns pelo artigo. Um abraço do Jaime Moura

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  3. Obrigado Amigo. Como anónimo lá conseguiu comentar. E valeu a pena. É sempre uma "bênção", não divina claro está, receber comentários desta craveira. Tal como o meu amigo nunca consegui entender a fé dos homens, mas isso não me provoca qualquer intranquilidade, porque nesse aspecto, não tenho dúvidas. Abraço

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