terça-feira, 13 de novembro de 2018
Os sapatos
Somos um velho par. Estamos gastos, deformados, mas muito feitos ao pé de quem nos comprou. Não nos pensem uns sapatos escravos. Temos o nosso orgulho. De vez enquanto até damos uns apertos para mostrarmos que ainda estamos ali para as curvas e para as rectas também. Lembramo-nos bem quando ainda éramos uma simples pele de vaca, curtida e cuidada com muito esmero. Como fomos cortados, moldados, colados, polidos. Quando nos juntaram borracha e nos colocaram solas que ainda hoje palmilham durante longos tempos por essas ruas lisboetas e não só. Muitas vezes calcamos pedais que nos levam estradas fora para locais não habituais. Mas sempre abraçando e cuidando pés aos quais estamos feitos há uns anos bons.
Mas a vida de uns sapatos também tem agruras. O nosso utilizador habitual deixa-nos inúmeras vezes abandonados naquelas tábuas húmidas, num ambiente caótico, onde muitos nossos congéneres também por ali ficam, uns com meias dentro, outros sem. Muitas vezes os odores não são os melhores, mas enfim, temos de esperar que voltem das águas, se vistam, falem, contem anedotas, digam disparates e acabem por nos calçar e levar para o nosso poiso habitual, onde nos limpam, cuidam, engraxam e nos guardam em armários escuros, mas quentes e confortáveis.
Mas, valha-nos São Galvão padroeiro dos caminhantes, um destes dias fomos levados, não pelo nosso utilizador habitual, mas por alguém distraído que, tendo nos pés outros como nós, resolveu meter-nos num saco e levar-nos para uma habitação desconhecida onde chegámos, tristes, estupefactos e acabrunhados. Felizmente sem más intenções, pois já nos estávamos a ver a envolver outros pés que não os habituais. E sabíamos lá se tinham joanetes, calos e outras deformidades que nos alterassem a forma. Também não sabíamos as intenções de quem nos pegou. Talvez fosse algum pedinte ou sem-abrigo, habituado a andar descalço e nos metesse dentro pés encardidos, malcheirosos, com cheiro a queijo retardado. Felizmente tudo acabou em bem. Ao chegar a casa, quem nos pegou, teve o bom senso de reparar que tinha uns nos pés e outros no saco, e lá nos devolveu deixando-nos entregues a alguém que conhecia o nosso utilizador habitual que, tendo ido para casa de chinelos, triste e magoado por nos pensar já roubados por desconhecidos, voltou ao local onde lhe fomos entregues para gáudio nosso e dele.
Nunca nos tínhamos visto em tal aventura. Felizmente lá regressámos ao nosso armário habitual depois de bem limpos e engraxados. Pelo sim pelo não, fomos aspergidos por dentro e por fora por um desinfectante, pois nunca se sabe…
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