segunda-feira, 3 de setembro de 2012

BLIMUNDA

Saramago, numa entrevista ao Jornal de Letras, em 1990, disse a propósito de Blimunda:
(...)Que outra condição, então, que razão profunda, porventura sem relação com o sentido inteligível das palavras, me terá levado a eleger esse nome entre tantos? Creio que sei a resposta, que ela me acaba de ser apontada por esse outro misterioso caminho que terá levado Azio Gorghi a denominar Blimunda uma ópera extraída de um romance que tem por título Memorial do Convento: essa resposta, essa razão, acaso a mais secreta de todas, chama-se Música. Terá sido, imagino, aquele som desgarrador de violoncelo que habita o nome de Blimunda, profundo e longo, como se na própria alma humana se produzisse e manifestasse, que me levou, sem nenhuma resistência, com a humildade de quem aceita um dom de que não se sente merecedor, a recolhê-lo num simples livro, à espera, sem o saber, de que a Música viesse recolher o que é sua exclusiva pertença: essa vibração última que está contida em todas as palavras e em algumas magnificamente." (...)
Saramago não autorizou que o seu livro “Memorial do Convento”, servisse de tema para um filme ou até peça de teatro e, fê-lo, porque achava que a sua personagem Blimunda não poderia ser descrita em imagens ou sequer representada em palco. Realmente, Blimunda é uma personagem de tal modo complexa que se tornaria impossível transportá-la para um “écran” ou para um palco.
Blimunda é a encarnação de um “Espírito Santo” numa trindade imaginada por Saramago. O Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão será “Deus” e, Baltazar, O Sete-sóis, a encarnação de “Deus” na terra.
Bartolomeu, o frade sonhador e inventor de uma máquina de voar, afrontando a Igreja, numa idade média assombrada pela terrível Inquisição, tentou elevar-se nos céus, o que, até ali, só era domínio de Deus
Baltazar, o Sete-Sóis, era o abnegado soldado, solidário com o seu próximo, sempre pronto a ajudar os fracos e oprimidos, num Portugal triste e cinzento para o Povo e em que o clero impunha a sua vontade a uma nobreza podre e mesquinha vivendo das riquezas do País e deixando o Povo na miséria.
Blimunda, a vidente, mulher de poderes incomuns herdados de sua mãe que, por ser vista como feiticeira foi degredada. Blimunda tinha a faculdade de, enquanto em jejum, ter visão de raios X e poder ver as coisas e as pessoas por dentro. E assim “via” nas entranhas de cada um tudo aquilo que de mau habitava os seres humanos, mas também as “vontades” que lhes permitiam lutar pela vida conseguir o bem de todos e tentarem transformar a sociedade em algo elevado e justo. Por isso, nunca olhou o seu Baltazar por dentro, porque o amava como era, comendo pão de olhos fechados, todas as manhãs, para quebrar o jejum. Mulher sensual e inteligente, vivia em concubinato com o seu homem, por não acreditar numa igreja corrupta e aproveitadora das fraquezas do Povo e da realeza, não aceitando regras que a escravizassem.

 “ (…) Baltasar, leva-me para casa, dá-me de comer, e deita-te comigo, Porque aqui adiante de ti não te posso ver, e eu não te quero ver por dentro, só quero olhar para ti, cara escura e barbada, olhos cansados, boca que é tão triste, mesmo quando estás ao meu lado deitado e me queres (...) MC.”

Blimunda acreditou na “fé” do querer voar de Bartolomeu e, ajudou-o sacando “vontades” que lhe permitiram encher os balões que elevaram a sua “passarola”.

Foi a musicalidade desta personagem, que levou Saramago a aceitar que Azio Gorghi compusesse e encenasse uma ópera denominada Blimunda.
A ópera foi estreada no Teatro Lírico de Milão em Maio de 1990, tendo tido grande aceitação do público já conhecedor da obra de Saramago. Gorghi, por seu lado, era já um compositor consagrado.
Tive o privilégio de ver Blimunda no teatro de São Carlos em Lisboa, na sua segunda sessão, onde, por acaso, Saramago, acompanhado do seu amigo Álvaro Cunhal, estava presente. Num dos intervalos, entre actos, eu e minha mulher, fomos cumprimentar Saramago a quem expressámos a nossa admiração pela sua obra e também pela ópera, em que colaborou no “libreto”. Aproveitámos também para cumprimentar Cunhal, não pela sua ideologia que não partilhamos, mas pela sua carreira política de luta antifascista, e pela coerência e determinação nos seus ideais.

Falemos agora da ópera; Blimunda foi para mim uma grande surpresa, pois que achava ser quase impossível encenar num palco, algo de tão complexo como o “Memorial do Convento”, mas, por estranho que pareça, isso foi completamente conseguido. Não sei se, alguém que não tivesse lido o livro, conseguiria entrar totalmente no que o espectáculo nos queria transmitir, mas eu, vi ali toda a súmula daquele livro extraordinário.
A música é diferente. Quem fosse à espera de uma ópera tipo clássico, talvez se arrepiasse um pouco com algumas dissonâncias apresentadas mas, penso que a melodia muito apoiada em violinos e violoncelos, transmitia muito a sensibilidade da mulher que dá nome à obra; BLIMUNDA.
A ópera termina como o livro. Baltazar foge na passarola de Bartolomeu subindo nos céus e Blimunda procura-o incessantemente vindo a encontrá-lo na fogueira da Inquisição pagando pelo “pecado” de querer assemelhar-se a Deus. E então, Blimunda, que ainda não tinha comido, olha-o pela primeira vez nas entranhas e tira-lhe as vontades, pois que estas, só aos dois pertenciam.

(Texto também publicado no Boletim da Associação dos Pupilos do Exército)

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