sábado, 20 de outubro de 2012

O Cavalo que não quis ser burro


(dedicado à crise)
O Cavalo estava lindo, luzidio, gordo, livre e feliz. O seu dono tirava-o todas as manhãs das baias e levava-o para o pasto onde podia correr, escolher a melhor erva, espinotear e até espojar-se na terra do prado. Tinha água fresca no tanque que, para o efeito, enchiam todos os dias, uma manjedoura com ração e alfarroba para entremear com o pasto e palha fresca para se deitar quando lhe apetecia. Agradava-lhe sobremaneira ser aparelhado e levado ao picadeiro onde os netos do seu dono o montavam na aprendizagem da nobre arte de dominar um cavalo. Vivia, portanto, feliz e contente, num correr dos dias suaves e mornos, acompanhado às vezes pelo burro que, ao contrário dele, pouco tempo passava no prado, pois tinha que puxar o arado, rodar a nora, carregar os alforges cheios de hortaliças e outros artigos, muitas vezes demasiado pesados para as suas pobres costas. O pobre bicho também puxava uma enorme e pesada carroça enquanto ele passeava o dono e os netos numa elegante e leve charrete, bem pintada e reluzente.
Mas, começou a sentir que algo estava a mudar. O seu dono andava cabisbaixo e meditabundo. Quando normalmente o escovava, estava sempre cantando e a dizer-lhe palavras bonitas que o incentivavam a portar-se cada vez melhor e a querer ser cada vez melhor cavalo. Agora, além de o fazer menos vezes, fazia-o cabisbaixo, calado e triste. Que se passaria?
Um dia, ao lavá-lo e escová-lo, enquanto lhe passava a brussa pelo lombo, começou com uma conversa esquisita. De voz um pouco embargada, foi-lhe dizendo que as coisas estavam mal, as vendas andavam a baixar, as pessoas tinham pouco dinheiro e compravam menos, os intermediários cada vez queriam os produtos mais baratos, o estado aumentara-lhe os impostos, etc… enfim, as coisas andavam mal e as despesas da quinta cada vez eram mais elevadas e as receitas minguavam a olhos vistos. Um tipo do banco passara por lá, propusera-lhe um empréstimo, pagaria pouco por mês, mas tinha de dar a quinta como hipoteca. Fora na conversa e realmente, no início, tudo ficara melhor, mas agora via que fora uma ilusão, tudo estava pior e nem conseguia pagar o empréstimo. Tinha de cortar nas despesas. Não aguentaria continuar com tantos animais. Pensou vendê-lo a ele, mas não foi capaz. A amizade que lhe tinha era muita e partia-se-lhe a alma só de pensar em perdê-lo. Teria de vender o burro, a charrete, diminuir as vacas, porque o leite também já aumentara e não conseguia vendê-lo todo, desfazer-se das cabras e ficar só com meia dúzia de ovelhas. Assim, pedia-lhe desculpa, mas ele, que era o seu querido cavalo e seu orgulho, como tinha mais força, teria de fazer todo o trabalho.
O nosso pobre cavalo, que adorava o seu dono, disse para consigo que teria todo o gosto em o ajudar e que não se importasse. Iriam conseguir.
A partir daí tudo mudou. Puxou arados e carroças, moveu a nora para as regas, acartou alforges para a praça, deixou de comer alfarroba e nem forças tinha para se deslocar até ao prado deixando-se ficar na cocheira, entre baias, triste e cabisbaixo. O seu lindo pelo tornou-se baço por falta de tratamento, lavagem e escova. Tinha sido cavalo e passara a burro. Via agora quão difícil era a vida daquele animal que se fora dali. Onde estaria? Certamente já morto nalgum matadouro. Talvez tivesse sido a melhor sorte. Na quinta já nem apareciam os netos do seu dono. As selas, sempre limpas e luzidias, já não se viam penduradas na parede, tinham sido vendidas para ajudar nas despesas. Os campos, até ali sempre verdes e viçosos, pareciam agora terra seca e erma apenas com carrascos e estevas acastanhadas. Seria que as coisas iriam continuar assim ou o seu dono conseguiria dar a volta por cima e mudar o rumo dos acontecimentos?
O tempo foi passando e tudo piorou. O nosso cavalo mudara para burro e teria de continuar assim. Como era difícil. O seu dono, não aguentava a tristeza de ter de entregar a casa e a quinta ao banco e caiu à cama bastante doente. A filha, que morava na cidade, não tinha tempo nem sabia tratar da quinta. A bicharada foi desaparecendo a pouco e pouco. Um dia, de uma velha e desengonçada carroça, saiu um homem moreno e barba rala, vestido de negro, acompanhado de uma mulher também de negro e saia até aos pés. Falava com a filha do seu dono, numa algaraviada esquisita mas deu para entender que vinham buscá-lo.
Não o levariam. Estava solto e livre. Ganhou forças e correu saltando por cima da cerca da portada. Correu como o vento sentindo-se cada vez mais livre. Não seria mais burro. A brisa, com cheiro a mar, chegou-lhe às ventas e deu-lhe mais forças para a corrida. Chegou à orla marítima, a um ponto da falésia que conhecia de passeios que ele e o dono davam antigamente. Uma rocha saliente formava uma plataforma. Nem abrandou. Chegado à ponta saltou, caindo na água com alguma violência.
Com os olhos no horizonte, nadou, nadou, nadou… o seu amigo burro talvez o esperasse lá bem no fim…
Já estava longe da costa quando olhou para trás. Se continuasse morreria. Se voltasse talvez as coisas se recompusessem. Pensando no seu dono e na tristeza de o deixar, ganhou forças e voltou. Já na praia, deixou-se ficar recompondo as forças. Galopou até à quinta. O dono estava melhor, em pé na varanda como se esperasse por ele. Com um relincho aproximou-se colocando-se de modo a que o dono o pudesse montar. Partiram os dois rumo ao desconhecido. Amanhã seria outro dia e juntos haveriam de sobreviver.

3 comentários:

  1. Juntos haveriam de sobreviver!Hoje, mais que nunca, pergunto-me se essa escrita não representa, ainda, uma réstea de esperança de quem, consciente, mas desesperadamente, se tenta agarrar a algo intangível e impossível de segurar neste mundo de m....que, em bacoca democracia apregoada,nos enlearam como aranhas fazem ás suas vítimas! Enrolaram-nos e preparam-se para comer-nos vivos!Nós seremos o manjar colocado na farta mesa da vilanagem para gáudio das suas mentecaptas mentes que,isso sim, engendraram as comesainas daqueles que lhes garantiram os farfalhudos anéis enfiados em besuntas mãos de verdadeiros vampiros!
    Na senda do desconhecido nada, enebriados pelo efémero vislumbramento dum vazio passado, sentam-se na mesa de palhaços aristocratas acreditando, bacocamente, que daquelas mentes anquilozadas ainda podem brotar ideias que consigam vestir o Rei!!! Há muito que o Rei vai nu, mas o Reino, já sem piedade nem mesericórdia, sem paciência e complacência, não lhe estende a mão para lhe dar um mísero cêntimo! O povo só deseja que a carroça se desmorone.Eles não sabem que o cavalo não puxará mais, porque também triste e desiludido, sem asseios, vestimentas e carinho, atirará com a albarda e submete-se a um caos que sempre ousou acreditar no direito da sua não existência!Os gordurosos rangerão os dentes, mas com eles levarão um mundo que nunca devia ter-lhes pertencido!

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  2. Com comentários destes dá gosto continuar com os meus pobres escritos. Obrigado Amigo.

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    1. Não são pobres escritos, não, pelo contrário, se calhar demasiado ricos ao ponto de justificarem a pouca coragem que alguns sentirão em meterem-se nos meandros duma prosa que, infelizmente, lhes é pouco familiar! Meu caro, alguma vaidade, desde que alicerçada,vale a pena como alimento da nossa alma! O meu amigo pode tê-la, por isso eu é que lhe estou agradecido.

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