domingo, 14 de outubro de 2012

O Pardal

Parei, como habitualmente nos meus passeios matinais, em frente da livraria alfarrabista. Chamou-me a atenção “ A Origem do Homem” de Charles Darwin. Como ando a ler um livro que a ele alude inúmeras vezes, “Breve história de quase tudo” de Bill Brysson, pensei em comprá-lo mas depressa engoli essa vontade. A “crise” que actualmente se vive, até esses pequenos prazeres me está a tirar. O dinheiro que penso gastar em livros e outras actividades culturais ou de prazer, faz-me falta para prover às necessidades diárias de manutenção de uma casa e família. Maldito dinheiro! Maldito capitalismo exacerbado! Malditos os governos que nos conduziram a isto! Maldita a vida que teima em acabar assim!
Dava mais uma vista de olhos pelas outras publicações quando, reflectido na vidraça da montra, reparei num velho pardal que debicava a terra junto de uma das árvores do passeio. Era um pardal dos velhos, já com gravata preta. Um macho, “senhor” do seu forte bico, procurando algo que lhe pudesse servir de repasto. Fiquei ali, embevecido, a olhar o bicho. O gato, à porta da livraria, olhava também. Não mostrou qualquer sinal de que pretendia atacar o passarito e eu congratulei-me com isso. Certamente vivia bem e não tinha fome, não precisando de caçar para comer. Naquele momento, dei conta de como a minha sensibilidade se tinha alterado. Como caçador, abato as espécies cinegéticas, sem ficar com qualquer problema de consciência, aqui na cidade, enterneço-me por ver um pardalito, bem vivinho, procurando sobreviver. Nem sempre foi assim…

− Pai. Dá-me dez tostões.
− Para que queres o dinheiro?
− Para comprar elásticos para uma fisga. Vou fazer uma como as que os rapazes daqui usam. Aquela que me compraste, com elásticos redondos e aquele cabo enorme, não serve. Custa a esticar e não dá pontaria nenhuma. Os rapazes usam elásticos de câmara-de-ar que compram no ferro-velho. O tipo corta um bocado que dá para dois elásticos e ainda sobram umas tiras para as ataduras. Com uma forqueta feita de uma haste de acácia e um bocado de cabedal duma lingueta de um sapato velho, faço o resto.
− Estou a ver. E depois vais para aí atirar fisgadas a torto e a direito e partir os vidros aos vizinhos. Não me arranjes sarilhos que já bastam os que tenho.
− Não. A fisga é para ir à caça dos pássaros, mais os rapazes daqui.
− Bem, toma lá e constrói a tua fisga. Depois mostra-ma para ver como ficou.
O puto correu ao ferro-velho e de lá trouxe o bocado de câmara-de-ar. Com uma tesoura que pediu à mãe, cortou os elásticos, foi à acácia mais próxima e escolheu uma forqueta bem apertada, cortou-a de cabo curto tirando-lhe a casca alisando-a com o canivete. De um sapato velho cortou a lingueta e com a tesoura cortou a sola da fisga. Montou tudo utilizando “cordões” do próprio elástico e saiu para a rua onde a experimentou. Estava óptima.
Com essa fisga, depois de alguns treinos, tornou-se um exímio atirador. Apanhou imensos passaritos pequenos procurando-os esgueirando-se por debaixo das oliveiras e outras árvores. O produto da caça era normalmente por ele preparado e depois frito pela mãe. Mas o puto andava triste. Nunca tinha sido capaz de caçar um pardal velho. Só os muito novos, quase acabados de sair do ninho, se deixavam surpreender por ainda não terem calo nem esperteza. Os pardais velhos eram demasiado matreiros e esgueiravam-se não se deixando caçar. Muitas horas foram gastas tentando enganar os pardalões. Um dia conseguiu.
Numa oliveira alta o pardal piava. O puto esgueirou-se por entre as árvores de modo a não ser pressentido. Já debaixo da grande árvore foi um sarilho para vislumbrar o bicho. Até que o viu. Piava olhando em frente e deixava a descoberto o peito roliço. O miúdo esticou os elásticos, apontou bem e desferiu a fisgada. A pedra atingiu o pardal em cheio, produzindo um ruído cavernoso. O pardal caiu entrechocando-se com os ramos, abatendo-se morto aos pés do rapaz, cujo coração batia com tal intensidade que quase se podia ouvir no silêncio do campo.
A alegria foi tanta que correu logo para casa para mostrar à mãe.
− Olha mãe! Consegui apanhar um pardal velho. Tenho de o mostrar ao pai.
− O teu pai hoje vem tarde. Fica a trabalhar e quando vier jantar já estarás deitado.
Foi uma tristeza para o puto, mas não se deu por vencido. Escreveu um bilhete a descrever a caçada e deixou-o em cima da mesa, no lugar do pai, com o pardal em cima…


Uma ambulância passou, com o seu desagradável “pi-nó-ni” afugentando o pardal. As minhas recordações foram-se desvanecendo. Hoje não faria tal coisa, mas caçar aquele pardal deu tanto prazer como actualmente abater uma perdiz em voo. Pode ser que um dia sinta pelas perdizes o que agora sinto pelos pardalitos.
Recomecei a caminhada. A porcaria da crise retornou à minha cabeça.
Ah! A fisga ainda a tenho, os elásticos foram mudando mas o cabo e o cabedal são os mesmos. A consciência é que já é outra. Não sei se para pior…

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