Aqui, nesta aldeia saloia às portas de Lisboa, durmo melhor. O
sossego, a menos claridade no quarto, uma cama maior e colchão mais rijo, dão-me
melhor descanso. Levanto-me cedo para quem nada tem a fazer. Menos das oito já
estou na banheira e pelas nove, de pequeno-almoço tomado, saio para
cumprimentar os cães amigos que ansiosamente já me esperam ao portão. Depois
dos latidos de satisfação e de muitas festas, atravessamos a estrada, direitos
aos campos. Contentes, correm à minha frente, farejando tudo quanto é sítio,
como se cães de caça fossem. No campo, vários homens plantam cebolos em regos
direitinhos. Uns vão colocando os cebolos, lado a lado e equidistantes,
enquanto os outros os seguem cobrindo as raízes com terra. Observo-os durante
uns instantes e olho o mar, um pouco longe. Uma mancha de nevoeiro, a algumas
milhas da costa vai direita à Ericeira passando por Mafra e segue continuando
pelas terras que ladeiam o IC19. O dia aqui está lindo e descansa-me. Como é
bom poder usufruir desta paz. Um casal de perdizes corre à minha frente,
certamente terão ninho que deve estar perto. Nesta época, normalmente, ainda
chocam os ovos, mas têm de comer e abandonam o ninho durante alguns instantes.
Raramente levantam voo e correm sempre numa direcção contrária à do ninho.
Depois, quando o perigo passa, é que lá se dirigem. Deixo os campos e volto à
estrada para ir tomar café. Os meus companheiros caninos esperam-me junto à
porta abanando os rabos de contentamento quando volto para junto deles. Ao
chegar a casa oiço um esvoaçar numa palmeira que tenho num mini-jardim em frente
à casa. Deve haver ninho por aqui. Oiço de novo o esvoaçar e acho estranho.
Então o pássaro não foge? Um pipilar não normal aguça-me a curiosidade. Lá está
ele. Um melro ainda bebé, que deve ter ensaiado os primeiros voos há bem pouco
tempo, está preso com uma asa espetada num espinho da palmeira. Vou buscar um
banco e consigo soltar o pobre bicho, não sem me picar bastante. Enquanto isso,
os pais esvoaçam e chilreiam por cima de mim. Pouco faltou para me agredirem.
Uma das asas está muito maltratada. Fico sem saber o que fazer. Se o deixo no
chão os cães apanham-no e era uma vez. Se o escondo demais os pais não o veem e
acaba por morrer. A natureza é cruel. O pobre bicho não vai sobreviver. Ainda
penso em tentar criá-lo mas é muito difícil. Se fosse um pintassilgo, mas o
melro tem uma alimentação muito variada. Temos de apanhar minhocas, formigas,
gafanhotos, etc.. Também comem fruta e algumas gramíneas, mas…
Deveria haver um deus dos
pássaros que tomasse conta destes abandonados da sorte. Mas deus anda tão
ocupado com os deserdados deste país, que infelizmente cada vez são mais, e
esquece o resto. Pobre bichano, não se vai safar. Um dia tão bonito como este
não deveria ser estragado com esta situação. Estou aqui sentado em casa a
escrever isto e o pobre passaroco não me sai da cabeça. Terei de ir buscá-lo ao
canteiro onde o deixei e, pelo menos, dar-lhe água. Será o mínimo que poderei
fazer por ele. Dei-lhe água directamente da minha boca. De início tentou
bicar-me os lábios, depois acabou por beber. Tentei fazer um ninho com um cesto
e uns panos. Tratei-lhe a asa com Betadine e coloquei-o lá, mas foge sempre e
tenho de apanhá-lo novamente. Entretanto, a cadela, já anda de olho nele e se
não tenho cuidado lá se vai o pássaro. Os pais já não andam por aqui. Como não
o encontram vão para outras bandas. Acabam por desistir. O que fazer? Parece-me
que não tenho outro remédio senão abandoná-lo ao seu destino. Através da janela
vejo um dos pais pousado num fio. Olha em volta mas não o vê. Se ao menos o
pequenote piasse… mas não, está mudo e quedo. Vai ser mesmo necessário um
milagre. Como milagres não existem, temos de deixar a natureza seguir o seu
curso. É assim que fazem os naturalistas que estudam a vida animal. Nunca
interferem, deixando sempre que tudo aconteça naturalmente limitando-se a criar
ou melhorar os ambientes para a sobrevivência das espécies. Terei de fazer o
mesmo e esquecer o bicharoco ou então vou ficar muito deprimido. Que diabo, um
dia que começou tão bem…
…
Está a morrer. Dei-lhe mais água.
Ainda bebeu mas já não tenta fugir quando o agarro. Coloquei-o no ninho
improvisado. Não tenho coragem para lhe acabar com o sofrimento. Vou deixá-lo
acabar calmamente.
Morreu. Porque me sinto tão mal?
Sou caçador e caço perdizes, pombos, rolas, tordos, etc. Mas ver um melro
morrer assim, depois de tanto trabalho que os progenitores tiveram. Fazer um
ninho, pôr ovos, chocá-los, alimentar os recém-nascidos, fazê-los sair do ninho
ensinando-os a voar, continuar a alimentá-los ensinando-os a procurarem a
comida por si próprios. Tanta canseira para um deles acabar espetado numa
árvore. Não devia acontecer, mas acontece com todos os animais e até connosco. São
as circunstâncias da vida. Nascer e morrer. Uns com um período intermédio mais
prolongado outros, mais curto. Este melrinho teve um período curto demais. Tive
pena. Amanhã vou com os canitos, tentar encontrar de novo as perdizes…
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