quarta-feira, 17 de abril de 2013

O MELRO

Aqui, nesta aldeia saloia às portas de Lisboa, durmo melhor. O sossego, a menos claridade no quarto, uma cama maior e colchão mais rijo, dão-me melhor descanso. Levanto-me cedo para quem nada tem a fazer. Menos das oito já estou na banheira e pelas nove, de pequeno-almoço tomado, saio para cumprimentar os cães amigos que ansiosamente já me esperam ao portão. Depois dos latidos de satisfação e de muitas festas, atravessamos a estrada, direitos aos campos. Contentes, correm à minha frente, farejando tudo quanto é sítio, como se cães de caça fossem. No campo, vários homens plantam cebolos em regos direitinhos. Uns vão colocando os cebolos, lado a lado e equidistantes, enquanto os outros os seguem cobrindo as raízes com terra. Observo-os durante uns instantes e olho o mar, um pouco longe. Uma mancha de nevoeiro, a algumas milhas da costa vai direita à Ericeira passando por Mafra e segue continuando pelas terras que ladeiam o IC19. O dia aqui está lindo e descansa-me. Como é bom poder usufruir desta paz. Um casal de perdizes corre à minha frente, certamente terão ninho que deve estar perto. Nesta época, normalmente, ainda chocam os ovos, mas têm de comer e abandonam o ninho durante alguns instantes. Raramente levantam voo e correm sempre numa direcção contrária à do ninho. Depois, quando o perigo passa, é que lá se dirigem. Deixo os campos e volto à estrada para ir tomar café. Os meus companheiros caninos esperam-me junto à porta abanando os rabos de contentamento quando volto para junto deles. Ao chegar a casa oiço um esvoaçar numa palmeira que tenho num mini-jardim em frente à casa. Deve haver ninho por aqui. Oiço de novo o esvoaçar e acho estranho. Então o pássaro não foge? Um pipilar não normal aguça-me a curiosidade. Lá está ele. Um melro ainda bebé, que deve ter ensaiado os primeiros voos há bem pouco tempo, está preso com uma asa espetada num espinho da palmeira. Vou buscar um banco e consigo soltar o pobre bicho, não sem me picar bastante. Enquanto isso, os pais esvoaçam e chilreiam por cima de mim. Pouco faltou para me agredirem. Uma das asas está muito maltratada. Fico sem saber o que fazer. Se o deixo no chão os cães apanham-no e era uma vez. Se o escondo demais os pais não o veem e acaba por morrer. A natureza é cruel. O pobre bicho não vai sobreviver. Ainda penso em tentar criá-lo mas é muito difícil. Se fosse um pintassilgo, mas o melro tem uma alimentação muito variada. Temos de apanhar minhocas, formigas, gafanhotos, etc.. Também comem fruta e algumas gramíneas, mas…
Deveria haver um deus dos pássaros que tomasse conta destes abandonados da sorte. Mas deus anda tão ocupado com os deserdados deste país, que infelizmente cada vez são mais, e esquece o resto. Pobre bichano, não se vai safar. Um dia tão bonito como este não deveria ser estragado com esta situação. Estou aqui sentado em casa a escrever isto e o pobre passaroco não me sai da cabeça. Terei de ir buscá-lo ao canteiro onde o deixei e, pelo menos, dar-lhe água. Será o mínimo que poderei fazer por ele. Dei-lhe água directamente da minha boca. De início tentou bicar-me os lábios, depois acabou por beber. Tentei fazer um ninho com um cesto e uns panos. Tratei-lhe a asa com Betadine e coloquei-o lá, mas foge sempre e tenho de apanhá-lo novamente. Entretanto, a cadela, já anda de olho nele e se não tenho cuidado lá se vai o pássaro. Os pais já não andam por aqui. Como não o encontram vão para outras bandas. Acabam por desistir. O que fazer? Parece-me que não tenho outro remédio senão abandoná-lo ao seu destino. Através da janela vejo um dos pais pousado num fio. Olha em volta mas não o vê. Se ao menos o pequenote piasse… mas não, está mudo e quedo. Vai ser mesmo necessário um milagre. Como milagres não existem, temos de deixar a natureza seguir o seu curso. É assim que fazem os naturalistas que estudam a vida animal. Nunca interferem, deixando sempre que tudo aconteça naturalmente limitando-se a criar ou melhorar os ambientes para a sobrevivência das espécies. Terei de fazer o mesmo e esquecer o bicharoco ou então vou ficar muito deprimido. Que diabo, um dia que começou tão bem…
Está a morrer. Dei-lhe mais água. Ainda bebeu mas já não tenta fugir quando o agarro. Coloquei-o no ninho improvisado. Não tenho coragem para lhe acabar com o sofrimento. Vou deixá-lo acabar calmamente.
Morreu. Porque me sinto tão mal? Sou caçador e caço perdizes, pombos, rolas, tordos, etc. Mas ver um melro morrer assim, depois de tanto trabalho que os progenitores tiveram. Fazer um ninho, pôr ovos, chocá-los, alimentar os recém-nascidos, fazê-los sair do ninho ensinando-os a voar, continuar a alimentá-los ensinando-os a procurarem a comida por si próprios. Tanta canseira para um deles acabar espetado numa árvore. Não devia acontecer, mas acontece com todos os animais e até connosco. São as circunstâncias da vida. Nascer e morrer. Uns com um período intermédio mais prolongado outros, mais curto. Este melrinho teve um período curto demais. Tive pena. Amanhã vou com os canitos, tentar encontrar de novo as perdizes…


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