A morte do companheiro Langão
trouxe-me tristeza, a tristeza trouxe-me saudade, a saudade trouxe-me isto:
As pedras da minha rua
esfolavam-me os joelhos. De tanto por lá cair e roçar a pele, aquilo já era uma
postela completa. A desinfecção era a língua do meu cão: “Anda cá Black, lambe
aí”; e lambia, lambia até ficar tudo limpinho e desinfectado. Mas as pedras
também serviam para serem atiradas pelas fisgas e fundas. Lembro-me de uma
funda que fabriquei com base num desenho tirado da Bíblia das Escolas. Já
naquele tempo me interessava pela história dos povos e pelas religiões. Aquela
bíblia, obrigatória nas aulas de religião e moral, era para mim melhor do que
uma história em quadrinhos. Sanção, David e Golias eram as minhas preferidas.
Nesta última tinha um pretenso desenho da funda com que David matou Golias.
Coitado do bom gigante que mais não fez, como bom soldado, que obedecer a
ordens superiores e ir lutar contra um espirra-canivetes da tribo vizinha. O
certo é que essa funda era especial e admirável. Até ali, as nossas fundas
limitavam-se a duas cordas de juta atadas a um quadrado de cabedal, normalmente
de uma lingueta de um dos nossos sapatos. Resolvi que a minha havia de ser
especial. Já não me lembro onde encontrei a tira de cabedal que lhe deu origem.
Cortei-a com um canivete afiado, deixando no meio um rectângulo suficiente para
comportar as pedras e, com três tiras para cada lado, impecavelmente
entrançadas, foram feitos os tirantes que terminavam num olhal num dos lados,
para enfiar o dedo médio e, do outro o terminal para segurar enquanto se
volteava por cima da cabeça ou ao lado do corpo. Após as voltas consideradas
necessárias e em consonância com a velocidade pretendida para o arremesso, o
terminal era largado, desferido o “tiro” ficando a funda agarrada à mão pela
argola enfiada no dedo. Depois de vários treinos, a rapaziada ganhava uma
pontaria de mestre e conseguíamos acertar num pau-de-fio, a cinquenta, sessenta
metros de nós. Era obra, e muita cabeça foi partida. Ainda hoje não posso
cortar demasiado o cabelo para não deixar à mostra as marcas dessas
“brincadeiras”. Belos tempos esses em que os papás se limitavam a curar-nos as
feridas sem importunarem os papás dos outros pelas culpas no cartório. Nós
também tínhamos as nossas.
Atirámos demasiadas pedras e
nunca conseguimos “limpar” a rua, pois elas pareciam nascer-nos debaixo dos
pés. Já naquele tempo a minha rua era a mais atrasada do Cacém. Chamava-se
Ribeiro de Carvalho, meu padrinho de registo, ateu, republicano anti-fascista e
director do Jornal República. Passou toda uma vida a fugir à famigerada PIDE
que nunca o conseguiu engaiolar. Tinha excelentes pontos de fuga e umas
cavernas lá na quinta, que mais tarde vim a conhecer. Outros amigos, como
Araújo e Sá, meu vizinho e Ramon de La Féria, médico, passaram alguns anos a
ver o sol aos quadradinhos. Dizia-se que a rua não era arranjada devido ao nome
que tinha. Depois de um triste acidente, Ribeiro de Carvalho sofreu um
traumatismo craniano e morreu uns meses depois de ter sido operado. Lembro-me
de Araújo e Sá, pai de quatro meus amigos de infância, dois rapazes e duas
raparigas, dizer que o tinham assassinado. Não acredito muito, mas…
Naquelas pedras, brinquei, corri,
caí, saltei ao eixo, às fogueiras dos santos populares e namorei. Lembro os
fins-de-semana, quando vinha do “Pilão”, Instituto dos Pupilos do Exército,
onde estudei, reunir-me com os amigos, rapazes e raparigas, encostados ao muro
de minha casa, conversar, namorar e fumar uns cigarritos sempre de costas para
a janela para o meu Pai não ver ou fingir que não via. As vidraças dos
vizinhos, os beirais dos telhados, os pardais e as cabeças dos companheiros,
foram os alvos daquelas pedras. Já contei demasiadas vezes o que aquela rua era
para mim. Hoje já lá não tenho ninguém, mas a casa ainda lá está. A rua já não
tem pedras e continua com o mesmo nome, felizmente, agora mais respeitado. O
asfalto, os muros arranjados e pintados deram-lhe um cunho diferente que já não
me diz muito. As recordações foram-se com as pedras. A fisga ainda existe, mas
a funda, aquela bonita funda que era o meu orgulho e a inveja de muitos, já
não. O entrançado veio a servir de trela dos cães e acabou como tudo, com o
tempo. Os amigos do Cacém ainda estão no meu pensamento, mas afastados pelas
circunstâncias da vida. Continuam meus amigos e se precisarem de mim estou cá.
As pedras estarão hoje enterradas sob o asfalto. Talvez ainda tenham vestígios
do meu ADN. Quem sabe…
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarConheci muito bem o motorista do meu padrinho. Homem bom, integro de excelente família. Esse boato correu por lá e o homem até entrou em depressão. Pura mentira. Foi mesmo acidente. Numa marcha atrás, o carro bateu ao de leve nas pernas de Ribeiro de Carvalho, já não novo e bastante pesado. Desequilibrou-se e bateu com a cabeça. Parece que uma lasca do crânio foi deixada no cérebro. Essa foi a causa da morte. Abraço
ResponderEliminarAinda bem que assim foi. Acabou-se o boato. Um abraço Rui
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