domingo, 20 de outubro de 2013

“Vai Falar com o Camões”

Ultimamente ando tão descorçoado com toda a situação do meu País, que me estou a tornar um chato difícil de tragar. Todas as minhas conversas tendem a descambar para o que o governo nos anda a fazer, sonegando-nos grande parte dos nossos já parcos proventos. Dizem alguns: “ Olha que há quem esteja muito pior do que tu, pois ganhando menos também lhes tiram e não é pouco”. Pois. Sei disso e tenho pena de todos, mas costuma-se dizer; “quanto maior é a barca maior é a tormenta”. E é bem verdade. Quem ganha mais, quando lhe tiram algo, tem os mesmos problemas dos que ganham pouco. Andar de cavalo para burro custa muito. Num destes dias, a discussão era tanta que o meu interlocutor me gritou: “É pá, vai falar com o Camões!”. Claro que não lhe levei a mal, o tipo também tinha problemas e em duplicado, pois a mulher também era reformada do estado. Fiquei a matutar naquilo. Falar com o Camões pareceu-me boa ideia. A época dele foi muito má, além das dificuldades de sobrevivência, a saúde não era boa e a independência nacional estava em perigo. Como gosto de andar pela cidade, desloquei-me até à baixa e dei comigo a caminhar até ao largo com o nome do nosso grande poeta e chegado lá encostei-me ali ao gradeamento a olhar para o grande épico criador daquela obra imortal que ainda hoje é um dos meus livros de culto e que, em destaque na estante lá de casa, consulto amiúde, lendo e relendo imensas estrofes.
Estive ali imenso tempo observando os passantes, quase todos cultivadores da noite, muitos de passagem para o Bairro Alto. Toda aquela malta me parecia de uma futilidade imensa, armados em finos mas com uma linguagem de fazer inveja a um carroceiro do antigamente. E isto, tanto eles como elas, com a agravante de as raparigas, além de futilidade e incultura total, trajarem como algumas prostitutas não gostariam de trajar e portavam-se como se quisessem levar para a cama todos aqueles com quem se cruzavam e trocavam algumas estúpidas frases.
Quando três desses, do tipo degenerescente masculino, passaram por mim com atitudes parvas e imbecis, olhei para o poeta e disse para mim próprio como se com ele falasse: “Triste sorte a tua teres sido colocado num local que se tornou ponto de encontro e passagem de tais aberrantes personagens”. Disse isto com um sorriso meio irónico nos lábios, mas fiquei sério de repente pois até me pareceu que o vate, além de sorrir também, deu uma piscadela de olho, perdão de pala, pois foi no olho direito que me pareceu algum movimento. Dei comigo a dizer-lhe: “Concordas? Então diz de tua justiça. Que achas destes tipos? Desta geração perdida?
Não sei bem o que se passou. Foi como se o tempo parasse e as pessoas desaparecessem. Do cimo da estátua, uma voz serena e límpida exclamou:

“Os parvalhões imbecis embasbacados
Que muito vazia têm a tramontana
Cujos neurónios, há muito ultrapassados
Nem conseguem furar a vã membrana
cerebral, e em gestos e dizeres disparatados
Mostram toda a torpeza humana
Entre gente decente só mostraram
A  trampa em que este País tornaram. “

Boa! Além de comunicar comigo, falava em estrofes de oitavas como se estivesse a recordar o seu primeiro canto dos Lusíadas. Tentei entrar em diálogo perguntando-lhe: “ Amigo Luís Vaz, e o que me dizes das mulheres, estas parvas que por aqui andam, devem ser muito diferentes das mulheres que conheceste, não?”
E a voz, lá do alto, falou:

“E também com vestes vaporosas
Aquelas que por aqui vão passando,
Mostram quão elas  são viciosas
Por homens e sexo procurando.
E aquelas que em curvas sinuosas
Se vão de bolsa alheia aproveitando.
Agora estátua, não espalharei a arte
E a poesia terei de pôr de parte.”

Coitado do poeta. Desiludido e transformado em rígido pedregulho, até nem quer continuar a sua arte. Já agora, que Camões se decidiu a falar comigo, vamos a ver o que ele pensa da situação que me traz preocupado, o País e este estado de coisas. Nem precisei de formular a pergunta, como se me tivesse ouvido, disse:

“Cessem, grandes nabos  do Troikano
As estragações enormes que fizeram;
Cale-se o Passos e mais o Plano
Dos orçamentos torpes que pariram;
Que eu canto o peido triste Lusitano,
Que estão dando os que obedeceram.
Cesse tudo, porque a merda é tanta
Que já nem o pau se lhes alevanta.”

Dei comigo a rir que nem um perdido. Afinal o grande poeta tinha um imenso sentido de humor e estava a par da situação política do País. Também ele via a inépcia dos dirigentes que democraticamente tomaram conta do poder para se governarem a si e aos seus apaniguados e não governarem os que, trabalhando, conseguem o pão que eles comem. E o resultado da sua falta de visão, em todas as áreas, foi a manutenção de um povo deseducado, amorfo, a roçar a imbecilidade. As mulheres de hoje, falando das jovens, cultivam-se com novelas e revistas de fofocas, copiando as artistas que vêem, convencidas que a mostrar e dar o corpo é que conseguem ser alguém na vida. Tanto oferecem que vão tirando a vontade aos destinatários da oferta. Foi então que Camões continuou:

E vós, mulheres minhas, pois cuidado
Não tragam em vós desejo ardente,
De sexo sem amor não desejado.
Ficará em vós lembrança tristemente,
Do que ser podia e foi estragado.
Tragam sim amor na vossa mente,
Que se consuma em chama perene
Vos encha o coração e a mente ordene.

“Tens razão meu infeliz cantador da raça Lusa. O povo que cantaste já perdeu a gana da conquista e da vitória”.
 Arranjaram-nos uma forma de nos espartilhar. A democracia deveria servir para podermos alterar a forma de sermos governados, mas afinal é apenas uma forma da continuidade. A partidocracia tomou conta disto e arranjou maneiras legais de se perpetuar no poder. Partidos que se digladiam agora, fazem amanhã o que o antecedente fez, dando o dito por não dito com desfaçatez inaudita. Pudesse eu voltar atrás, no tempo em que a tropa era povo, ainda me metia noutra revolução. Mas o poder já não seria entregue a estes energúmenos. Só seria entregue quando a democracia fosse mesmo arma do povo e este pudesse eleger mas também demitir. Partidos no governo nunca mais. Teríamos de eleger um representante responsável perante o povo, que formasse governo tecnocrático, isento e não corrupto. Deixaríamos a AR para os partidos poderem votar leis, que só seriam aprovadas depois de passarem por todos os crivos que o povo exigisse colocando numa nova constituição os mecanismos necessários. Tivesse eu forças…
Preparava-me para deixar o recinto, quando…

Se uma fúria grande e poderosa
Me vem à mente, eu peço ajuda
Salto do pedestal  com gana belicosa,
Ou vai ou racha q’ isto não é  barbuda;
Troco por G3 a pena e a rosa
Imploro a Marte que me dê ajuda;
Parto esta merda de verso a reverso,
Nem que tenha de acabar o Universo.


Afinal parece que arranjei um companheiro. Pena estar morto.

3 comentários:

  1. Descobriste este Luís Vaz, entre muitos que sofrem neste País, cada vez mais destroçado e sem retorno. Puseste-lhe estas estrofes na boca. Refletem, o que a maioria sente e gostaria de dizer, só que tu tens o engenho, como o teu interlocutor, de o fazer de uma maneira notável.

    ResponderEliminar
  2. Obrigado pelas tuas palavras. Foi uma brincadeira com coisas sérias, mas realmente algo vai mal neste "reino".

    ResponderEliminar