Junto da cama, olhava aquele corpo magro, esquelético até,
ali, quase estático, sem nada dizer, nada fazer, interrogando-me se pensaria e
se o fizesse em quê. Perguntava à auxiliar o porquê daquela magreza, como se
ela pudesse saber… “Que comia e bem, tinha uma boca santa, tudo o que lhe
levavam à boca ela engolia…”
Perguntei se queria chocolate, disse sim sumidamente, sempre
adorara chocolate…
Fico por ali com os meus pensamentos, tentando perscrutar o
seu íntimo, tentando adivinhar o que pensará ou sentirá.
Recordei a nossa infância, aquele sábado fatídico em que,
por não termos aulas fomos até ao ringue de patinagem alugar patins com alguns
trocos que os pais nos deram, a queda que deu, como a olhar-lhe a perna vi logo
a fractura da canela. Gritei para que chamassem os bombeiros que nos levaram a
Lisboa para S. José. Lembrei a ansiedade enquanto esperava, como entrei por ali
dentro contra tudo e contra todos, o porteiro atrás de mim… “Que não podia
entrar ali, que era proibido, que“ …Que se lixasse!... o médico estava junto da
minha irmã, atendeu-me apesar dos meus 14 anos, que teria de ser operada pois a
fractura era grave.
Lembro de ainda ter uns trocos e ir à cabine telefonar para
casa, felizmente foi o meu pai que atendeu, a mãe entraria em pânico.
Levou cerca de três meses sem se levantar da cama, não
conseguia andar com o gesso, desequilibrava-se, pensávamos nós que pelo medo.
Já anteriormente aquela rapariga caía imenso, andava sempre de joelhos
esfolados. Depois da fractura passou a ter um andar ainda mais desequilibrado, partia
a loiça e deixava cair as coisas das mãos.
Depois de imensos exames médicos foi-lhe diagnosticada uma
atrofia cerebelar congénita. Que a doença não tinha cura e que seria
progressiva mas lenta. E foi. Porquê?
O congénito não é necessariamente hereditário, ninguém da
família padecia ou padeceu desse mal. Deixou de estudar e passou a ficar ao
cuidado da nossa mãe que acabou por ser demasiado protectora ao ponto de a
tornar um pouco egoísta e bastante agressiva na sua maneira de ser. Era uma
rapariga interessante sem ser uma beleza. Apenas ano e meio mais velha do que
eu, demasiado magra e alta não passava despercebida aos rapazes. Casou com um
oportunista convencido que o meu pai tinha dinheiro. Quando viu que dali nada
ganharia saiu de casa e desapareceu. Divorciou-se e, mais tarde, o tipo morreu.
Não tiveram filhos porque ela não os podia ter. Voltou para casa dos meus
pais. Consegui arranjar-lhe emprego como
dactilografa num dos serviços por que passei. Após alguns anos já não conseguia
escrever à máquina por errar muitas teclas. Continuou como telefonista e até
foi prestando um serviço razoável. Andar de comboio todos os dias para Lisboa
era um perigo, mas pior seria ficar em casa sem nada fazer. Deu imensas quedas
e partiu mais alguns ossos. Para cúmulo, outra doença apareceu, sem ter nada a
ver com a cerebelose. Esclerose do nervo óptico. Outra também incurável e
progressiva. A cegueira foi tomando conta dela. A minha mãe, até uma idade
muito avançada foi a sua guia. Após a morte de minha mãe ainda tentei que
ficasse em casa. Depois de demasiadas quedas e muitas idas para o hospital,
desisti internando-a. Durante alguns anos ia vê-la duas vezes por semana
levando-a a almoçar, muitas vezes acompanhado do meu filho, que também visitava
a tia nos meus impedimentos. Com o agravar da doença, cada vez era mais difícil
conduzi-la e ampará-la. A falta de vista nada ajudava. Deixámos de sair e as
visitas faziam-se apenas na instituição.
Agora piorara e ali estava, acamada, completamente cega,
drogada, com calmantes e ansiolíticos, sem nada dizer nem fazer. Porquê e para
quê?
A médica diz que já há demência senil. Com 78 anos? Por quê?
Será que tanto medicamento a tornou assim? Fará o cerebelo falta ao cérebro?
Não sei. Só sei que estou a perder a irmã.
Todas as semanas lá estou. Levo-lhe chocolate que continua a
comer mas sem o agrado de antigamente. Não reage quando lhe digo que tenho de
ir embora. Também não reage quando chego. Digo-lhe olá que ela repete sem
qualquer indicação de alteração do seu íntimo. Será que pensa? Julgo que o
cérebro humano, enquanto há vida, está sempre activo. Será? Não parece. Isto
que eu vejo e sinto não é vida, e pergunto mais uma vez; Para quê?
Claro que, como não crente, sei que não tem de haver uma
razão para a vida, somos animais e como animais, vivemos, adoecemos, morremos e
desaparecemos. Mas, como ser pensante, custa-me assistir a tanta degradação e
tanto tempo para chegar ao fim. Viver assim não interessa. Para quê? É minha
irmã e gosto muito dela, mas por isso é que gostaria que acabasse rápido e sem
sofrimento. Assim, para quê? Não é viver.
Sem delongas, porque pouca coragem me está sobrando, tendo em conta o que me está acontecendo, venho solidarizar-me e dizer-lhe, tão forte quanto posso, como bem o compreendo. Um grande abraço, meu amigo. Jaime Moura
ResponderEliminarObrigado amigo. É nossa a tristeza mas temos de continuar a viver. Estou consigo também. Grande abraço
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