O meu tio faleceu. Vai fazer-me
falta. Mais novo onze anos que o meu pai e mais velho que eu apenas dezassete.
Lembro-me dele desde sempre. Cursou a escola náutica e saiu radio-telegrafista
da mercante. Recordo, eu muito pequeno, de o ver pela casa da minha avó, de
telégrafo a pilhas na mão, infernizar-nos o juízo com os ti-ti-ti constantes
dos pontos-traços que treinava constantemente. Especializou-se em radares e,
mais tarde, ingressou nos quadros da SOPONATA chegando a 1º Telegrafista dos
superpetroleiros que o levaram a todas as partes do mundo. Cedo começou a
namorar uma rapariga linda e com ela casou. Era a minha tia mais bonita e
muitas vezes a levei ao cinema fazendo um vistaço entre os meus amigos. Quando
o meu tio andava no mar não tinha com quem sair e o sobrinho fazia-lhe
companhia porque as filhas andavam a estudar. Nos meus tempos de Escola do
Exército, hoje Academia Militar, andava sempre “liso” pois a mesada do pai era
curta e acabava depressa. Lembro-me de alguns fins-de-semana, quando não ia a
casa, não ter dinheiro para o almoço e telefonar à tia pendurando-me para o
dito: “ Só se depois levares a tia à matiné” dizia ela. Claro que nem hesitava.
Eram dois coelhos numa cajadada, almoço e cinema. Durante alguns anos não convivi
com eles porque o meu tio aceitou um lugar em Santa Maria nos Açores. Depois a
minha vida militar também me afastou mas, nos intervalos, nunca deixei de os
visitar. Inclusivamente foi da casa deles que saí para o meu casamento, por ser
em Lisboa e eu morar no Cacém.
Em julho passado o meu tio tinha
feito noventa e cinco anos. Já andava com alguma dificuldade, mas mantinha uma
lucidez invejável. O seu desgosto era já não ver o suficiente para continuar a
mexer no computador. Digo mexer porque era o que fazia. Sabia tudo sobre
sistemas operativos e tirava, punha, mudava, estragava, tornava a pôr, etc..
Enfim, baralhava e tornava a dar. O certo é que sabia muito e até me ensinou
alguns pequenos truques. Mexeu naquilo até aí aos noventa e três e, como já
esquecia muito, passávamos horas ao telefone para o fazer recordar das
operações necessárias. Muitas vezes lá fui a casa, onde vivia com a segunda
mulher pois divorciara-se da primeira que mais tarde faleceu, ajudá-lo a
refazer sistemas operativos dos seus três computadores, que entretanto
estragara por tanto meter e tirar. Neste último ano já vivia numa residencial
de apoio. As minhas primas, excelentes filhas, davam-lhe toda a assistência,
estando com ele todos os dias. Eu visitava-o também mas não com tanta
frequência como gostaria. Estive lá poucos dias antes e ainda me esteve a
demonstrar como operava a cadeira de rodas em que se deslocava para trajectos
mais longos pelos corredores da instituição. Era o elemento mais antigo da
família. Para mim era um segundo pai, ou irmão mais velho que não tive. A minha
irmã, dezanove meses mais velha do que eu, está incapacitada e acamada. O
decano da família faleceu e deixou-me a substituí-lo. Vamos ver se consigo
seguir-lhe as pisadas. Os dois netos, grandes adeptos do “Surf”, vão espalhar
as cinzas do avô pelo mar. É uma boa solução para um velho marinheiro. As ondas
não o vão afastar da minha memória.
Uma perda de um parente é sempre uma baixa na família, mas há parentes que são mais do que isso. São memórias nossas porque se misturaram nas nossas vidas de tal maneira, com tanta intensidade e presença que adquiriram um estatuto de primeiro grau, mesmo quando não o são na linha genealógica. Este, ainda por cima, era um tio quase irmão, como tu dizes...
ResponderEliminarQue repouse em paz no pó das cinzas e nas ondas do mar que abraçou...
Obrigado por este lindo comentário. Como sabes sou ateu e não acredito em vida para além da morte. Os nossos mortos revivem na nossa memória. Este é um deles.
EliminarComo habitual, lio com a atenção que merece e o respeito que me inspira; Não me guio por conselhos piegas, baratos como qualquer telefonema limpa consciência, nem pretendo ser apaziguador duma alma que sofre! O que posso eu, bem conhecedor de mágoas que são feridas incuráveis, para além dum abraço de compreensão e solidariedade que a vida me vai ensinando a cultivar!
ResponderEliminarLamento o erro "gralha", lamentável, em "li-o", como deveria, e queria, ter escrito. J.M.
ResponderEliminarMuitas vezes a velocidade adquirida faz-nos cometer gralhas dessas. Acontece a todos. Penso que dá para editar, emendar e voltar a inserir.
EliminarAbraço Amigo com votos de Boas Festas do solstício, que hoje se inicia.