domingo, 14 de dezembro de 2014

O Meu Tio



O meu tio faleceu. Vai fazer-me falta. Mais novo onze anos que o meu pai e mais velho que eu apenas dezassete. Lembro-me dele desde sempre. Cursou a escola náutica e saiu radio-telegrafista da mercante. Recordo, eu muito pequeno, de o ver pela casa da minha avó, de telégrafo a pilhas na mão, infernizar-nos o juízo com os ti-ti-ti constantes dos pontos-traços que treinava constantemente. Especializou-se em radares e, mais tarde, ingressou nos quadros da SOPONATA chegando a 1º Telegrafista dos superpetroleiros que o levaram a todas as partes do mundo. Cedo começou a namorar uma rapariga linda e com ela casou. Era a minha tia mais bonita e muitas vezes a levei ao cinema fazendo um vistaço entre os meus amigos. Quando o meu tio andava no mar não tinha com quem sair e o sobrinho fazia-lhe companhia porque as filhas andavam a estudar. Nos meus tempos de Escola do Exército, hoje Academia Militar, andava sempre “liso” pois a mesada do pai era curta e acabava depressa. Lembro-me de alguns fins-de-semana, quando não ia a casa, não ter dinheiro para o almoço e telefonar à tia pendurando-me para o dito: “ Só se depois levares a tia à matiné” dizia ela. Claro que nem hesitava. Eram dois coelhos numa cajadada, almoço e cinema. Durante alguns anos não convivi com eles porque o meu tio aceitou um lugar em Santa Maria nos Açores. Depois a minha vida militar também me afastou mas, nos intervalos, nunca deixei de os visitar. Inclusivamente foi da casa deles que saí para o meu casamento, por ser em Lisboa e eu morar no Cacém.

Em julho passado o meu tio tinha feito noventa e cinco anos. Já andava com alguma dificuldade, mas mantinha uma lucidez invejável. O seu desgosto era já não ver o suficiente para continuar a mexer no computador. Digo mexer porque era o que fazia. Sabia tudo sobre sistemas operativos e tirava, punha, mudava, estragava, tornava a pôr, etc.. Enfim, baralhava e tornava a dar. O certo é que sabia muito e até me ensinou alguns pequenos truques. Mexeu naquilo até aí aos noventa e três e, como já esquecia muito, passávamos horas ao telefone para o fazer recordar das operações necessárias. Muitas vezes lá fui a casa, onde vivia com a segunda mulher pois divorciara-se da primeira que mais tarde faleceu, ajudá-lo a refazer sistemas operativos dos seus três computadores, que entretanto estragara por tanto meter e tirar. Neste último ano já vivia numa residencial de apoio. As minhas primas, excelentes filhas, davam-lhe toda a assistência, estando com ele todos os dias. Eu visitava-o também mas não com tanta frequência como gostaria. Estive lá poucos dias antes e ainda me esteve a demonstrar como operava a cadeira de rodas em que se deslocava para trajectos mais longos pelos corredores da instituição. Era o elemento mais antigo da família. Para mim era um segundo pai, ou irmão mais velho que não tive. A minha irmã, dezanove meses mais velha do que eu, está incapacitada e acamada. O decano da família faleceu e deixou-me a substituí-lo. Vamos ver se consigo seguir-lhe as pisadas. Os dois netos, grandes adeptos do “Surf”, vão espalhar as cinzas do avô pelo mar. É uma boa solução para um velho marinheiro. As ondas não o vão afastar da minha memória.

5 comentários:

  1. Uma perda de um parente é sempre uma baixa na família, mas há parentes que são mais do que isso. São memórias nossas porque se misturaram nas nossas vidas de tal maneira, com tanta intensidade e presença que adquiriram um estatuto de primeiro grau, mesmo quando não o são na linha genealógica. Este, ainda por cima, era um tio quase irmão, como tu dizes...
    Que repouse em paz no pó das cinzas e nas ondas do mar que abraçou...

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    1. Obrigado por este lindo comentário. Como sabes sou ateu e não acredito em vida para além da morte. Os nossos mortos revivem na nossa memória. Este é um deles.

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  2. Como habitual, lio com a atenção que merece e o respeito que me inspira; Não me guio por conselhos piegas, baratos como qualquer telefonema limpa consciência, nem pretendo ser apaziguador duma alma que sofre! O que posso eu, bem conhecedor de mágoas que são feridas incuráveis, para além dum abraço de compreensão e solidariedade que a vida me vai ensinando a cultivar!

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  3. Lamento o erro "gralha", lamentável, em "li-o", como deveria, e queria, ter escrito. J.M.

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    1. Muitas vezes a velocidade adquirida faz-nos cometer gralhas dessas. Acontece a todos. Penso que dá para editar, emendar e voltar a inserir.
      Abraço Amigo com votos de Boas Festas do solstício, que hoje se inicia.

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