domingo, 15 de novembro de 2020

A quinta do meu padrinho

 


Quando nascemos temos de ser registados. Nesse registo eram necessárias duas testemunhas. Não sei de onde veio o conhecimento, mas um dos meus padrinhos foi Joaquim Ribeiro de Carvalho https://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_Ribeiro_de_Carvalho. Na quinta da Bela Vista passei muitos dias de brincadeira e assisti à feitura de vinho, matança de porco, etc. Lembro-me que não gostei nada da primeira matança a que assisti. O pobre bicho fez tal berraria quem me impressionou imenso. O meu padrinho morreu em 1942. Eu tinha ido para o Cacém em 1941 com apenas 4 anos. Conheci-o, portanto apenas um ano, mas tenho na memória a sua figura. Era um homem imponente, alto, já um pouco gordo. Usava óculos e andava sempre pela quinta dando ordens e verificando os afazeres dos empregados. Usava botins de cano, de atanado, com solas cardadas. Gostava de o ver, mas infundia, na minha mentalidade de criança, um misto de respeito e receio. Um dia, o seu motorista, com um carro enorme, americano, tipo Dodge ou coisa parecida, fez um curto recuo para arrumar o carro, não reparando que o meu padrinho estava atrás e tocou-lhe nas pernas desequilibrando-o. Homem pesado como era, caiu desamparado e bateu com a cabeça na estrutura do carro, naquele tempo em chapa muito forte. Chamaram-se os bombeiros pois a ferida na cabeça era um pouco grande e sangrava imenso. Foi operado no Hospital de São José a um traumatismo craniano com fractura. Veio para casa em recobro.  Lembro-me de estar ao pé dele, sentado na varanda ao sol, onde passava os dias lendo. Passados uns tempos, sentindo-se mal, voltou ao hospital tendo sido operado de novo. Nessa operação extraíram-lhe uma lasca óssea que tinha passado despercebida na primeira intervenção. Já não regressou e morreu pouco tempo depois. No Cacém houve grande consternação pela sua morte.

Continuei a visitar a quinta mas, já não com assiduidade. A quinta era grande e havia zonas da mesma que nós, os rapazes da zona, frequentávamos saltando os muros e fazendo as nossas explorações. Foi num desses “assaltos” que descobri uma enorme gruta onde se encontrava uma cama já meio desfeita, uma mesa e alguns utensílios de cozinha. Viam-se também alguns livros meio desfeitos e manchados pela humidade. Mais tarde vim a saber que era um refúgio onde o meu padrinho se escondia da polícia política, a famigerada PIDE. Como podem ver no artigo da Wikipédia, Ribeiro de Carvalho foi um defensor da 1ª República e obviamente um elemento contra ao Estado Novo. O jornal República foi muitas vezes censurado e o meu padrinho procurado pela PIDE. Os seus companheiros de luta contra Salazar, Araújo e Sá e o Dr. Ramon de La Feria, passaram alguns anos na prisão, mas Ribeiro de Carvalho nunca era encontrado por se esconder na tal gruta que não era fácil de descobrir. Nunca soube se o meu Pai foi ou não incomodado por essa amizade. No Cacém, a quinta da Bela Vista, foi sempre apelidada por Quinta Ribeiro De Carvalho e a minha rua também tinha o seu nome. O seu filho, Rui Ribeiro de Carvalho, não residindo lá, manteve a quinta durante muitos anos. Foi nessa quinta que comecei a treinar os meus tiros às rolas, pois ali era um ponto de passagem. O filho mais velho do motorista, cuja família continuou a morar numa das residências, era um grande caçador e deu-me algumas lições de como atirar. Dei cabo de muitos cartuchos ao meu Pai. Desde que a minha mãe e irmã morreram, que deixei de ir ao Cacém, mas quando por lá passava, junto aos muros de bonitos azulejos portugueses, lembrava sempre a figura de Ribeiro de Carvalho, na sua imponência, com as calças metidas para dentro dos botins, a comandar as operações. Os seus amigos diziam que o homem tinha sido assassinado por propositadamente lhe terem lá deixado a esquírola óssea. Claro que não acredito que médicos tivessem entrado nessa. Ribeiro de Carvalho foi uma figura que me marcou, mais pelo que vim a saber do que pelo pouco que conheci dado a idade que tinha. Hoje, ao fazer umas pesquisas na NET reencontrei-o.

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