Julgo que ainda não tinha contado esta. Moçambique, principalmente no Norte, tem das águas mais límpidas e peixes mais variados e bonitos que já conheci. Era major, vice-chefe e inspector do Serviço de Intendência em Nampula. Em muitos Domingos, utilizando os VW, íamos até às praias, principalmente Nacala, Ilha de Moçambique e Chocas. Eu e dois capitães da minha chefia, um do quadro e outro miliciano, aproveitávamos para fazermos um pouco de caça submarina apesar de sabermos que havia por ali uns tubarões. Passei a vida a ler livros do australiano Hans Hass, mergulhador e biólogo especialista em mergulhar junto desses esqualos de má fama. Segundo ele os simpáticos bichinhos tinham mais medo de nós que nós deles e apenas o célebre e tenebroso tubarão branco era perigoso. Pelo sim pelo não o melhor era estarmos preparados para que se tivéssemos algum mau encontro. Por sorte nenhum apareceu durante as nossas divagações aquáticas.
Num Domingo, acompanhados das
mulheres e filhos lá fomos até às chocas, com os respectivos farnéis para um
pic-nic na praia. Chegámos com a maré vazia. As marés no Norte de Moçambique
são particularmente compridas e, para termos água suficiente para nadarmos
fartámo-nos de andar praia fora. Já na água ainda andámos mais um bom bocado
até colocarmos máscaras e barbatanas. Íamos os três armados com espingardas de
elásticos de dois punhos e compridíssimas. Mergulhámos então e sempre perto uns
dos outros de modo a não nos perdermos de vista lá fomos capturando uns peixes
papagaio e algumas garoupas que pendurávamos numa argola de arame presa com uma
rede a uma bola que por sua vez estava agarrada a uma corada comprida atada à
cintura de um dos meus companheiros. Era um truque para que os tubarões atraídos
pelo sangue dos peixes, mordessem apenas nestes e não nas nossas pernas.
Encantados com a beleza dos corais e a cor dos diferentes peixinhos lá fomos
andando e nadando. Apareceram duas tartarugas grandes e foi grande a
brincadeira pois pedimos-lhes boleia e navegámos por ali atrás delas agarrados
ás pontas das carapaças. Às vezes, já cansados, sentávamo-nos nos grandes
cogumelos de coral que pareciam mesas plantadas ali pelo meio do mar e
ficávamos com a cabeça fora de água. Entretanto arpoámos uma enorme moreia que
nos deu água pela barba. Disse arpoámos porque tivemos que ir os três lá abaixo
com os três arpões para a conseguirmos dominar. Mesmo assim revolveu o coral de
tal modo que parecia ter havido um maremoto. Depois de umas facadas na cabeça
lá serenou. Não demos pelo tempo passar até que metendo a cabeça de fora notei
que estava bastante vento que já provocava uma mareta forte e, muito espantado
fiquei, quando olhei para terra e vi as árvores demasiado pequenas. Estávamos muito
longe. Fiz sinal à minha malta e chamei-lhes a atenção de que era tarde e que
tínhamos de regressar, pois as nossas companheiras já deviam estar preocupadas.
Começou então a nossa odisseia. O vento virou de frente e tornou-se mais forte.
Em fila indiana lá fomos nadando sem poder parar pois se o fizéssemos andávamos
para trás pela força do vento. Com as cabeças mergulhadas e apenas o tubo de
fora lá avançávamos nadando com as pernas e só um braço porque o outro levava a
espingarda. Ainda por cima transportava a moreia que acabei por abandonar
porque ou era ela ou eu. Lá ia vendo a cabeça do companheiro da frente e deixei
de ver o outro, o que me preocupou. Passámos por uns pescadores de uns naturais
que estavam piores do que nós pois um dos botes tinha-se virado com a força do
vento e uma má manobra. Não nos puderam ser úteis. Comecei a ficar muito
cansado, já tinha 36 anos e os companheiros eram mais novos. Pensei que era o
meu fim. Estive quase para abandonar a espingarda, mas ainda bem que o não fiz
pois mais tarde foi-me muito útil. Ainda pensei deixar-me ir na corrente, mas
tirei o azimute e vi que iria passar muito ao largo da ilha de Goa e ali,
certamente devido à profundidade, os tubarões iriam chamar-me um figo. Foi
então que o instinto de sobrevivência se apoderou de mim e fui buscar forças
não sei onde para continuar. Quando vi o fundo de areia espetei a espingarda a
fazer de âncora e deixei-me ficar a recuperar. Foi então que vi o meu filho
que, a pedido da mãe, mas um pouco imprudentemente, nadava à nossa procura.
Ganhei alento e passei por ele. Cheguei à praia e a minha preocupação foi
perguntar ao parceiro, que já lá tinha chegado, pelo outro que deixara de ver.
Ele apontou e eu vi-o a pé pela praia na nossa direcção transportando o arame
com os peixes. Foi mais esperto do que nós pois viu uma rocha que entrava pelo
mar dentro, deixou-se ir na corrente e veio a pé. Fiquei um bom quarto de hora
estendido na areia a recuperar e a ouvir a minha mulher que zangadíssima me
invectivava. Ela, como mais velha, lá foi acalmando as outras, mas por dentro…
Tínhamos entrado na água pelas 9 da manhã e já passava da uma da tarde. Comemos
qualquer coisa e pusemo-nos de volta. Para cúmulo enterrámos os carros umas 3
ou 4 vezes na areia e fartámo-nos de empurrar com as mulheres ao volante. Se
não morri aí nunca mais me deixo morrer numa situação idêntica. O instinto de
sobrevivência é muito forte.
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