Personagens
(Por ordem de aparecimento):
Alberto Moura - Eng.º
Informático (O sem abrigo)
Maria Clara - Mulher
de Alberto
Manuela - Amiga
de Maria Clara
Sara - Companheira
de rua de Alberto
Anselmo Fernandes - Inspector da PJ.
Isabel - Telefonista
da Theodorus, SA
Ana - Mulher
de Anselmo
Tobias - Agente
ajudante de Anselmo
Victor Antunes - Inspector
da Judiciária amigo de Anselmo.
Fernando Fonseca - Amigo
de Anselmo, Engº e professor. Escritor nas horas vagas.
Mariana - Mulher
de Fernando
Carlos Vidal - Director Bancário
Monteiro Castro - Banqueiro
Abelardo - Amigo
e braço direito de Carlos Vidal.
Razvan - Romeno
(Fora da lei)
Hércules - Cúmplice
de Razvan
Toino, e Franzino - Companheiros de Razvan e Hércules, cúmplices, operacionais nos
roubos e assaltos.
Laura - Mulher
de Carlos Vidal
I
Resolveu mudar de local onde dormia. Tentaria encontrar um
sítio abrigado onde estivesse só. Tinha permanecido três semanas no mesmo lugar,
mas as companhias não lhe agradaram. Na rua encontra-se de tudo, desde tipos
com problemas psíquicos a calaceiros e bandidos de toda a espécie. Ele só
queria estar sossegado consigo próprio. Encontrou um viaduto com uns pilares em
ângulo que permitiam um bom abrigo. Junto a uns caixotes do lixo escolheu alguns
cartões limpos e secos e colocou-os no chão pondo-lhes por cima uma manta que
tirou do saco de lona. Ainda bem que, em tempos, comprara aquele saco na feira
da ladra. Era um saco militar que levava montes de coisas. Trouxera de casa o
essencial para poder viver na rua. Duas mudas de roupa davam-lhe para usar e
lavar. Tomava banho nos balneários públicos o que permitia não ter muito mau
aspecto. O pior era a barba e o cabelo, estavam a crescer e, os aparanços que
fazia apenas com uma tesoura, não lhe davam lá grande aparência. Mas também que
lhe importava isso, tinha decidido sair de casa e viver na rua era a solução.
Trouxera alguns livros que ia lendo enquanto tinha luz. Ler é uma forma de nos
abstrairmos da nossa vida e vivermos a das personagens e autores. Nos
intervalos cogitava no que tinha sido a sua existência. A vontade de ganhar
dinheiro sem ter que aturar patrões ou chefes levara-o a deixar a função
pública e tentar a sorte estabelecendo uma firma de informática. As coisas
começaram a correr bem e rapidamente teve de contratar pessoal e aumentar o
espaço. Alugou um escritório numa garagem adaptada para o efeito e, felizmente,
bem perto de casa. Os clientes foram aparecendo e os proveitos aumentando. A
melhoria de vida foi notória. A mulher e os filhos exultaram por poderem ter o
que até ali lhes tinha sido proibido. Foram anos felizes aqueles, só que não
conseguira amealhar o suficiente e a crise apareceu. A concorrência das grandes
firmas obrigara-o a baixar preços e a ter que dispensar pessoal. Trabalhou que
nem um cão elaborando sozinho programação e “sites”. O material estava a degradar-se e desactualizar-se. Foi
preciso utilizar as reservas e constituir dívidas para a renovação. Os clientes
começaram a diminuir, uns por falência, outros por não poderem pagar e outros
ainda por terem encontrado mais barato. Daí à falência foi um passo. A vida em
casa degradou-se. A mulher, que ele adorava, acusou-o de mau gestor e de
demasiada ousadia em ter deixado um emprego de estado para se aventurar na constituição
da firma. Os filhos nada diziam e sofriam com as constantes discussões entre os
pais. Começaram os constrangimentos devido às zangas constantes. Esqueceram-se
todos da felicidade conseguida quando a firma lhes dava o que nunca tinham
tido. Agora a culpa era dele. A sua mulher conseguiu um emprego numa loja de um
centro comercial que pertencia a uma amiga. A reforma que tinha do estado,
muito prejudicada pela antecipação, não chegava para as despesas da casa. Não aguentou
a pressão nem a falta de compreensão da sua companheira. Resolveu deixar a
casa. Sem ele talvez o dinheiro chegasse. A sua pensão cairia todos os meses na
conta comum e podia ser utilizada. Se as coisas não mudassem, viveria só, até
encontrar coragem para se passar. Só que, se morresse, os seus ainda ficariam
com menos. Com o cabelo comprido e de barba grande, ninguém o reconheceria e
também não o dariam como morto, pois tinha tido o cuidado de deixar escrito em
casa que não o procurassem, iria deixar o país em busca de melhor solução. Assim
evitaria idas à polícia para participarem o desaparecimento.
Começava a habituar-se ao frio. As camisolas de lã que
trouxera, as luvas e as mantas eram suficientes. A luz do candeeiro da frente
dava-lhe para poder ler até tarde e, para dormir tapava a cabeça com a manta. Uma
refeição por dia, nos refeitórios públicos e uma bucha à noite, supria as suas
necessidades básicas e, não fora a saudade da mulher e filhos, começava a
pensar que afinal a vida de vagabundo não era assim tão má.
A noite lisboeta estava calma. Ouvia-se um leve restolhar das
folhas das árvores que uma airosa brisa nocturna movia num vai e vem
cadenciado. O barulho dos carros não era suficiente para o desinteressar da
leitura que o absorvia totalmente.
Durante o dia, os passantes olhavam curiosos aquele sem
abrigo que passava a vida a ler. Alguns até se aproximavam para lerem os
títulos. Um ou outro chegava mesmo à fala com ele tentando saber quem era e
porque optara por aquela vida. A todos respondia educadamente dizendo que fora
uma opção por motivos demasiado profundos para serem discutidos com estranhos.
Mas se alguns eram movidos apenas pela curiosidade, outros entravam em
discussão dos temas literários. Aí ele pegava na conversa e prolongava as
discussões. Assim o tempo passava sem que entrasse em depressão nem em
conjecturas negativas. Começou a ser conhecido pelo sem-abrigo intelectual e alguns
dos passantes começaram a trazer-lhe livros. Qualquer dia tinha de
distribuí-los, já não tinha espaço para mais. Quando o tempo estava bom,
deixava o seu canto e dava alguns passeios principalmente pelos jardins da
cidade. Muitas vezes deu com ele a caminhar até à escola dos filhos e a deixar-se
estar, meio escondido, até os ver chegar. Já tinham idade suficiente para se
deslocarem nos transportes públicos e viajavam sempre os dois. O rapaz, como
mais velho, acompanhava a irmã preservando-a de todos os problemas que hoje se
apresentam a uma rapariga só. Depois de entrarem para as aulas, pedia ao
segurança para dar uma vista de olhos às pautas. Felizmente os seus rebentos
iam bem e tinham notas muito razoáveis. Um dia à tarde, viu a sua mulher que
fora buscar os filhos. Continuava linda e elegante. Não conseguiu prender uma
lágrima teimosa e afastou-se rapidamente.
II
Maria Clara deixou o autocarro e dirigiu-se ao Centro
Comercial. Ainda bem que a sua amiga Manuela lhe arranjara aquele emprego. Não
ganhava muito, mas sempre era alguma coisa que, em conjunto com a pensão do
marido, dava para viverem os três com os mínimos aceitáveis. Onde estaria o
Alberto? Desde que encontrara o bilhete na mesa-de-cabeceira, nada mais soube
dele. Sentia-se mal por ter contribuído para a sua fuga. De que viveria? Teria
arranjado alguém? Os filhos sentiam saudades e ela dava-lhes esperanças de que
o pai voltaria.
– Vão ver que qualquer
dia aparece por aí. O vosso pai é empreendedor e de certeza vai conseguir obter
aquilo que pretende para poder voltar.
O que dizia saía da boca para fora, mas sem grande convicção.
Sabia que a vergonha de não ser capaz de prover às necessidades da família
tinha sido a causa do seu afastamento. Sentia saudades do seu homem, mas os
tempos estavam maus e não iria ser fácil para ele encontrar soluções. Se não
conseguisse nunca mais voltaria. Sabia como ele era capaz dos maiores sacrifícios
para manter as suas decisões. De qualquer modo esperaria. Era o seu homem. O
facto de se ter ausentado sem carteira nem documentos preocupava-a. De certeza
tinha mudado de identidade para não ser encontrado. Sobre as suas dúvidas não
falou com os filhos.
Chegou à loja antes da hora. Desligou o alarme e abriu a
porta. Começou a preparar tudo para a abertura. No meio da manhã a sua amiga
apareceu;
– Então Maria Clara,
como vai o negócio?
– Olha, amiga, para os tempos que correm isto até não está
mal. Vendi dois conjuntos de saia e blusa, duas malas e um lenço de pescoço. Se
continuar assim enriqueces num instante e vais passar férias para as Caraíbas.
– Pois. Faço isso quando arranjar um homem que mereça a minha
companhia. Pelo que sei deles, amanhã não será a véspera desse dia.
Maria Clara tinha pela amiga grande consideração. Divorciada,
conseguira com os parcos recursos que amealhara e alguma ajuda da mãe, arrendar
aquela loja. Assim que se livrou do marido, que era um grande calão e pensara
viver à custa dela, deu a volta por cima e emancipou-se totalmente. Desinibida,
bonita, elegante e culta, era requestada por imensos homens, mas Manuela não se
deslumbrava. Saía de vez em quando com algum que lhe agradava, mantinha um
romance durante uns tempos e largava-os quando as coisas começavam a entrar na
rotina. Era a forma, dizia ela, de ter homem sem compromissos. Maria Clara
gostaria de ter feitio para isso, mas os filhos e a esperança de que o seu
marido voltasse inibiam-na. Mais de uma vez esteve para aceitar o convite da
amiga para saírem juntas e irem beber um copo a um bar, mas não era capaz.
Limitava-se a ir com ela até um cinema e sempre às matinés. Depois a amiga
levava-a a casa no carro para junto dos filhos.
– Assim – dizia-lhe Manuela, – ainda vais para freira ou
envelheces em menos de um fósforo e, quando deres por ti, estás velha e
perdeste a tua vida à espera de um homem que fugiu das suas obrigações.
– Não digas isso, a grande culpa foi minha pois não o apoiei
o suficiente e ainda por cima só lhe dei cabo da cabeça acusando-o de não ter
sabido cuidar dos negócios. Ele não teve qualquer culpa. O mercado absorveu-o e
liquidou-o. Sinto-me imensamente mal por não o ter apoiado mais e não lhe ter
dado incentivos para aguentar. Agora não sei nada dele, se é vivo ou morto,
onde está ou, estando vivo, se está bem ou mal.
− O Alberto, pelo que sei dele, é um tipo esperto, honesto e
cumpridor. Foi-se embora para não vos sujeitar ao seu fracasso, mas tudo muda e
nesta vida nada é definitivo, se surgir uma oportunidade ele agarrá-la-á e
volta para vocês. Tem paciência. E, como parece que gostas muito dele, uma vez
que lhe continuas fiel, espera e serás recompensada.
Manuela foi-se embora quase ao fechar da loja. Maria Clara
preparou tudo para o dia seguinte. Fez as contas, meteu o dinheiro num envelope
dentro da mala e saiu. Ainda no Centro depositou o dinheiro no cofre nocturno
de uma das dependências bancárias. Em casa, os filhos já tinham preparado parte
do jantar e estudavam nos seus quartos. Preparou o resto da refeição e chamou
os filhos para a mesa. Viram televisão até às dez e mandou os pequenos para a
cama. Maria Clara ficou um pouco mais, mas deitou-se antes das onze. Já na cama
pensava como seria bom ter o marido a seu lado.
Recordava como ele era terno e amoroso para com ela, como
faziam amor sem tabus ou quaisquer complexos. Um frémito percorreu-lhe o corpo
e pegou num livro para tentar apagar as visões. Pouco depois adormecia com a
luz acesa deixando cair o livro.
III
Alberto meteu todos os seus haveres no saco de lona e
colocou-o às costas. Dirigiu-se ao refeitório municipal e entrou para o almoço.
Sem este apoio, a maioria dos sem-abrigo de Lisboa não conseguiria sobreviver.
O funcionário que controlava as entradas já o conhecia e ao vê-lo entrar com um
livro na mão perguntou-lhe o que lia ele agora. Alberto virou a capa e
mostrou-lhe o título “A Fórmula de Deus”. Tinha na contracapa a foto daquele
jornalista da TV. Para o funcionário aquilo era chinês. Com um gesto
indicou-lhe uma mesa. Alberto pegou no prato de alumínio e dirigiu-se ao “self-service”.
A jardineira tinha bom aspecto e cheirava bem. Ali ninguém era esquisito e tudo
o que vinha à rede servia. Depois de comer, Alberto ficou sentado durante um
bom bocado observando os comensais. Havia de tudo, homens e mulheres, quase
todos velhos, mas alguns com menos idade da que aparentavam. Que tragédias
estariam por detrás daquelas pessoas? Por que amarguras terão passado para
tomarem a opção de viverem na rua longe de tudo e de todos? Havia todos os
tipos. Uns sujos e desleixados, de barbas hirsutas, dentes podres ou amarelos
do tabaco, fatos rotos, sapatos abertos e desfeitos, malcheirosos e piolhosos,
outros um pouco mais cuidados, limpos de roupas e corpo, com fatos velhos e a
degradarem-se, mas ainda apresentáveis. Algumas mulheres tentavam ainda parecer
bem, alindando-se um pouco como se a sua vida não tivesse dado uma volta de 180
graus alguma coisa da anterior tivesse ficado. Tentavam ainda ser um pouco
coquetes e chegavam-se mais para aqueles que ainda tinham algum cuidado com a
apresentação. Havia uma, com alguns sinais de uma beleza que se ia perdendo,
que tentava sempre comer ao lado de Alberto. Chamava-se Sara e vivia num prédio
abandonado juntamente com mais duas mulheres e apenas um homem. Eram muito
selectivas nas companhias pois já várias vezes tinham sido molestadas por
tentativas de violação, a que, felizmente tinham conseguido fugir.
Alberto e Sara falavam de tudo menos das suas vidas
anteriores. Naquele meio respeitava-se muito a privacidade de cada um e ninguém
queria saber quem era quem. Os motivos que os levaram àquela situação eram do
foro privado e ninguém tentava penetrar nos segredos dos outros. Depois do
almoço, distribuíram a cada comensal um bocado de sabão exortando-os a tomarem
banho e alertando-os para o perigo de não o fazerem. Todos diziam que sim, mas
a maioria não o fazia. Para muitos a degradação era total e estavam-se
borrifando para as consequências. Os funcionários do refeitório bem lhes diziam
que se não se lavassem, da próxima vez não os deixariam entrar, mas mesmo assim
nada conseguiam.
Alberto e Sara saíram juntos e foram até um jardim onde se
sentaram conversando. Sara falava bem e via-se que era letrada, lendo os livros
que Alberto lhe emprestava e que ela devolvia após a leitura. Trocavam depois
impressões sobre os conteúdos. Estiveram umas duas horas em franca cavaqueira
combinando encontrarem-se de novo no dia seguinte de tarde junto do balneário
público.
Já no seu local de descanso, Alberto dedicou-se às suas
leituras. Não deu pelo tempo passar. Quando fechou o livro o candeeiro já se
encontrava aceso. Resolveu dormir aconchegando a manta ao corpo e tapando a
cabeça.
Numa semi-inconsciência, ouviu uma sirene de polícia ao
longe. Um ranger de rodas bem perto fê-lo erguer-se. Um carro em alta
velocidade veio bater no passeio bem perto dele e de uma das janelas do
automóvel voou um enorme objecto que passou por cima da carrinha ali
estacionada indo embater no pilar do viaduto e lhe caiu em cima. O carro
continuou em correria desenfreada seguido pelo veículo da polícia. As sirenes
foram esmorecendo o seu silvo até deixarem de se ouvir. Só então Alberto pegou
no volume que quase lhe tinha partido o pescoço. Era um saco tipo desportivo,
em “nylon”. O sem-abrigo abriu-o a
medo e ficou estarrecido ao olhar o conteúdo. Em notas de 500 e 100 euros
deviam estar ali uns três milhões.
Durante algum tempo a estupefacção não o deixou pensar, pouco
a pouco foi-se apercebendo do que se estava a passar. Ali podia estar o
suficiente para recomeçar a sua vida e poder voltar à companhia da sua querida
família. Alberto meteu rapidamente as suas coisas no saco. No ecoponto mais
próximo procurou um saco grande de plástico e meteu lá o dinheiro, dobrando o
saco de “nylon” meteu ambos no fundo
do seu.
Pegou nos cartões onde dormia e foi colocá-los no ecoponto
não sem antes verificar se tinha deixado algo no local que pudesse indicar que
ali tinha dormido alguém. Meteu o saco às costas e afastou-se rapidamente.
Andou grande parte da noite até parar num jardim no extremo
oposto da cidade. Sentado num banco, dava voltas à cabeça tentando encontrar
uma solução. Certamente teria havido um assalto a um banco. A polícia devia ter
chegado mesmo quando os assaltantes se tinham metido no carro. Teriam sido
agarrados? E se não foram? Voltariam à procura do saco e, se indagassem por
ali, todos aqueles que por ali costumavam comer nas carrinhas de venda de comes
e bebes, se indicassem o sítio exacto, facilmente lhes diriam que costumava
dormir ali o sem-abrigo intelectual. Vão acabar por o descobrir. O melhor é
mesmo desfazer-se da “massa” e fazer de conta que não estava lá e já tinha
mudado de lugar. Mas que fazer com o dinheiro? Levou parte da noite a lutar com
a sua consciência até ser vencido pelo sono deixando-se dormir no banco.
Acordou gélido porque até tinha tido medo de abrir o saco,
mas a noite é boa conselheira e tomou uma decisão.
IV
Anselmo Fernandes, sentado à secretária, ligou para as
Amoreiras onde sua mulher trabalhava. A telefonista da “Theodorus, SA” conheceu-lhe
a voz e cumprimentou-o;
– Bom dia senhor
Inspector, quer falar com a Dr.ª Ana?
– Olá Isabel há aí mais alguém com quem costume falar? Aí só
falo consigo e com ela. Um beijinho para si e passe à minha mulher se faz
favor.
Ana atendeu no seu gabinete. Tinha passado rapidamente de
secretária da administração a chefe da secção de planeamento da empresa. Licenciada
em gestão e extremamente eficiente impusera-se rapidamente pelo trabalho
realizado e soluções apresentadas. Ficara bem na vida após o recebimento da
herança que o falecido patrão lhe deixara e casara com Anselmo após quatro anos
de vivência em comum. Agora era uma peça chave da empresa e considerada por
todos, patrões e trabalhadores.
– Olá maridão, que mandas?
– Eu não mando nada. Quem manda és tu. Mandas em mim mais do
que devia permitir, mas não me importo, sujeito-me a uma mulher linda. Queres
ir ao cinema hoje? Podíamos depois ir beber uns copos e namorar um pouco. Que
achas?
– Não sei se deva. Vou decerto acabar seduzida.
– Tem sido normalmente o contrário. O seduzido sou sempre eu.
– Claro que quero. Logo pelas sete já estarei em casa.
Comemos qualquer coisa para não irmos de estômago vazio e depois no bar ceamos.
– Fica combinado. Por essa hora estarei em casa também. Até
logo. Um beijo.
– Outro para ti, meu policiazinho de meia-tigela. Até logo
também.
Anselmo desligou e preparava-se para se deitar à papelada
quando um agente bateu à porta entrando logo de seguida.
– Inspector está ali um tipo com aspecto de sem-abrigo, com
um saco na mão, que diz querer falar com um inspector. Não larga o saco nem por
nada, nem soltou mais uma palavra. Só quer falar a uma única pessoa, e como de
momento é o único inspector que cá está…
Anselmo saiu do gabinete e dirigiu-se ao átrio ficando a
observar quem queria falar com ele. Era um tipo de altura média, barba de
vários dias mal aparada, cabelo comprido, mas mais ou menos penteado. Vestia
uma camisola de lã por baixo de um sobretudo muito surrado e os sapatos não
viam graxa desde há muito. Aquele tipo andava nas ruas. Que quereria?
Normalmente tipos destes não se aproximam da polícia. Chegou-se um pouco mais ao
indivíduo e apresentou-se;
– Bom dia. Sou o Inspector Anselmo Fernandes. Pretende falar
comigo?
– Sim Sr. Inspector, mas terá de ser em particular se não se
importa?
O tipo falava bem e com uma voz normal. Via-se que era uma
pessoa que tivera princípios. Anselmo começou a ficar curioso.
– Vamos para o meu gabinete. Falaremos aí mais à vontade.
Deixou passar o homem e apontou-lhe o cadeirão em frente à
secretária. O homem sentou-se tendo o cuidado de colocar o saco entre as
pernas, mantendo a mão na pega.
– Então diga lá. Qual é o seu problema?
– Sr. Inspector, aquilo que pretendo relatar, só o farei se
me prometer que não me vão investigar a mim nem procurar a minha família.
Pretendo continuar como estou e não quero voltar para casa.
– Bem. O que me pede vai ser difícil de cumprir. Tenho de
saber quem você é. A identificação será sempre necessária, mas posso
prometer-lhe não divulgar.
Alberto pensava. Que fazer? Apetecia-lhe sair dali a correr e
voltar para junto dos seus com o dinheiro, mas agora seria perigoso, poderia
vir a colocá-los em perigo. Lutava com a sua consciência, mas algo lhe dizia
que o melhor caminho era contar tudo à polícia.
Anselmo notou o nervosismo do seu interlocutor. Sentia que o
homem lutava com algo e não sabia como proceder. Resolveu ajudar.
– Vejo que o Senhor enfrenta qualquer problema e está com
dúvidas. Não sei do que se trata, mas a minha experiência diz-me que é algo de
grave. Se o assunto lhe diz respeito e cometeu algum crime, ainda está a tempo
de se ir embora, mas desde já lhe digo que mais tarde ou mais cedo o assunto
vai chegar-nos às mãos e depois acabaremos por reencontrar-nos. Caso não tenha
cometido qualquer crime, mas quer denunciar algo que pesa na sua consciência,
então é melhor despejar o saco, ou melhor, os dois sacos, tanto o da sua
consciência como esse que aperta com tanto nervosismo.
Alberto resolveu falar;
– Vivo na rua. Tive problemas na vida e as coisas não
correram bem. Acho que os meus vivem melhor sem mim. Esta crise não me dá “chance” nenhuma e não vejo, por
enquanto, solução para os meus problemas. A noite passada, quando estava
deitado por baixo de um viaduto, junto a um dos pilares, um carro em grande
velocidade e perseguido pela polícia, quase se estampava por bater no passeio
junto a mim. Da janela atiraram este saco que me ia partindo a espinha. Está
aqui muito dinheiro. Não contei, limitei-me a colocá-lo num saco de plástico,
mas guardei o saco de “nylon” junto
dos meus pertences. Mudei de poiso e não deixei rasto, mas estou certo que os
bandidos vão dar comigo. Pelo meu hábito de ler, todos me conhecem como o
sem-abrigo intelectual. Os tipos vão descobrir que eu dormia ali e podem somar
dois e dois. Se me aparecerem, claro que vou dizer que não estou lá há dois
dias, mas os tipos podem não acreditar e tentarem obrigar-me a falar. Quero
saber como posso ser protegido.
Anselmo pensou uns segundos antes de responder.
– Tem consigo qualquer documento de identificação?
– Não. Deixei tudo em casa.
– Vai ter de me dizer quem é. Garanto-lhe que não entraremos
em contacto com a sua família. Aliás, até é bom que ninguém o referencie com
eles. A coisa poderá tornar-se perigosa. Houve um assalto a uma agência
bancária e até meteu tiros. Um segurança está no hospital felizmente sem risco
de vida. São quatro indivíduos e há suspeita de gangues de leste metidos nisso.
Esses tipos são perigosos. Vou ter que ficar com as suas impressões digitais e
o seu nome. Vamos colocar-lhe um localizador com um botão de alerta que será
metido no forro do seu casaco. Para accionar o alerta, basta apertar o
localizador contra o corpo. Os agentes que se vão encarregar disso estão
habituados e colocarão o pequeno aparelho em local muito difícil de ser detectado.
Vou ter de saber os locais onde pernoita, os locais habituais onde come e toma
banho. Sempre que mudar de hábitos avise-nos. Se for contactado pelos
assaltantes e, se não for sequestrado, contacte-nos. Se for sequestrado prima o
localizador. Estaremos ao pé de si em menos de um fósforo. Tem que parecer
surpreendido quando lhe perguntarem pelo dinheiro e seja peremptório quando
disser que não estava naquele viaduto. Tenha calma e tudo correrá bem. Agora
diga-me quem é.
– Chamo-me Alberto Moura e fui dono da firma de informática
“Moura – Programação e Sistemas, Ld.ª” que faliu. Sou licenciado em engenharia
informática. Trabalhei para o estado durante 15 anos e reformei-me por doença.
Aleguei problemas psíquicos.
– OK. Chega. A sua identidade não sairá daqui. Dê-me o seu
casaco. Vou chamar os técnicos que lhe vão montar o localizador e o informarão
como aquilo funciona. Vão também tirar-lhe as impressões digitais. Agora
passe-me esse saco.
Anselmo ligou o intercomunicador e chamou o agente da sua
brigada que o auxiliava.
– Tobias! Podes chegar aqui ao gabinete se fazes favor.
Quando o agente Tobias entrou, Anselmo entregou-lhe o saco e
incumbiu-o de levar o dinheiro á secção respectiva e que trouxesse o recibo
depois de assistir à contagem e ao encerramento no cofre. Pediu-lhe também que
chamasse a rapaziada da dactiloscopia para recolha de impressões. Deu-lhe o casaco
de Alberto para colocação do um aparelho de localização.
Ligou depois para o gabinete da brigada que estava encarregue
do assalto de ontem e pediu que o inspector encarregado do caso viesse falar
com ele logo que possível.
Meia hora depois Alberto saia com o localizador inserido na
ponta da gola do casaco e nada se notava. Para activar o alerta bastava
comprimi-lo com os dedos ou assentar-lhe a palma da mão.
Quando Anselmo saiu da Judiciária sabia tudo sobre Alberto;
quem era, onde morava, quem eram a mulher e os filhos e o que tinha feito na
vida.
Agora, iria para casa ter com a sua mulherzinha e
prepararem-se para sair.
V
Anselmo e Ana saíram do cinema e foram até a um bar beber um
copo e trincar qualquer coisa. Sentados a uma mesa de um canto, Anselmo tinha
uma vista geral sobre toda a sala. Era seu costume ficar sempre sentado de modo
a ter um amplo campo de visão podendo vislumbrar tudo o que se passava à sua
frente. Alguém que entrasse ou saísse, não escapava ao seu olhar.
– Hoje conheci um tipo estranho. Um sem-abrigo que deixou a
mulher e filhos e passou a viver na rua. Vê lá tu que o tipo tinha uma vida
boa, com uma firma de informática, ele é engenheiro informático, mas não se
aguentou no balanço e faliu.
Ana ouvia o seu marido com uma ruga na testa. Perguntou-lhe:
– E fugiu porquê? Não foi capaz de dar a volta por cima? Não
teve o apoio da família?
– Parece que a mulher o acusou de ser mau gestor, de não ter
previsto a crise, de não ter tomado medidas atempadas, etc… etc… sabes que
quando falta o pão, fala-se e perde-se a razão. As coisas endurecem e dizem-se
palavras a mais. O tipo não aguentou e deixou-os para não os sobrecarregar. Tem
uma reforma do estado e a mulher um trabalho numa loja de um centro comercial.
Dá para viverem. Sem grandes folestrias, mas dá. Agora foi apanhado numa
salsada das boas. Dormia quando lhe caiu um saco em cima com mais de três
milhões de euros. Uns assaltantes de um Banco atiraram-no de um carro durante a
fuga à polícia. Apareceu lá na Judiciária com o saco e com vontade de ajudar
desde que lhe prometesse que não o obrigaria a voltar para casa.
– Ainda há gente honesta. Referiu Ana. – Poderia muito bem
ter ficado com a “massa” e resolvido a situação dele.
– Pois. Só que não o fez e entregou-nos o dinheiro. Os
bandidos ainda andam a monte e vão procurar pela “bagalhoça”. Aliás, estou
convencido que já o fizeram. Vão interrogar toda a gente e vão ficar a saber
que naquele lugar dormia um sem-abrigo. Ainda por cima, o tipo era bastante
conhecido. Passava os dias a ler e todos lhe chamavam o sem-abrigo intelectual.
Vão correr Lisboa inteira até o caçarem e aí poderá correr perigo e os seus
também. Claro que já tomámos algumas providências, mas… as coisas podem correr
mal.
– Há forma de o ligarem à família? Perguntou Ana.
– Estes tipos são capazes de tudo, até de recorrerem à
tortura. Espero que o nosso homem faça uso do material que lhe escondemos na
roupa e active o localizador. O caso nem é meu, não havendo homicídios… já
sabes que não me entregam casos sem mortes, sou uma espécie de coveiro. Tenho
que resolver as coisas para que descansem em paz. Os mortos e os que cá ficam.
Mas estou preocupado. Simpatizei com o tipo. Pareceu-me um gajo porreirinho.
Deram o caso ao Antunes, o inspector encarregue da investigação do assalto. Vou
manter-me informado.
– Porque não pedes a esse Antunes que deixe o Fernando
acompanhar o caso. Já há uns tempos que ele anda longe de investigações, talvez
esteja interessado.
– Lembraste bem. O Antunes até conhece o Fernando e não se
deve importar. Amanhã falo com ele e depois com o Fernando. Pode ser que o
trabalho na universidade lhe permita um pouco de afastamento e lhe dê tempo
para um pouco de acção. O Fernando vai gostar. Desde o caso da tua ex-patroa, a
Gabriela, que o Fernando não mete o nariz numa investigaçãozita. Até pode ser
que arranje tema para mais um livro.
– A propósito, também tenho de falar à Mariana. Já algum
tempo que não estamos juntas e estou com saudades dela.
Bem, menina. Vamos para a caminha porque se faz tarde.
O inspector fez sinal ao encarregado que pressurosamente se
aproximou.
– Diga Inspector. Quer já a conta? Está a deitar-se cedo para
uma sexta-feira. Amanhã é sábado.
– Pois é. Mas infelizmente, os psicopatas deste país não se
coíbem de mandar seres humanos para o outro mundo mesmo ao fim-de-semana. E se
acontecer, lá vou eu. Era bom que os fazedores de cadáveres fizessem greve por
estes dois dias. Sempre descansava.
Anselmo pagou deixando uma boa gorjeta e pediu que lhe
trouxessem o carro. Arrancou depois de gratificar o arrumador e lhe apertar a
mão. Era cordial para todos e todos o apreciavam, o que era benéfico para a sua
profissão. Nutriam por ele grande apreço e sempre que podiam estavam dispostos
a auxiliá-lo prestando-lhe todas as informações que precisava nas suas
investigações.
No dia seguinte não houve crimes para descobrir e Anselmo
ficou na cama até mais tarde. Ana foi chamá-lo para o pequeno-almoço.
– Mandrião. Acorda! Não achas que são horas? Depois
habituas-te e durante a semana vai custar-te mais a acordar.
– Tu é que tiveste a culpa. Ontem já era tarde e devias
ter-me dado com os pés. Assim a brincadeira durou que tempos.
Ana atirou-lhe com uma almofada e logo a seguir atirou-se
para cima dele beijando-o.
– Foi uma noite louca. Penso que temos de começar a refrear
os nossos instintos. Qualquer dia estamos velhos-carquejas e vamos ter montes
de problemas de coluna por causa do nosso sexo desenfreado.
– Deixa. Anselmo olhou-a com ternura. – Mais vale morrermos
disso do que tornarmo-nos velhos caturrenhos e chatos. Agora vamos comer e
depois telefonamos à Mariana e ao Fernando. Está na altura de irmos jantar
juntos a qualquer lado e conversarmos um bocado.
VI
Alberto foi almoçar ao sítio do costume. Tinha de encontrar a
Sara e contar-lhe o que se passara. Iria mudar de poiso e ela teria de saber.
Quando chegou ao centro de apoio ainda havia poucos comensais. Colocou-se de
modo a não ser visto, mas a poder ver quem entrava. Quando Sara apareceu
puxou-a por uma manga e levou-a para o fundo da viela lateral. Contou-lhe tudo
o que se passara dizendo-lhe que ia mudar de local. Se ela quisesse fazer-lhe
companhia seria bem-vinda. Teriam de ir para um ponto da cidade bastante
afastado dali e ninguém poderia saber. Sara ficou preocupada, mas anuiu logo.
– Vou contigo. Não tenho aqui ninguém que me prenda.
Resolveram ir para o lado contrário da cidade. Escolheram uma
azinhaga sem saída. Era uma viela apenas com caixotes do lixo e janelas
pertencentes a armazéns. Limparam o melhor que puderam um local debaixo de umas
chapas de zinco e colocaram no chão vários cartões limpos. Conseguiram uma lata
velha suficientemente grande e fizeram fogo com umas madeiras de caixas de fruta
que por ali tinham sido deixadas. Taparam-se com as mantas e encostados à
parede e ampararam-se um no outro. Alberto sentiu falta de uma luz para poder
ler, mas por outro lado a escuridão protegia-os. Apenas o fogo os poderia
trair, mas sem ele não aguentariam a noite. Ficaram bastante tempo a conversar
até com lhes dar o sono. Alberto industriou Sara para que se pusesse a salvo
caso os meliantes aparecessem. Estariam apenas preocupados com ele e certamente
não a perseguiriam. Vencidos pelo sono, já noite alta, estenderam-se encostados
um ao outro. Alberto procurou a mão de Sara e segurou-a entre as suas.
Acordaram com o clarear do dia. Comeram os pães da refeição do dia anterior, já
um pouco ressequidos, meteram as coisas nos sacos e foram à procura de um
centro de apoio. O centro era longe, receberam-nos e serviram-lhes uma
refeição. O balneário público era praticamente junto. Lavaram-se e vestiram-se
com roupa previamente lavada num chafariz público. Alberto conseguira uns
bocados de sabão azul e branco para lavarem as roupas e assim andavam mais ou
menos limpos sem cheiros incomodativos. Foram procurar poiso mais perto daquele
centro. A viela da noite anterior ficava longe e era má para poderem fugir se
fossem descobertos. Tinham que ter terreno de fuga caso as coisas corressem
mal. Numa rua perto, bastante sossegada e sem movimento de carros, encontraram
um prédio abandonado com a porta entaipada. Alberto conseguiu despregar um dos
lados e abrir uma brecha. Por dentro não tinha nada, apenas muita sujidade.
Tinha duas divisões, uma cozinha e uma casa de banho. A sanita estava seca, mas
se arranjassem água poderiam servir-se dela. Teriam de fazer algumas limpezas.
Havia uma porta na cozinha nas traseiras que dava para um pequeno quintal.
Alberto conseguiu abrir a porta de modo, que do lado de fora, continuasse a
parecer entaipada. Tinham que ter cuidado pois casas daquelas eram usualmente
muito procuradas por drogados. Aquela porta era um bom ponto de fuga pois o
portão do quintal era suficientemente baixo para poderem passar por cima.
Alberto construiu um alarme com umas latas que pendurou do lado de dentro das
duas portas. Passou uma corda por um olhal de modo a quando as portas fossem
abertas as latas batiam umas nas outras com ruído suficiente para os alertar.
Limparam uma das dependências o melhor que puderam, colocaram cartões no chão e
estenderam as mantas. Teriam de conseguir algum dinheiro para comprarem velas.
Umas latas de conservas também dariam jeito. Deitaram-se para passarem a
primeira noite sem ser a céu aberto. Sara encostou-se a Alberto e passado um
pouco faziam amor em silêncio.
No dia seguinte, acordaram muito cedo. Sara presenteou
Alberto com um sorriso cúmplice. O sem-abrigo correspondeu-lhe com uma festa na
cara. Nas circunstâncias em que viviam, o sexo era mais uma questão de
solidariedade do que de amor. Assim completavam-se e compreendiam-se sem
perguntas nem exigências. Os dias foram correndo sem que houvesse novidades de
maior. Alberto procurava que Sara não se habituasse à calma e continuasse
alertada para qualquer movimentação suspeita quer na casa ou perto dela, quer
na rua. Certamente os meliantes não iriam deixar de procurar os milhões
roubados. Necessitava entrar em contacto com o Inspector Anselmo para saber se
já tinha havido alguma captura, mas não havia dinheiro para a chamada. Nunca
tinha exercido a mendicidade, até ali conseguira viver apenas com o apoio dos
abrigos e centros de apoio, mas teria de abrir uma excepção.
Anselmo estava à secretária quando a telefonista lhe ligou
dizendo que tinha em linha um homem que se identificara apenas como Alberto.
− Olá Alberto que se passa? Não. Ainda não demos com os
patifes. Mantenha-se alerta. Caso tenha alguma suspeita não tenha pejo de nos avisar.
Está a falar de onde? Está bem. Usar uma cabine é seguro. Precisa de alguma
coisa? Não? Bem, se precisar diga. Boa sorte.
Anselmo desligou e ficou a meditar sobre aquele homem. Culto
e honesto, atirado para aquela situação por falta de dinheiro e oportunidades
para arranjar subsistência para a família. A vergonha dos honestos é um entrave
para a vida. Os criminosos não têm esses problemas de consciência, aliás nem
devem ter consciência. Se a mulher tivesse tido um pouco mais de compreensão,
as coisas talvez tivessem corrido de outra forma. Pegou no telefone e ligou
para o seu amigo Fernando.
− Olá rapaz. Como vais?
− Ena. Que se passa para me ligares? Estou a ver que precisas
da minha clarividência especial para descobrir crimes e ajudar a nossa distinta
polícia de investigação. Aproveita agora que estamos de férias da Páscoa e
tenho pouco que fazer aqui na Faculdade.
− Era mesmo isso. Vou precisar de ti. Porque não jantamos
hoje os quatro? Sim. Podemos encontrar-nos às 20H no nosso restaurante do
costume.
− OK. Lá estarei com a Mariana. Até logo.
Anselmo desligou. Pensou como era bom ter um amigo assim
sempre disponível para o ajudar. Já em casos anteriores Fernando tinha sido um
útil auxiliar. Desde que se tinha metido a escrever romances policiais, que a
sua mente e inteligência, tinham sido postas à prova na ajuda a algumas
descobertas importantes, quer no caso de tráfico de diamantes, quer no crime da
Theodorus, SA.
Já no restaurante, os quatro amigos cavaqueavam frente a uma
bela refeição de peixe grelhado. Ana e Mariana estavam um pouco tensas, esses
encontros normalmente acabavam por meter o Fernando em sarilhos que poderiam
vir a ser perigosos. Ana já estava habituada a viver sempre em ânsias devido à
profissão do marido, mas Mariana, que sabia bem o marido que tinha, estava já a
temer que Fernando se fosse envolver de novo em actividades perigosas, o que a
deixava sempre angustiada.
Anselmo resolveu começar: − Vou contar-vos a história de um
sem-abrigo honesto.
Aos cafés, já todos conheciam a história de Alberto e em como
se tinha visto envolvido no caso do assalto ao banco.
− O caso não é meu. Continuou Anselmo. – Está entregue ao meu
amigo inspector Victor Antunes, especialista em assaltos principalmente de
bancos, mas como fui o primeiro a ser contactado pelo Alberto, e simpatizei com
o homem, estou preocupado com a sua segurança e penso que poderemos ajudar. O
Victor até nos vai agradecer, pois os meios são cada vez mais escassos e
qualquer ajuda é sempre bem-vinda.
− E qual é o papel que me tens reservado nessa história?
− Que achas fazeres de guarda-costas de um sem-abrigo?
− Eu? Porque não destacas um agente para o efeito?
− Achas que os meus superiores vão ocupar um agente para essa
missão? Com a escassez de efectivos que há? Nem penses nisso. Só mesmo em caso
de força maior e se daí advier algum benefício para a investigação. Vais ver
que vais achar interessante. O homem é uma pessoa com interesse e muito bem
formado. De certeza vais encontrar motivos para os teus escritos.
− E isso não será perigoso? Perguntou Mariana com ar
preocupado. – Vão de novo correr riscos. O meu marido não é polícia e eu
quero-o inteiro por muitos anos e bom. Bastam os sustos que apanhei aquando do
caso do “Elefante Negro”.
− Não tens o direito de colocar o Fernando em situações de
perigo. Referiu Ana. − Ser polícia é uma coisa, agora Fernando é um professor
investigador da nossa faculdade, se algo lhe acontecer a responsabilidade será
tua.
− Então? Foste tu que sugeriste que ele podia ajudar. Claro
que não o vou obrigar. Dar-lhe-ei toda a protecção de modo a contactar connosco
rapidamente. Estaremos em qualquer local em poucos minutos. Deixo ao Fernando
toda a liberdade para recusar, mas como me está sempre a pedir para o imiscuir
na acção, achei que esta missão seria óptima para ele.
− Claro que sim. – disse Fernando. – Já estou entusiasmado.
Vai ser bom conhecer esse sem-abrigo. Será que vai ser fácil chegar à fala com
ele?
− Há uma maneira. E essa é um trunfo que tens na manga. O
homem é um intelectual. Está sempre a ler e boas obras, como tu és um
conhecedor da boa literatura, não terás problemas de comunicação.
− Então está combinado. Quando começo?
− Vou pôr a organização a descobrir por onde anda ele agora. O
tipo mudou de local e, apesar de me ter telefonado ontem, não me disse onde pára.
Mas vamos descobri-lo rápido. Falo ao Antunes e ele trata disso.
− Assim como vocês o vão encontrar, os bandidos também o
poderão fazer.
− Claro que sim. É por isso que te quero perto dele. O tipo
tem na roupa um localizador do qual fará uso em caso de perigo, mas se as
coisas correrem mal, estarás lá tu para nos contactares.
− OK. Fogo à peça! Assim que souberes onde o gajo está
liga-me. Estou de licença e com tempo livre.
− Podes ficar descansado. Agora vamos até nossa casa beber um
copo e aproveitamos para falar sobre as coisas comezinhas da vida.
À noite, já depois de Fernando e Mariana terem saído, Ana,
sentada no colo de Anselmo e com os braços a rodear-lhe o pescoço, zurziu um
pouco a cabeça do polícia por este se servir do amigo em casos que poderão
envolver perigo.
− Já estou arrependida de me ter lembrado dele.
− Deixa querida. Fernando desenrasca-se bem. Havias de ter
visto como arrumou um matulão com dois murros muito bem colocados lá naquela
casa de alterne onde te conheci.
Anselmo raramente se referia à vida anterior de Ana, mas não escondia
nada propositadamente. Ambos não tinham quaisquer constrangimentos com o facto
de Ana ter tido uma vida livre e difícil. Conhecera-a numa casa de alterne e
apaixonaram-se. Ana trabalhava lá e prostituíra-se para poder frequentar a universidade,
mas não se envergonhava disso. Hoje a vida era outra e o amor dos dois superou
tudo isso.
− E agora vamos dormir. Amanhã tenho trabalho e tu também.
VII
Fernando deixou de fazer a barba. O cabelo era
suficientemente comprido para, se despenteado, dar um ar de abandono. Pegou num
sobretudo que já não usava há muito, fez-lhe uns cortes esfiapados e pregou-lhe
umas nódoas. Uma camisola de lã que antigamente usava na pesca, uns sapatos
velhos que sujou de lama deixando-os baços e com ar cambado, um saco velho de
lona, também da pesca e estava com o equipamento pronto para o que desse e
viesse. Meteu uns livros, que já lera, no saco e aguardou que Anselmo o
contactasse.
O telefonema só veio três dias depois;
− Olá Fernando. Já descobrimos o tipo. Anda lá para os lados
de Marvila. Há lá um centro de apoio da Misericórdia onde ele vai comer. Anda
acompanhado por uma mulher também sem-abrigo. Estão alojados numa casa abandonada,
mas tomaram providências para não serem surpreendidos. Os nossos homens
viram-se aflitos para os descobrirem. Só a sua grande experiência os levou a
localizarem o poiso deles. Tens que te aproximar através do centro de apoio.
Não forces nada. Faz com que as coisas corram normalmente. Ganha-lhe primeiro a
confiança.
− Vou fazer para que tudo corra bem. Conta comigo para
proteger o homem. Vai ser um exercício interessante de psicologia. O facto de
ter companhia feminina vai complicar um pouco. Como agora tem companhia e anda
desconfiado, vai ser mais difícil ganhar-lhe a confiança. Mas fica descansado
que vou conseguir.
− Sei que sim. Quando pensas começar?
− Vou preparar tudo para amanhã. Hoje ainda vou fazer um
reconhecimento. Envia-me a morada por “mail”.
− OK. Toma cuidado contigo.
Cerca de uma hora depois, Fernando conduzia o seu potente BMW
para o lado oriental da cidade.
Passou primeiro pelo centro de apoio para se familiarizar com
a topografia do local. Referenciou um parque automóvel relativamente perto e
passou pela viela onde ficava situado o abrigo do homem que iria tentar
proteger. Depois de ter decorado toda a topografia regressou a casa e
preparou-se para a sua missão que iniciaria no dia seguinte.
Pelas onze da manhã saiu de casa e conduziu até ao parque que
escolhera na véspera. Deixou lá o carro não sem antes ter escondido uma chave
presa do lado de dentro de um dos guarda-lamas. Não se podia dar ao luxo de
fazer de sem-abrigo com uma chave de BMW no bolso. O telemóvel ia ser uma
chatice. Não podia prescindir dele para o caso de ter que comunicar com Anselmo.
Teria de arriscar.
Dirigiu-se ao centro de apoio e entrou.
− O meu caro amigo é novo por aqui. Nunca o tinha visto.
Referiu o funcionário que controlava as entradas.
− Estou há pouco tempo nas ruas. Acabei as poucas provisões
que tinha. Espero que me deixe almoçar. Já não como desde ontem.
− Aqui recebemos toda a gente. Vá buscar o almoço e sente-se
onde tiver lugar.
Fernando pegou num dos pratos de alumínio e foi até ao balcão
onde lhe serviram frango com esparguete. Olhou à sua volta e viu logo Alberto e
Sara. Correspondia exactamente à descrição que Anselmo lhe fizera. A mulher que
o acompanhava ainda tinha bastante bom ar, apesar de mal-arranjada e estar
vestida com roupa pouco cuidada. Ambos ainda tinham um aspecto lavado. Havia
uma vaga na frente dos dois e Fernando aproveitou. Notou que Alberto lhe
lançara um olhar de soslaio. Era novo ali e naturalmente o homem tomava os seus
cuidados. Durante a refeição não trocaram uma palavra. Fernando notou que tanto
Alberto como a companheira tinham guardado o pão da refeição. Provavelmente
serviria para sossegar o estômago antes de dormirem. Fernando verificou, com
alguma surpresa, que a comida estava apetitosa e bem confeccionada. No fim da
refeição dirigiram-se para uma sala lateral onde nalgumas mesas se jogava a
sueca. Alberto e Sara sentaram-se numa das mesas livres e Sara tirou dois
livros do saco de papel que trazia. Fernando tirou também um livro do bolso do
sobretudo e dirigiu-se à mesma mesa pedindo licença para se sentar. Alberto
olhou e sem nada dizer apontou-lhe uma das cadeiras livres. Estiveram ali umas
duas horas. A certa altura Alberto fez sinal a Sara e levantaram-se os dois
dirigindo-se para a porta. Fernando continuou a ler. Teria de ter muito cuidado
na aproximação. Via-se que o homem estava muito desconfiado e seria difícil
ganhar-lhe a confiança. Provavelmente teriam de passar alguns dias até isso ser
possível.
Quando o dia já esmorecia, o funcionário do centro de apoio
mandou sair toda a gente apesar dos protestos quase gerais. Fernando dirigiu-se
até à viela que já conhecia e deitou-se logo no início, junto duma parede e
debaixo de uma escada de serviço, em ferro, já meia desfeita. Foi até aos
caixotes e arranjou uns cartões. Enrolou-se na manta que tirara do saco e
preparou-se para dormir. Só muito tarde conseguiu adormecer e mesmo assim
acordava quase de hora em hora. Valeu-lhe ser um homem ginasticado e forte. A
rigidez do solo e algum frio começaram a fazer os seus efeitos. Já de manhã a
claridade não o deixava dormir e por outro lado teria de se manter alerta para
ver quando os vigiados sairiam. A viela não tinha saída e, caso não saíssem
pelas traseiras, teriam de passar por ali. De facto, assim aconteceu, Alberto e
Sara saíram e levaram algum tempo a fecharem a porta de modo a parecer não ter
sido utilizada. Fernando fingiu que estava a dormir e, com os olhos
semicerrados viu Alberto dirigir-se a ele.
Assim que o homem lhe tocou na manta para lhe ver o rosto,
Fernando deu um salto fingindo-se surpreendido e agarrou-lhe o braço com alguma
violência. Alberto recuou e tentou libertar-se.
− Óh! Desculpe. Acordei sobressaltado pensando que me iam
assaltar. Disse Fernando. – Mas estou a conhecê-lo. Você estava ontem no
centro. Estivemos a ler juntos na mesma mesa.
− Quem é Você e o que faz aqui? Perguntou o sem-abrigo.
− Fernando sorriu. Que pergunta! Olhe, faço o mesmo que Você,
tento descansar e dormir, o que ainda não consegui muito. Passei muito frio.
Tenho que arranjar outro poiso mais confortável. Conhece algum?
Alberto não lhe respondeu directamente à pergunta, dizendo
apenas; − Tenha cuidado com os sítios que escolhe para dormir. Há aí alguns
viadutos que dão melhor guarida. Seja prudente, estes sítios são perigosos,
anda por aí muito tarado capaz de tudo.
− Estarei alerta. Disse Fernando.
Depois dos dois se retirarem Fernando pensou que este incidente
tinha sido bom. Ao almoço teria um motivo para poder meter palavra com o casal.
Escondido atrás dos caixotes do lixo Fernando pegou no
telemóvel e ligou para Mariana.
VIII
Tobias bateu à porta do gabinete e mal ouviu o “entre”
entreabriu-a dizendo:
− Chefe! Temos um caso de homicídio. E sabe que mais? É um
sem-abrigo.
Anselmo deu um salto levantando-se abruptamente.
− Não me digas. O Alberto?
− Julgo que não Chefe, mas deve ter a ver com o caso. O tipo
foi morto no viaduto onde atiraram com o dinheiro.
− Ainda lá está?
− Sim Chefe. Mandei para lá já a nossa brigada. Devem estar à
sua espera. O médico legista e os homens do laboratório também já foram. Vamos?
− Vai buscar o carro. Vou só fazer um telefonema.
Anselmo ligou para Fernando, deixou tocar um pouco e como não
atendesse desligou. Fernando veria a chamada dele e certamente ligaria logo que
pudesse.
Saiu e meteu-se no carro com Tobias ao volante e colocou o
pisca azul no tejadilho. À chegada ao viaduto dirigiu-se logo para o local onde
um aglomerado indicava que algo de estranho se passara. À volta, muitos
curiosos tentavam espreitar, mas nada viam. O corpo encontrava-se entre uma
carrinha velha, ali estacionada certamente há muitos dias, e um dos pilares
centrais do viaduto. Estava meio coberto por um lençol e os peritos já
arrumavam o material. Anselmo procurou o médico legista.
− Olá Doutor, então o que temos aqui?
− Inspector Anselmo, como vai? Olhe! É um pobre diabo
maltrapilho e malcheiroso. Deve estar morto aí há umas dez horas, mas só lá poderei
calcular melhor a hora da morte.
− O que o matou?
− Porrada! Deram-lhe forte e feio. Ainda tem uma mordaça na
boca. Também o torturaram com queimadelas de cigarros. O tipo não aguentou e
teve uma crise cardíaca. Deveriam querer saber alguma coisa. Que poderá um
mendigo destes saber?
− Penso que sei do que se trata, mas tenho de investigar um
pouco.
Anselmo calçou umas luvas de borracha e afastou o lençol.
Tirou a mordaça da boca do homem e meteu-a num envelope de plástico. Dentro da
boca da vítima estava qualquer coisa. Anselmo pediu uma pinça aos técnicos da
judiciária e puxou. Era outro lenço, este preto e não verde como o primeiro.
Guardou-o noutro envelope e deu ambos a Tobias. O morto, além de um pão
ressequido, nada tinha nos bolsos. Estava sem meias e os sapatos estavam
completamente degradados.
− Quem descobriu o corpo? Perguntou ao PSP que estava junto.
− Foi aqui este amigo. E apontou um sujeito de cor que
aparentava algum nervosismo.
− Então conte lá. Como deu com o homem?
− Bem Senhor Inspector. Saí ali do Bingo e vim aqui fazer uma
“mija”. Perdi umas massas e vinha tão desorientado que me esquecera de a fazer
lá dentro. Já não estive para voltar atrás. Este sítio é muito concorrido ao
fim-de-semana para beber uns copos e comer umas “sandochas” ali nas barracas.
Esta noite estavam fechadas e não havia movimento. Quando passei atrás da
carrinha ia pisando o homem. Apanhei um susto dos demónios, até dei um salto.
Olhei depois com mais atenção e pareceu-me algo de estranho. Apesar de ter
tropeçado nele, o gajo nem se mexeu. Aproximei-me mais e vi que tinha a cara
bastante “amassada”. Pareceu-me morto. Fui ver se encontrava uma autoridade e
por acaso passou um carro patrulha. Mandei-os parar e trouxe-os aqui.
− Sabe que horas eram mais ou menos?
− Pouco passava das cinco. Saí por essa hora.
− Mexeu em alguma coisa ou viu algo junto à vítima.
− Nada Senhor Inspector. Não toquei em nada. Tenho muito
respeito pelos mortos e não me sinto nada bem junto deles. Posso ir-me embora.
− Só depois de deixar a identificação ali ao agente Tobias.
Mantenha-se na cidade pois pode ter de ser contactado.
Anselmo demorou mais meia hora a verificar a cena do crime.
Junto à parede havia alguns pingos de sangue e no chão também algumas manchas
que pediu à equipa técnica para analisar. O chão em volta estava seco e não havia
vestígios nem marcas de calçado.
Um pequeno objecto brilhou debaixo da greta entre o pilar e o
solo. Com a pinça conseguiu sacá-lo não sem algum custo. Era um emblema com a
bandeira da Roménia. A mola de prisão tinha saltado. Anselmo ainda a procurou
durante um bocado, mas ao fim de uns minutos desistiu. Meteu o emblema noutro
envelope e fez sinal a Tobias para irem embora.
A bandidagem de leste andava metida nisto. Teriam de redobrar
os cuidados. Anselmo não era xenofobista, achava que todos eram cidadãos do
mundo e tinham o direito de viver onde quisessem. Só não entendia era que um
indivíduo deixasse a sua terra para se dedicar ao crime em terra alheia. Aí era
radical. Pensava que quem metesse a pata na poça, deveria ser imediatamente
recambiado ao remetente com proibição total de voltar. Bandidos já havia muitos
na sua terra, não precisávamos de mais.
Ao entrar para o carro o telemóvel tocou. Era Fernando.
− Então Anselmo há novidades?
− Há e das grandes. Mataram um mendigo sem-abrigo no mesmo
sítio onde o Alberto dormia quando do assalto. Torturaram o gajo, mas o tipo
morreu com uma crise cardíaca. Por alguns indícios recolhidos há gajos de leste
metidos nisto. Estes tipos são muito perigosos. Tens de redobrar de cautelas. Há
algo de novo para me dizeres?
− Por enquanto não muito. Já cheguei à fala com o Alberto e
agora ao almoço vou tentar estabelecer maior contacto. Passei uma noite do
caraças e estou todo partido. Já não dormia no chão desde a tropa.
− Aguenta. Não queres escrever histórias policiais? Então não
te queixes. Tens de viver os factos para os conheceres. Não é só descrever. A
maioria dos escritores descreve mal essas coisas porque não as vive. Tu estás
em vantagem. Abraço. Se tiveres novidades liga-me logo possas.
IX
Fernando almoçou na mesa em frente à de Alberto e Sara. O
casal comeu rapidamente trocando apenas uma ou outra frase. Via-se que Alberto
estava um pouco nervoso. Mostrava-se atento a todas as pessoas que entravam,
seguindo-os com o olhar até se convencer de que não haveria perigo. Fernando
também não notou nada de anormal. Após a refeição, dirigiram-se como de costume
para o local de lazer e dedicaram-se à leitura. Fernando esperou que na pequena
sala as mesas ficassem todas ocupadas. Com o livro na mão, aproximou-se da mesa
de Alberto e Sara e pediu licença para se sentar.
− Desculpem, mas como são os únicos que já conheço, sinto-me
mais confortável junto de vocês, além de que a maioria tem muito mau aspecto e
o cheiro não é lá muito agradável. Não se importam, pois não?
Alberto fez sinal que sim com a cabeça ficando a observar o
seu interlocutor.
− Verifico que você é novo nisto. Vê-se a sua falta de hábito
e jeito para lidar com a situação de sem-abrigo. Por outro lado, não é muito
normal aparecerem por aqui indivíduos com a sua maneira de falar e tom de voz.
Diga-me que faz aqui? Anda há pouco tempo nisto ou move-o qualquer outro
interesse?
− O meu caro também não tem pinta para tal e eu não o
interroguei. Há pessoas que mudam de vida por variadíssimos motivos. Mas não
tenho quaisquer escrúpulos de falar no assunto, a minha mulher trocou-me por
outro e não aguentei. Para mim a vida deixou de ter interesse. Andar a matar-me
a trabalhar para viver condignamente com a mulher que se ama e depois ser assim
traído…
Nessa altura Sara, que até ali parecia desinteressada do que
os homens diziam, começou a dar mais atenção à conversa.
Fernando continuou: − Não aguentei. Resolvi abandonar tudo
até ganhar coragem para sair daqui e tentar refazer a vida em qualquer outro
lugar. E você? Porque anda nisto?
− Não foi bem isso. Não fui capaz de tomar conta dos meus.
Para lhes dar má vida preferi sair. Já arranjou melhor sítio onde ficar?
− Ainda não.
− Eu e a Sara estamos numa casa abandonada lá naquele beco
onde dormiu. Há lá espaço para si. Se quiser poderá ocupar uma das divisões.
− Não quero ser pesado nem tirar-vos a privacidade. Vocês são
um casal e eu um homem só.
− Não tem importância, já vi que é uma pessoa civilizada e lá
dentro há portas que se fecham.
− Bem, aceito até encontrar algo para mim. Não quero
criar-vos problemas.
− Problemas é o que nós temos mais. Apareça quando quiser. Tem
é de encontrar alguma coisa para comer à noite. Quando chegar bata na porta com
três pancadas primeiro e depois mais umas quantas repenicadas.
− Lá estarei. Vou providenciar algo.
Fernando, nessa tarde, foi até ao carro e mudou de roupa.
Ajeitou o cabelo e aparou um pouco a barba com a máquina de pilhas que tinha
sempre no porta-luvas. Foi até um supermercado e comprou umas latas de
conservas, bolachas, três pacotes de leite, pão, algum fiambre, um paio e uma
garrafa de tinto. Voltou ao carro e trocou novamente de roupa.
Assim que escureceu foi até ao beco e bateu na porta da forma
combinada. Quando Alberto abriu, Fernando reparou que a mesma se fechava de
modo a parecer que nunca fora aberta.
− Vejo que tomaram providências para passarem despercebidos.
Receiam algo?
− Sim. Já lhe conto. Reparo que o meu caro traz provisões.
Assaltou alguém?
Fernando sorriu e respondeu: − Não! Saí de casa, mas tenho
algum dinheiro. Ando com um cartão multibanco escondido aqui no casacão.
Enquanto durar não vamos passar fome.
Dizendo isso, colocou as compras em cima de um caixote.
− Podem servir-se à vontade. É como se fosse vosso.
Puxou por um canivete suíço e começou a cortar umas fatias de
pão e umas rodelas de paio. Abriu uma lata de atum e a garrafa do vinho.
− Como não há copos vamos ter que partilhar o mesmo gargalo.
Espero que não se importem. E agora, enquanto petiscamos, digam-me, de que têm
medo.
Alberto sentiu que podia confiar naquele homem. Aquele olhar
e a forma aberta como se exprimia, não enganava ninguém, estava ali um tipo
fixe. Pegou no canivete e, com a lâmina, tirou um bocado de atum que colocou
numa das fatias de pão. Deu um gole na garrafa e começou a contar a sua
história.
X
Razvan era conhecido no “meio” pelo Romeno. Viera para
Portugal fugido da polícia do seu país que o procurava por assalto e roubo.
Felizmente não chegara a ser totalmente identificado, mas se por lá continuasse
estaria certamente lixado. Aqui em Portugal não tivera dificuldade em juntar-se
a três tipos que viviam de roubo e assaltos, mas ainda eram um pouco crus no
“negócio”. Com ele aprenderiam a “trabalhar” fazendo “serviços” mais
sofisticados e lucrativos. Só que a falta de calo daqueles maçaricos fizera com
que o primeiro assalto, que até correra bem, acabasse mal. Aquele safado do
Toino tinha dedo leve no gatilho e logo foi atirar no segurança. Nada pior que
ter de atirar em alguém. E agora, perseguidos pela “bófia”, tiveram de
livrar-se do produto do trabalho.
Na casa do Toino, os quatro bebiam vinho e trincavam uns
couratos com azeitonas, trocando acusações pelo fracasso obtido.
− Logo tinhas de atirar naquele tipo. − Disse o Romeno com o
seu sotaque característico. – Agora temos a bófia à perna e o crime passa de apenas
roubo para homicídio.
− Não sabemos se o gajo “lerpou”. – Disse o Toino. – E depois
se não atirasse o tipo apanhava-me. Era um grande matulão e não podia com ele.
Teve de levar.
− Nunca mais levas uma arma. És perigoso.
− Agora não interessa discutir isso. – Disse o Franzino. –
Não fomos identificados e isso é bom. Espero que não tenham deixado indícios
pessoais no carro que abandonámos. Temos, mas é de encontrar o tipo que nos
ficou com a “massa”. Esse sem-abrigo intelectual não pode ter-se esfumado.
O quarto elemento tinha estado calado até ali. Era um matulão
de um metro e noventa e pesava aí uns cem quilos. Não aprovara a união do grupo
com o Romeno e não se sentia nada à vontade a receber ordens dele. Mas o Romeno
sabia da poda e poderia ser útil. Iria aguentar, mas ele que tivesse cuidado e
não exorbitasse. Se isso acontecesse teria de se haver com ele.
− E tu ó Hercules, que tens para dizer? - Perguntou o Romeno.
− Olha, digo que a culpa foi tua. A liderança não é só dizer
o que fazer. Temos de prever os percalços e construir cenários do que poderá
acontecer e prever actuações para cada cenário possível. O Toino não foi
industriado para aquela situação e actuou como entendeu. Agora não se lhe podem
atirar pedras.
− Sim senhor. Estás a sair-me um autêntico professor. Já
agora diz lá, o que achas que deve ser feito?
− Em primeiro lugar temos de encontrar o tal sem-abrigo que
dormia por ali e depois temos de certificar-nos que o tipo ficou com o
dinheiro. Nada nos diz que não possa ter sido outra pessoa a achar o saco.
− E qual é a estratégia?
− O melhor será ir lá ao viaduto e procurar saber mais coisas
sobre o tal pedinte, assim como nos disseram que o gajo dormia ali, também nos
podem dizer como o gajo é. Depois, com uma descrição mais pormenorizada, será
mais fácil procurá-lo. Até podemos pagar a alguns tipos para o descobrirem para
nós. – Referiu o Hércules.
− Não convém muito andarmos os quatro por ali a indagar. Os
“bófias” não são estúpidos e estão alerta. – Pois. O Franzino tem razão. Temos
de ser prudentes. Por azar, aquele malcheiroso que por lá estava logo havia de
morrer. O gajo não aguentou umas pancaditas. Era fracote. Além disso nada tinha
a ver com o tal intelectual. Aquele nem seria capaz de ler os letreiros de
autocarros quanto mais ler livros. O pior é que passámos a criminosos e agora
estamos lixados. Se nos apanham será muito grave para nós.
− O Franzino é aquele que passa mais despercebido. Por mim
acho que deve ser ele a lá voltar. – Disse o Toino um pouco a medo.
− Eu? Porque não tu? Também não és muito maior do que eu.
− Vai mesmo o Franzino. – Disse o Romeno acabando com a
discussão. – Vais lá e tentas saber características do intelectual. Entretanto
aqui o “professor” Hércules vai encarregar-se de arranjar uns sem-abrigo e “untá-los”
para que procurem o intelectual assim que tivermos mais pormenores descritivos.
Hércules assentiu com a cabeça. Começou a pensar que mais
tarde ou mais cedo teria de livrar-se daquele Romeno.
− Temos também de encontrar um lugar para a nossa sede. A
casa de cada um de nós não é segura, pois se identificarem algum, as nossas
residências passarão a andar vigiadas.
Resolveram sair um de cada vez para não darem nas vistas.
XI
Fernando ouviu atentamente a história que já conhecia. Assim
que Alberto terminou, resolveu intervir.
− O que acabou de me contar pode ser muito perigoso. Os
meliantes que fizeram o assalto vão acabar por encontra-lo, e mesmo que diga
que não estava lá naquele fim de tarde, eles não vão acreditar e podem partir
para a violência para o obrigarem a falar. Se for agarrado, não tenha pejo em
utilizar o localizador que a polícia lhe deu, mas faça-o apenas quando o poder
fazer sem ser notado. Temos de preparar uma forma dos tipos, se aparecerem, não
darem com a Sara, pois poderão exercer sevícias sobre ela para o obrigarem.
Muitos homens são bem estóicos e aguentam muito, mas aguentarão pouco ao verem
alguém a sofrer por eles e então com mulheres, pior.
− Há um sótão aqui por cima. – Disse Alberto. – Reparei numa
abertura que há na cozinha. Vamos lá acima ver se tem condições para servir de
esconderijo.
Dirigiram-se os três à cozinha. Fernando, como mais alto,
subiu a um caixote que servia de mesa e num pulo, conseguiu agarrar-se às
bordas da abertura. Com um golpe de rins e força de braço, elevou-se
conseguindo penetrar no sótão. Alberto e Sara repararam como o homem era
ginasticado. O sótão ocupava toda a casa e não possuía qualquer divisão. O
telhado, ainda em bom estado de conservação, pouca luz deixava entrar através
das telhas. Num dos topos encontrava-se um velho armário de três portas meio
desconjuntado. O móvel estava encostado ao esconso do tecto e deixava espaço
atrás onde uma pessoa como a Sara se poderia esconder. Era preferível ficar
atrás do armário do que dentro dele, assim poderiam deixar as portas abertas
para que quem olhasse de longe poder ver que nada continha. Agora era só
treinar a Sara para subir e passar a abertura do tecto. Desceu e, acompanhado
de Alberto começaram a iniciar Sara. Fernando, mais forte que Alberto, subiu ao
caixote dando a mão a Sara para que subisse também. Agarrou-a pelas pernas,
abaixo do rabo, e elevou-a sem dificuldade até a cabeça da mulher entrar na
abertura.
− Agora, coloque os braços e cotovelos por dentro e tente
elevar-se.
Sara fez o que Fernando lhe dizia e não teve dificuldade em
subir.
− Veja ao fundo à sua direita um velho móvel que lá está com
as portas abertas. Se tiver de se esconder, é atrás do armário que se vai
colocar. Talvez aí não a procurem quando virem o móvel aberto. Agora vai ter
que treinar a descida pois terá de o fazer sozinha e o caixote não vai estar
aqui para não dar indicação de que alguém subiu. Fernando deslocou o caixote
para junto da parede e Sara começou a tentar a descida.
− Primeiro agarre-se com as mãos e passe as pernas
deixando-as escorregar até ficar agarrada só com os antebraços fazendo força
com os cotovelos. Isso mesmo. Agora deixe-se deslizar devagar até ficar
pendurada agarrando-se só com as mãos. Está a ir muito bem. Vai ter que
largar-se. O salto não é grande, talvez pouco mais de metro e meio. Deixe cair
os sapatos e caia sobre as pontas dos pés flectindo as pernas mal toque o chão.
Vá, coragem. Isso.
Fernando não pôde deixar de olhar para as pernas de Sara ainda
muito escorreitas e bem-feitas.
Sara chegou ao chão sem problemas, desequilibrando-se apenas
um pouco sendo amparada por Fernando.
− Se tiver que fazer isto, e se perder o equilíbrio, é
conveniente deixar-se cair enrolando sobre um quadril. É assim que fazem os
militares, principalmente os paraquedistas.
Sara teve de sacudir-se sendo ajudada por Alberto que lhe deu
um beijo na face.
− Linda menina. Se eu for agarrado e tu te conseguires
livrar, vai à Judiciária e procura pelo inspector Anselmo. Ele saberá o que
fazer.
Os três saíram da cozinha e prepararam-se para dormir.
XI
Maria Clara estava à espera da sua amiga para a substituir na
loja. Estava na altura certa de ir buscar os filhos à escola. Àquela hora o
centro comercial tinha poucos clientes e já há uns tempos que não entrava
ninguém para ver a mercadoria quanto mais para comprar.
O dia até nem tinha corrido mal e tinha feito algumas boas
vendas. A sua amiga estava bastante satisfeita com ela e Maria Clara dava
graças à providência por ter conseguido aquele emprego. O que ganhava, mais a
pensão que continuava a receber do Alberto, era o suficiente para as despesas e
ainda dava para amealhar qualquer coisita e dar uns mimos aos miúdos. Sentia a
falta do seu homem e pensava constantemente nele. Como gostaria de o ter junto
de si. Sabia que o Alberto estaria muito mentalmente em baixo por não poder
viver com eles, principalmente com os filhos, mas a opção fora dele e Maria
Clara nada poderia fazer. Se as coisas se tivessem passado agora, teria de
certeza agido de outra forma. Presentemente era tarde e a vida modificara-se
imenso.
Estava tão absorta nos seus pensamentos que nem deu pelo
homem que se aproximou do balcão. Quando o olhou, reparou logo na arma que
empunhava à frente do corpo de forma a não ser visto da porta.
− Se é dinheiro que quer, dou-lhe o pouco que tenho aqui na
caixa, o produto do dia já o depositei pois vou sair agora. – Maria Clara
tentava mostrar-se calma, mas as pernas tremiam-lhe por dentro.
− Não quero dinheiro nenhum. Quero-te a ti. Vamos já daqui
direitos à escola dos teus filhos. Está lá um amigo meu à espera deles. Já
sabemos quem são. Não faças qualquer acto mal pensado senão são eles que vão
sofrer.
Maria Clara sentiu-se desfalecer. Quem seriam estes homens
que a queriam a ela e aos filhos? Dinheiro não deviam querer pois ela não o
tinha, nem quiseram o dinheiro da loja. Seria alguma coisa com o Alberto? Em
que negócios andaria metido? Conhecia bem o seu marido para saber que não se
meteria em algo ilegal. Era uma pessoa do mais honesto que conhecia e não se
meteria em negócios escuros. Deveria estar em maus lençóis para a virem
buscar a ela e quererem também os filhos.
Maria Clara pegou na mala e passou para o outro lado do
balcão. As pernas tremiam-lhe e mal se segurava em pé. Pegou nas chaves e
preparava-se para fechar a porta quando o meliante lhe disse:
− Deixa isso. Não temos tempo a perder. – Ao mesmo tempo
tirou-lhe o telemóvel e deixou-o em cima do balcão.
Caminharam, ela à frente e o tipo atrás, tinha metido a arma
no bolso e segurava-a por um braço encaminhando-a por entre os poucos clientes
do centro.
Já cá fora, aproximaram-se de um carro tipo “jeep” com um
tipo ao volante que arrancou mal entraram.
O condutor seguiu devagar até ao colégio dos miúdos onde
pararam junto dos outros carros de pais que também esperavam os filhos.
− Menina. Vais até ao passeio, junto ao portão, encaminha os
putos para aqui. Não tomes qualquer atitude precipitada porque estamos de olho
em ti e neles. Sossega os miúdos explicando o que se passa para que não façam
asneiras e que sigam as nossas instruções. Não queremos gritaria nem perguntas.
Se não houver crise não haverá problemas, mas um passo em falso e poderemos
tornar-nos muito duros.
Maria Clara estava a viver algo que nunca pensara vir a
acontecer-lhe. Parecia-lhe tudo um sonho ou um filme que estivesse a
representar. Mas os factos eram concretos e estavam a acontecer com ela bem
acordada e viva.
Foi até ao portão e viu os filhos virem ao seu encontro. A
empregada sorriu-lhe e ela retribuiu. Os filhos pararam junto dela, baixou-se e
falou com eles tentando parecer o mais serena possível. Os miúdos ouviram-na
com muita atenção e seguiram-na de mão dada até ao carro onde obedientemente
entraram olhando bem os dois homens directamente nos olhos.
O rapaz notou a diferença de tamanho entre o condutor, tipo
franzino, e o outro um pouco mais forte. Notou também o volume que a arma
fazia, presa no cinto dentro da camisa por fora das calças. A rapariga, mais
tímida, agarrou-se ao braço da mãe com mais força do que desejava. O tipo
grande mandou o rapaz sentar-se junto ao condutor e sentou-se no banco de trás
com a mulher e a filha. O rapaz sentiu o cheiro a suor dos dois energúmenos.
Não deviam tomar banho há dias.
Seguiram pela cidade e Maria Clara notou que se dirigiam à
baixa. Entraram na Mouraria e pararam junto a um portão de uma garagem que o
matulão foi abrir. Entraram e levaram-nos para um gabinete feito em armação de
madeira e alumínio, só com uma porta e sem janelas. No interior apenas uma mesa
vazia e várias cadeiras. Na mesa deixaram uma garrafa de água.
− Vão aguardar aqui. Estaremos lá fora.
Depois de ficarem sós, Maria Clara sentou os filhos e
fazendo-lhes festas na cabeça sossegando-os.
− Não sei o que se passa, mas isto deve ter a ver algo com o
vosso pai. Também não sei onde está nem em que negócios anda metido. Espero que
esteja bem, mas palpita-me que em breve vamos saber. Temos de ter paciência e
aguardar com serenidade. Sei que é difícil de conseguir, mas vocês vão ser
capazes.
O rapaz levantou-se e começou a dar a volta à pequena
dependência. Olhava todos os painéis de madeira encaixada nas tiras de
alumínio. Reparou que um pouco acima da sua altura, um dos painéis estava mal
encaixado e uma réstia de luz entrava iluminando o pó existente. Puxou uma
cadeira e espreitou. Por cima dos tejadilhos de dois carros que se encontravam
na garagem, vislumbrou o tipo franzino sentado junto a uma bancada, lendo o
jornal. A porta exterior estava fechada e a luz estava acesa. Pelos vidros
existentes entre o telhado e as paredes entrava pouca claridade.
XII
Fernando não conseguia dormir. Na sala ao lado, do lá de lá
da porta fechada, ouvia-se um ressonar leve de Alberto que dormia junto de
Sara. Pensava, vendo-se no papel de sem-abrigo. Seria que, se acaso falhasse na
vida, conseguiria abandonar a mulher e os filhos? Muito mal se sentirá um homem
quando chegar à conclusão de que falhou e não consegue prover às necessidades
familiares. Certamente não passará bem, mas daí a abandonar tudo e fugir… No
caso de Alberto, uma vez que optou por viver sem dinheiro e na rua, acabou por fazer
com que o abandono dos seus revertesse em melhores condições de vida para eles.
Mas muito triste deveria estar.
As suas cogitações nocturnas foram interrompidas pelo ruído
de latas a bater. Levantou-se num ápice e quase bateu em Alberto que também ouvira
o alarme. Rapidamente acordaram Sara e elevaram-na até à abertura do tecto.
Fernando pegou num bocado de barrote que tinha junto da parede e voltou-se a
tempo de ver um tipo que avançava para ele. Deu-lhe com o barrote num joelho e
homem dobrou-se com a dor. Um pontapé certeiro nos queixos derrubou o intruso
que ficou semi-inconsciente. Outro indivíduo que entrara atrás lutava com
Alberto conseguindo derrubá-lo. Fernando correu em seu socorro. Uma enorme
pancada na nuca mergulhou-o em escuridão.
Acordou com enorme dor na cabeça. Sara estava dobrada sobre
ele e colocava-lhe um pano molhado na nuca.
− Custaste a acordar. Grande pancada levaste. Os tipos
levaram o Alberto. Desci depois de os ouvir sair e vi-te aqui caído. Resolvi
acordar-te primeiro antes de fazer qualquer coisa. Penso que os dois poderemos
fazer mais do que um só.
Fernando levantou-se, ainda a custo, e dirigiu-se para o seu
cubículo. O seu saco ainda lá estava e o telemóvel também. Os tipos devem ter
saído apressados e não revistaram nada. Ligou imediatamente para Anselmo.
− Está? Sou eu. Fomos atacados e levaram o Alberto. Ainda
tivemos tempo de refugiar Sara. Derrubei um, mas fui atacado por trás com uma
pancada na tola. Deram-me forte. Vamos para aí.
− Sim, agora é o melhor a fazer. − Disse Anselmo − Alberto
ainda não accionou o localizador, não deve ter tido oportunidade. Vamos esperar
que o faça em breve. Recebemos aqui na judiciária uma comunicação de uma tal
Manuela, amiga e patroa da mulher do Alberto. Quando chegou à sua loja do
centro comercial onde a amiga trabalha, encontrou-a aberta e sem ninguém. O
telemóvel dela estava sobre o balcão, o que é muito estranho. Temeu o pior e
nós também.
− Porra! Será que a apanharam? Se foi assim vão servir-se
dela para pressionar Alberto. Temos de agir rápido.
− Agora temos mesmo de esperar, sem a localização é como
procurar agulha em palheiro. Vem para aqui e traz a Sara, não pode ficar só.
− OK. Vou já e na mecha.
Fernando desligou e disse a Sara que apanhasse as coisas dela
e o seguisse.
A mulher olhava boquiaberta para ele começando a somar dois e
dois, mas nada disse. Pegou na trouxa recolhendo o pouco que estava de fora e
juntou-se a Fernando.
Já no parque de estacionamento, Fernando abriu o BMW fazendo
sinal a Sara para entrar. No caminho foi explicando a Sara quem era e o que
estava a fazer para auxiliar a judiciária. A rapariga ouviu tudo e nada
comentou mantendo-se em silêncio até chegarem à polícia.
Já no gabinete de Anselmo, depois de se abraçarem, o polícia
chamou Tobias.
− Leva esta senhora e arranjem-lhe um quarto. Vai ser nossa
hóspede por uns tempos, mantê-la-emos informada do que se passar. Garanto-lhe
que vamos encontrar Alberto e caçar esses meliantes.
Depois de levarem Sara, Anselmo voltou-se para Fernando,
dizendo:
− Pena as coisas não terem corrido tão bem como queríamos.
− Pois foi. Deram-me forte e feio e acabei por não ser muito
útil para o Alberto, mas se não estivesse lá teria sido muito pior e agora
vocês não sabiam o que acontecera ao homem.
− Vai a casa, sossega a Mariana, toma um banho e volta para
aqui. Quando localizarmos os gajos vais connosco. Vou também preparar o Antunes
para nos acompanhar. Como agora já há um crime de morte, também estou no caso.
− Então até já. Volto rápido.
Fernando chegou a casa e não estava ninguém. Mariana ainda
não tinha saído da faculdade e teria de ir buscar os miúdos à escola. Tomou um
banho, vestiu-se decentemente e preparava-se para sair quando chegaram.
− Então caro “Watson” , como
correm as tuas investigações?
Fernando agarrou-a pela cintura e pregou-lhe um prolongado
beijo.
− Mal, muito mal. Não encontrei ainda a heroína dos meus
sonhos e vim até aqui para te levar.
Mariana libertou-se fingindo que lhe batia.
− Aldrabão! Só te sentes bem longe de mim, ainda peço o
divórcio por abandono do lar. Qualquer dia os teus filhos nem te conhecem.
Francisco e Isabel olhavam a cena enternecidos. Sempre
estiveram habituados à ternura do pai e da mãe que nunca lhes esconderam,
erotismo e amor que sentiam um pelo outro. Correram para os dois e abraçaram-se
os quatro.
− Pai. Já tínhamos saudades. Por onde andaste?
− Depois conto-vos tudo. Agora tenho de ir rapidamente até à
judiciária ter com o Anselmo. Estamos a meio de uma investigação muito
importante e se não actuamos agora pode ser a morte do artista. Certamente
estarei cá ao jantar. Conto com isso, mas nunca se sabe. Depois comunico. Adeus
aos meus três amores.
No caminho para a judiciária, Fernando já pensava no nome que
iria dar ao seu próximo livro. “O Caso do Sem-abrigo” parecia-lhe bem.
XIII
O Toino e o Franzino entraram na Garagem com a carrinha. Lá
dentro esperavam-nos o “Hércules” e Razvan sentados junto da bancada.
Abriram a porta traseira da carrinha e Alberto saiu de mãos
amarradas com o casaco pelos ombros. Felizmente os bandidos tinham-lho posto
pelas costas quando lhes disse que não poderia sair sem ele, uma vez que era
atreito a constipações e alergias quando apanhava frio. Durante o trajecto
tentara apertar o localizador, mas as mãos amarradas atrás das costas não lhe
deram qualquer hipótese. Assim que tivesse oportunidade tentaria.
Os homens abriram a porta do gabinete em frente e Alberto viu
a mulher e os filhos. O rapaz correu para ele, mas foi agarrado antes de poder
tocar-lhe.
− Larguem o meu pai. Ele não fez nada. Deixem-no.
Alberto ficou petrificado. Os tipos tinham-nos apanhado. E
agora? Seria obrigado a falar ou então fariam mal à sua família.
− Que querem de mim e dos meus? Eu nada tenho. Fiquei sem
emprego, sem ocupação e com uma firma falida. Resolvi viver na rua para dar
mais liberdade e possibilidade de sobrevivência à família. Deixem-nos em paz!
O Toino aproximou-se e deu-lhe um estalo com as costas da mão
pondo-lhe um lábio a sangrar.
Razvan levantou-se e começando a dar passos com as mãos atrás
das costas, falou:
− Não te armes em parvo. Só queremos saber onde guardaste a
massa.
− Qual massa? Não sei do que falam.
Levou outro estalo na boca e desta vez mais forte. A
violência do estalo fê-lo dar dois passos atrás. Maria Clara soltou um grito
abafado e apertou os filhos contra si. Razvan continuou:
− Sabemos que estavas debaixo do viaduto quando atirámos com
o saco para lá. O que lhe fizeste?
− Quando foi isso? Já não estou no mesmo sítio desde a semana
passada. Estava a ser demasiado conhecido e não me deixavam em paz. Mudei para
o outro lado da cidade. Não sei do que falam.
Razvan olhava o homem tentando perscrutar-lhe o interior. Não
sabia se falava verdade, mas estava convencido de que não. Realmente não era
ele que estava no local e o que estava lá morreu sem nada dizer, mas pelas
perguntas que fizeram por ali, o sem-abrigo intelectual ainda estaria naquele lugar
quando do assalto. Tinha que ser ele. Continuou, com aquele sotaque meio
afrancesado:
− Sabemos que eras tu que lá estavas. Apanhaste a massa e
piraste-te. Temos de dar conta dela aos tipos acima de nós para quem
trabalhamos. Se não falares, a tua mulher e filhos vão sofrer.
A cabeça de Alberto fervilhava com os pensamentos a cem à
hora. Tinha de lhes dar qualquer coisa senão os seus seriam molestados e ele
não aguentaria isso. Tinha urgentemente de encontrar uma solução para premir o
localizador, depois seria uma questão de tempo até a polícia aparecer. Lá fora
não ficara ninguém, os salafrários estavam convencidos que o esconderijo era
seguro e não tomaram providências, não seria difícil libertarem-nos a polícia
tinha métodos modernos de actuação e certamente tomariam providencias para não
ferir ninguém.
Resolveu mudar de táctica e tomou uma decisão.
− Bem. Sei quando estou a perder. Escondi a massa num cofre
da estação do Rossio, mas a chave está na casa onde me apanharam. Vou levá-los
lá, mas gostaria primeiro de estar só com a minha mulher e filhos. Dêem-me meia
hora sozinho com eles.
− Tens dez minutos. Entra para o gabinete.
Alberto virou-se para que lhe tirassem as cordas dos pulsos.
O Franzino olhou para Razvan e este fez que sim com a cabeça.
− Vistam-me o casaco. Estou com frio e se apanho uma
constipação já não consigo sair daqui. Sou alérgico e chego a desmaiar.
Depois de solto, Alberto entrou no gabinete levando a mulher
e os filhos à sua frente. Entretanto apertara o localizador.
Depois da porta fechada fez sinal de silêncio com o dedo à
frente da boca e abraçou Maria Clara.
− Vamos ficar aqui até nos virem buscar. – Sussurrou. − Preciso
que nessa altura simules um ataque de histerismo e faças uma cena
verdadeiramente espectacular e convincente. Acabei de dar um sinal para a
polícia e temos de lhes dar tempo. Se nos levam daqui já será mais difícil para
os bófias nos salvarem.
Já lá ia um quarto de hora quando abriram a porta e levaram
Alberto à força. Maria Clara atirou-se a eles gritando e chorando. Quando a
empurraram, deixou-se cair e simulou um ataque.
− Que fazemos? Esta gaja ainda nos morre para aqui e estamos
metidos em mais sarilhos. – Disse o Franzino.
Razvan não se deixou levar por aquela cena.
− Deixem-na. Isso passa-lhe.
Meteram Alberto na carrinha com o “Hércules” ao volante.
Razvan empurrou Alberto para o meio e fechou a porta.
− Os teus ficam aqui com o “Franzino” e o Toino. Se tentares
alguma coisa eles têm ordens para tratar deles um de cada vez e, não penses que
é balela pois já o fizemos mais do que uma vez e mais uma menos uma não faz
qualquer diferença.
Alberto estremeceu. Se acontecesse alguma coisa a Sara e aos
miúdos nunca se perdoaria. Sabia que o localizador estaria a emitir e
certamente iriam segui-los. Teria de ganhar tempo.
Chegaram à viela e Alberto entrou em casa seguido pelos dois
homens que deixaram a carrinha a trabalhar.
Já dentro de casa foi até à dependência onde tinham passado a
noite. Ajoelhando-se junto do rodapé, fingiu que estava a procurar. Percorreu
toda a sala à volta e depois começou a levantar os cartões onde dormiram.
Voltou ao rodapé e tornou a fingir que procurava.
− Então essa chave aparece ou não? – Disse o Toino já
agastado
− Não a encontro. Tinha-a colocado aqui entre o rodapé e a
parede, mas não está cá. Naturalmente devo tê-la metido no bolso e perdi-a.
Agora vai ser uma chatice. Sei que o cofre era o nº 60, se formos ao chefe da
estação ele certamente poderá dar ordem para o abrir.
− Nem pensar. Isso dará muito nas vistas e poderá levantar
suspeitas. Além do mais vai ser preciso preencher papelada e não queremos
deixar rastos. Aqui o “Hércules” é perito em fechaduras e tratará disso sem dar
nas vistas. Vamos.
Arrastaram Alberto e meteram-se na carrinha direitos ao
Rossio.
Alberto esperava que a bófia aparecesse a tempo. Caso
contrário…
XIV
Maria Clara e os miúdos estavam de novo encerrados no
gabinete. O pequeno Francisco, em cima da cadeira, espreitava os dois meliantes
que tinham ficado de guarda. Jogavam placidamente às cartas. Um ruído leve,
acima das suas cabeças, fê-lo olhar para a parede contrária. Um homem tentava
cortar o vidro abaixo do telhado, com um diamante de vidraceiro. Dali não
seriam certamente os bandidos.
Assim que uma abertura lhe permitiu a passagem, Fernando
meteu a cabeça e sorrindo fez-lhes sinal de silêncio, depois, mostrando uma
destreza de ginasta, segurou-se a uma viga, pendurou-se e deixou-se cair sem
ruído.
Sussurrando, informou-os de que a polícia iria entrar pela
porta da frente e depois estariam livres.
Maria Clara perguntou por Alberto. Fernando sossegou-a.
Estavam a tratar do assunto e dentro da situação.
Ouviu-se um estrondo e a porta ondulada da garagem saltou
para cima dos carros. Uns dez agentes, aproveitando a surpresa, entraram de
armas aperradas e caíram em cima do Franzino que tentava tirar a arma do cós
das calças. O Toino correu para a porta do gabinete e abriu-a, mas foi recebido
com um tremendo murro de Fernando que o atirou inanimado para os braços de um
agente.
− Boa Sr. Fernando vejo que além de ginasta também é bom no
boxe. O Inspector Anselmo é um homem de sorte por ter um amigo assim que o
ajuda.
Fernando sorriu.
− Procuro manter-me em forma, ajudar os amigos é o meu lema.
A propósito, onde pára o Inspector?
− Vai atrás dos tipos que levam o Alberto, devem estar a
chegar ao local onde pensam prendê-los. Nós somos da intervenção da PSP que foi
por ele requisitada. Já o conhecemos bem e gostamos de trabalhar em conjunto.
− Ainda bem. Vou levar a senhora e os meninos à judiciária e o
Inspector que me ligue e me indique em que local estão. Espero chegar a tempo.
…
Anselmo seguia os bandidos três carros atrás do deles.
Acompanhavam-no Tobias e dois agentes da brigada de capturas. Numa carinha
atrás, sem qualquer identificação, seguiam 6 agentes da brigada anticrime da
PSP.
A carrinha dos bandidos estacionou numa abertura, meio no
local próprio, meio na passadeira de peões. Pelos vistos devia ser carro
roubado pois não se importavam com as multas. Os dois homens seguiram com
Alberto no meio e dirigiram-se à estação até ao sítio dos cofres. Pararam junto
ao nº 60 e o Toino tirou do bolso um molho de chaves e gazuas. Razvan ficou com
Alberto e olhava de soslaio para todos os lados. Não havia, felizmente, grande
movimento na área e os poucos passantes nem olhavam para quem estava. Alberto
dizia mal da sua vida. Os tipos iam abrir o cofre e depressa verificariam que
tudo não passara de mentira. Esperava que, entretanto, a polícia já tivesse
libertado os seus. Se morresse também não faria grande falta, mas Maria Clara
ficaria pior com a pensão diminuída.
Ouviu-se uma voz num megafone: “Polícia! Fiquem onde estão
com as mãos no ar e não tentem qualquer movimento. Estão cercados!”
Razvan que, entretanto, se voltara para observar a actividade
do Toino, rodou e tentou levar a mão à arma. Alberto atirou-se para o chão.
Ouviu-se um único tiro. Razvan deu meia volta atirado ao chão pelo choque da
bala. Acertaram-lhe num ombro fazendo saltar a pistola que segurava. Toino mantinha
as mãos no ar e olhava boquiaberto para Razvan. Donde teriam saído os bófias?
Não dera por nada.
Depois dos bandidos manietados, Anselmo foi ter com Alberto.
− Olá. Parece que a cavalaria, desta vez, chegou a tempo. A
sua mulher e filhos estão na judiciária à sua espera. Alberto começou a chorar
e deixou que o Inspector lhe passasse um braço pelos ombros.
Uns paramédicos de uma ambulância do INEM chegaram e cuidaram
do ferimento de Razvan. Dois polícias acompanharam-no na ambulância. Toino,
devidamente manietado, foi conduzido pelos agentes da PSP. Lá fora um dos PSP
tomou conta da carrinha.
Alberto seguiu no carro com Anselmo.
Tobias conduzia sorridente.
− Chefe. Esta operação foi um êxito.
− Pois Tobias, até aqui tudo correu bem, mas ainda temos
muito que trabalhar. Estes não são os peixes graúdos. Parece-me que haverá
gente importante atrás de tudo isto. O dinheiro roubado era “massa” que estava
para ser transportada para o banco de Portugal. Só alguém graúdo poderia estar
a par desta operação. Teremos de apertar estes gajos até descobrirmos. Não vai
ser fácil. Normalmente só um conhece quem está acima e mesmo esse pode não ser
o cabecilha. Às vezes até ninguém os conhece. A nós só nos cabe saber quem
despachou o vagabundo lá no viaduto. Para o Antunes ainda vai haver muito
trabalho. Nós dar-lhe-emos a nossa ajuda possível.
XV
Três meses depois Anselmo e Fernando almoçavam no restaurante
com as respectivas companheiras.
− Os vossos miúdos, onde estão?
− Com os Avós. – Respondeu Mariana. – Passam lá o fim-de-semana
para matarem saudades e brincarem com os cachorros como de costume. Aqueles
cães são os companheiros de brincadeiras lá na quinta.
O caso do sem-abrigo veio à baila.
− Então como é que estão as coisas sobre o assalto ao banco?
Já se sabe quem foram os mandantes? – Perguntou Fernando.
− Ainda não. O julgamento dos quatro meliantes é já para a
semana e os tipos ainda estão em prisão preventiva. O “Hércules” vai responder
pela autoria material do crime do outro sem-abrigo e o Toino por tentativa de
homicídio na pessoa do segurança do banco. Razvan responde pela
responsabilidade dos actos pois chefiava o grupo. Foram todos acusados de
associação criminosa. O Franzino é o que tem menos acusações. É um pobre diabo
que só faz o que lhe mandam e mal.
− E o que disseram sobre os mandantes?
− Nada. Continuam a dizer que a ideia foi deles. Pensamos, ou
por outra, estamos certos, que mentem. Vamos esperar pelas sentenças. Depois
poderemos jogar com a oferta de alguns perdões se contarem a verdade. Normalmente
essa táctica dá frutos.
− Hum…! Não me cheira. Estes romenos são duros de roer e não
dão facilmente com a língua nos dentes.
− Vamos a ver. – Disse Anselmo não muito convicto.
− E o Alberto? Perguntou Ana. – Voltou para casa?
− Voltou. A mulher conseguiu convencê-lo. Parece que se
ofereceu para lhe comprar um computador com as suas poucas economias. O tipo é
um bom informático e tem conseguido arranjar uns trabalhitos através da
Internet. Está a ter sucesso e a ganhar uns dinheiritos. Já pagou o computador
à mulher e qualquer dia tem de arranjar uns tipos para trabalharem com ele. Já
não dá vazão às encomendas.
As duas mulheres sorriam de satisfação. Nada melhor do que um
caso de amor que acabe em bem.
− E a Sara? Que lhe aconteceu? – Perguntou Mariana?
− A Sara, assim que soube que a família de Alberto estava na
judiciária à espera dele, pediu para se retirar e voltou para as ruas.
Deixou-lhe apenas o livro que estava a ler e Alberto lhe emprestara. Alberto
contou-me em segredo que mantiveram uma curta relação, mas nada ia contar à
mulher. Seria muito doloroso para ela. Maria Clara também não lhe fez perguntas
sobre o tempo que estivera fora. Achou que não tinha o direito de o traumatizar
com isso. Enfim, parece que tudo acabou em bem. Para eles, claro, porque para
nós ainda estamos a meio. Temos que chegar ao fim disto.
Acabando de tomar os cafés, pediram a conta pagando a meias.
Tinham decidido que entre os quatro seria assim. Como o faziam muitas vezes,
não dava jeito nenhum hoje pagas tu amanhã pago eu.
Despediram-se e cada casal foi para sua casa. Já no carro,
Fernando e Mariana continuaram a falar do caso.
− Vê lá tu, Fernando, como são as coisas. Um homem anda uns
meses fora de casa e tem de se envolver logo com outra, naturalmente a mulher,
que foi abandonada, não se envolveu com ninguém.
− Não o sabemos. – Disse Fernando. – Mas é bem provável que
não. As mulheres são bem mais fortes. Suportam muito melhor a solidão e não se
deixam levar com facilidade. Já os homens, quando sós, ficam completamente
perdidos, como garotos abandonados na rua. Se aparece alguém que os acarinhe,
facilmente se deixam envolver e o sexo surge sem que vejam nisso traição. Estou
quase ciente que Alberto nunca deixou de gostar da mulher. Sara foi um apoio,
um porto de abrigo.
− Pois meu descarado. Naturalmente fazias o mesmo, meu
sem-vergonha.
− Eu? Nunca te deixarei. Vais ter que me aturar até ser
carqueja e enrugado. – Disse Fernando metendo-lhe a mão na perna com bastante à
mostra, pelo subido da saia quando se sentara.
− Está quieto, meu safardana. Vocês são todos farinha do
mesmo saco.
Fernando encostou o carro junto ao passeio e abraçou a mulher
beijando-lhe os lábios com sofreguidão.
− Deixa-me chegar a casa e já vais ver com que mulher vou
fazer amor.
Mariana deixou-se levar agarrando-o por trás do pescoço e meteu-lhe,
despudoradamente, uma mão entre as pernas.
Em casa, entraram a olhar ternamente um para o outro, mas com
uma centelha de erotismo nos olhos, despiram-se, foram para a casa de banho e
depois de lavados caíram na cama abraçados num longo beijo.
Entregaram-se completamente, sem tabus nem restrições. Sem as
crianças em casa podiam dar largas a todos os excessos. Aproveitaram. Duas
horas depois, exaustos, deram um beijo apagando a luz.
XVI
Fernando, aproveitando o fim-de-semana, levantou-se cedo
deixando Mariana a dormir. Depois de tomar banho, vestiu um fato de treino e
foi dar uma volta pela cidade. Gostava de deambular pelas ruas olhando as
pessoas com quem se cruzava. Foi assim que conseguiu a maioria das ideias que
complementaram os livros que escrevia. Sabia que não tinha grande talento para
a literatura e como tal, uma vez que gostava de escrever, dedicara-se ao
romance policial. O reencontro com o seu amigo Anselmo, companheiro do liceu,
agora inspector da judiciária, proporcionara-lhe ter vivido e continuar a viver
casos reais. Cogitava na vida e no porquê das pessoas enveredarem pelo caminho
do mal e da podridão. Não aceitava, mas compreendia que o homem pudesse
enveredar, muitas vezes pelo caminho da violência. O Ciúme, os desencontros
amorosos, as traições, as palavras amargas, poderão fazer um ser humano
exorbitar e entrar em violência verbal e até física, mas viver do mal dos
outros? Assenhorearem-se do alheio? Matar por prazer? Violar? Maltratar crianças?
Como era possível? Nestas alturas vinha-lhe à cabeça que a maioria dos
indivíduos que assim procediam eram os chamados tementes a deus. Cometiam os
maiores pecados e depois corriam até a um padre confessando-se e obtendo uma
absolvição que os consolava, até uma próxima vez.
Para ele, a ideia de deus era inconcebível, tão inconcebível
como o fantasma da sua avó andar lá por casa a tomar conta de tudo e todos
programando a vida deles. A maioria das pessoas crê num deus pessoal que tudo
vê, tudo controla, tudo programa. Alguns intelectuais, não acreditando nisso,
acham que ao homem foi dado o livre arbítrio, mas que existirá um deus cósmico,
muito acima dos humanos, que com a sua batuta rege os princípios universais. Os
maçónicos, normalmente anticlericais, chamam-lhe o grande arquitecto. Carl
Sagan diz, “isto é um mundo de idiotas”. Ao conhecer-se cada vez mais o
universo, ficamos com consciência que a terra é um grão de areia no cosmos. Por
que raio havemos nós de ter um deus? O que faz ele nos planetas desabitados? O
que fez ele durante os milhares de milhões de anos em que não houve seres
humanos? Pois! A mente humana tem muita força e cria deuses para se poderem
perpetuar além da morte. Não aceitando o fim de tudo, criam uma outra vida obra
de deuses. Estava farto de dizer isto, mas tirando a família e meia dúzia de
amigos, os outros olhavam-no como se do demónio em pessoa se tratasse.
Parou a observar um melro que transportava matérias de
construção para o seu ninho. Aqui estava a natureza e as suas leis. Todos os
seres tratavam da sua reprodução e não precisavam de deus para nada. Só o
homem, na sua ignorância, o criara.
Assobiando baixinho reparou que já estava bastante longe de
casa. Mariana já devia ter acordado e tinha que tomar o pequeno-almoço com ela.
Estugou o passo, mas o seu cérebro continuou a pensar.
Este último caso do sem-abrigo ainda não terminara. Havia
mandantes e certamente grandes tubarões. Será que lhes conseguiriam chegar?
Lembrou-se que, durante os interrogatórios, o “Hércules” demonstrara alguma
animosidade contra o Razvan. Este era o chefe do pequeno bando, o estrangeiro
com a mania de em tudo mandar, aquele que acha que tudo sabe e é o mais
inteligente. O Toino e o Franzino eram tipos menores, pouco inteligentes e
incultos. Este “Hércules” era mais vivo, esperto e senhor de alguma sabedoria.
Pensou; “vou telefonar ao Anselmo para explorarmos esta rivalidade”. Ligou o
telemóvel.
− Está, Anselmo? Olá rapaz. Andava aqui a fazer um pouco de
caminhada e lembrei-me de saber se por acaso já exploraram a rivalidade
existente entre o Razvan e o “Hércules”?
− Como sabias que eu estava por aqui? Apesar de ser domingo
dei cá um salto para pôr papéis em ordem Estás-me a sair cada vez mais um
“Watson” precioso. Quanto ao que me perguntas, ainda não o fizemos, mas já
tinha pensado nisso. Segunda-feira é o julgamento. Após as sentenças vamos
apertar com eles. Talvez a promessa de redução de penas dê resultado, mas não
me cheira muito, o Razvan é macaco velho e não acredito que tenha posto os
outros ao corrente do nome do ou dos mandantes máximos. Até talvez nem ele os
conheça. Vamos a ver. Depois da faculdade passa pela “judite”. Conversaremos sobre
o assunto.
Após desligar, Anselmo pensou que teria de falar ao Antunes.
Segunda-feira logo de manhã, bateu à porta do gabinete do seu
colega e entrou.
− Olá rapaz, como vai o caso do assalto ao banco? Tens novos
indícios ou está tudo na mesma?
− É melhor quando as investigações andam cá por baixo. Tenho
mais êxito junto dos bandidos de meia tijela, do que quando nos metemos com
tubarões da alta. Aí tudo empanca. Refugiam-se atrás de todas as influências,
inclusive das leis. Estas já são elaboradas à medida deles, e como há dinheiro
para pagar a bons advogados, não lhes conseguimos chegar. Falei com todo o
mundo lá do banco. Informei-os que só dali podia ter saído a informação do
transporte daquele dinheiro. Deixaram-me interrogar toda a gente, mas nada deu
resultado. Havia montes de gente a saber do facto. Desde directores a chefes da
segurança e guardas. Agradeceram muito à judiciária o ter apanhado a massa tão
rapidamente. Informei-os que fora um tipo, que nada tinha a ver connosco que,
devido à sua honestidade, nos entregara a massa que os bandidos abandonaram
quando foram perseguidos. Parece que há umas alvíssaras para o tipo. Acho que
devias informar o tal Alberto para passar por lá.
− Isso são óptimas notícias, se há tipo que merece esse é um
deles. Assim que puder passo por lá. Quanto é o prémio?
− Julgo que 1%. Devem ser cerca de uns 30000 euros, o que já
vai ajudar bastante o rapaz a refazer a vida.
− Boa. Vou passar lá hoje ao fim do dia. Talvez até o
acompanhe ao banco, se tu não quiseres ir, claro.
− Ok. Vai tu com o tipo. Eu estou farto deles.
− Então vou. Depois conto. Até logo ou até amanhã.
XVII
Alberto acabou o que estava a fazer e desligou o computador.
Pensava na sua mulher e como fizera bem em regressar a casa. Aquela aventura
fizera-o reconsiderar. Por pior que as coisas parecessem, deveriam enfrentar
juntos as adversidades. Maria Clara era uma mulher fantástica. Soubera reagir
ao mau momento que passara após o seu abandono. Agora ajudara-o e não fizera
perguntas. Aquele interregno seria para esquecer. Pensou em Sara. Onde estaria?
Continuaria lá na casa abandonada? A sua relação com ela fora uma espécie de
prémio de consolação, mas não deixara marcas. De qualquer modo haveria, um dia
destes, de a procurar.
O ter voltado também para junto dos filhos foi como acabar
com um sufoco. Era como naufragar e ter conseguido atingir a praia. Os miúdos
também não cabiam em si de contentes e rodeavam-no de atenção e carinhos
Resolveu sair e passar no centro comercial. Almoçaria com
Maria Clara.
Tocou o telefone e Alberto atendeu.
− Está? É o Sr. Engenheiro Alberto Moura?
− O próprio.
− Olá Alberto, daqui Anselmo.
− Ah! Inspector. Como vai?
− Tudo bem, precisava falar consigo. Posso passar aí em casa
lá pelas 18H30?
− Temos muito gosto. Se poder traga o Fernando. Gostava de o
voltar a ver. Além de meu colega, foi um excelente guarda-costas e devo-lhe
muito.
− Vou ligar-lhe. Se ele puder acho que também fará muito
gosto em revê-lo. Então até às 18H30.
− Cá os esperarei. Até logo.
Anselmo e Fernando tocaram à porta de Alberto eram precisamente
18H30. Maria Clara recebeu-os efusivamente beijando os dois homens.
− Os meus dois salvadores. – Uma lágrima brilhava-lhe no
canto dos olhos.
Alberto apareceu em seguida abraçando-os comovido. Os filhos
do casal, ligeiramente atrás, esperavam a sua vez de cumprimentarem os
recém-chegados.
− Vamos sentar-nos e tomar um aperitivo. O que é que bebem? –
Perguntou Alberto.
Levaram-nos para uma salinha modesta, mas decorada com muito
bom gosto. Maria Clara serviu as bebidas numa mesa de centro frente a um “maple” duplo, onde os convidados se
sentaram. Alberto ocupou um “maple”
individual e Maria Clara puxou para junto deles, um cadeirão de braços.
Anselmo iniciou a conversação; − Então como correm as coisas?
Contente pelo retorno a casa?
− Olhem, amigos, se tudo se tivesse passado agora, nunca
faria o que fiz. Cheguei à conclusão que as dificuldades são para passar a
dois. Foi o medo de deixar mal os meus, que me levou àquele desespero. Agora as
coisas estão a resolver-se graças aqui à minha doce Maria Clara.
Ao dizer isto, Alberto tomou a mão da mulher e beijou-a,
deixando-a sem jeito e ligeiramente enrubescida.
− Ainda bem que tudo acabou da melhor forma – disse Anselmo.
– Temos uma enorme novidade a dar-lhes. Vão receber um prémio do banco. É de 1%
sobre o montante recuperado, o que ainda dará uma boa maquia. Penso que, não
sendo uma fortuna, dará para refazerem a vossa vida.
Alberto e Maria Clara ficaram com cara de espanto e nada
conseguiam dizer.
− Então? – Exclamou Fernando. – Não precisam ficar assim. É
um valor que premeia a honestidade. É um exemplo para outros. Nos tempos que
correm muito poucos, ou mesmo ninguém, fariam o mesmo.
− Só fiz o que achei justo. Confesso que a ideia de ficar com
o dinheiro me passou pela cabeça, mas depois a consciência não me deixou.
− Ainda bem que não o fizeste. – Referiu Maria Clara. – Seria
difícil viver com esse peso. Além de que seríamos perseguidos por esses
bandidos e não poderíamos recorrer à polícia. Não teríamos estes amigos para
nos defender.
Anselmo continuou. − O banco vai marcar um dia para fazerem a
entrega do cheque. Eu e Fernando gostaríamos de estar presentes. Vão estar
reunidos todos os administradores e directores e, profissionalmente, terei todo
o interesse em observá-los. Talvez algum deixe escapar algo que nos dê qualquer
indicação importante.
− Porquê? Pensam que alguém do banco estará por detrás de
tudo isto?
− Não pensamos, temos a certeza. Só que não sabemos se é
alguém graúdo ou miúdo. Cá para mim deve ser um dos grandes. Quando receber a
comunicação do dia e hora do acto, entre em contacto. Depois seguiremos juntos.
Penso que deve ir só. Não convém misturar nisto a sua mulher. Não podemos
dispersar a nossa atenção.
− Bem, vamos acabar os nossos “whiskys” e depois vamos embora. – disse Fernando. – Tenho a Mariana
e os miúdos à espera para jantar.
− Pensei que quisessem jantar connosco. – Disse Maria Clara.
– Fiz um rolo de carne que dá para todos. Não querem ficar?
− Obrigadíssimo. Teríamos muito gosto, mas não vínhamos a
contar e as nossas mulheres esperam-nos em casa. Teremos outra oportunidade.
− Então vai ficar já assente. – Disse Alberto. – Depois de
receber o prémio convido-vos, e as vossas lindas mulheres para jantarmos num
restaurante que escolherei. Combinado?
− Claro que aceitaremos. E agora vamos.
Levantaram-se e despediram-se. Alberto chamou os garotos que
educadamente vieram até à porta despedirem-se também.
Já na rua, os dois amigos comentavam que tinham tido a sorte
de conhecer uma excelente família. Iria ser bom continuar com aquela amizade.
XVIII
Razvan, na sua cela, pensava apenas na oportunidade de
evasão. Não tinha saído da Roménia para vir acabar os seus dias numa prisão
portuguesa.
Lá, na terra natal, os tempos tinham-lhe sido adversos. Os
seus pais nunca conseguiram passar da cepa torta e viveram quase em miséria
permanente. Apesar das propagandas de Nicolae Ceausescu, a Roménia nunca passou
de um país atrasado e pobre governado por uma ditadura. Lembrava-se de querer
trabalhar e não ter onde. Saíra da escola e começara a roubar para levar alguma
coisa para casa. Vira a sua irmã prostituir-se para conseguir comer e ajudar os
pais. Resolvera sair de lá e ainda bem que o fizera. Aquela colagem à União
Soviética não trouxera as benesses que tinham sido apregoadas. Em Lisboa as
coisas tinham corrido bem até ali. Agora estava preso e ninguém se estava a
interessar por ele. O mandante estava a fugir às suas responsabilidades.
Contratara-o, tinha de lhe dar apoio. Ai dele que não o fizesse. Levaria o
tempo que fosse preciso para se vingar. O tipo talvez pensasse que ele não
fosse capaz de o identificar. Lembrava-se perfeitamente de quem o foi
contratar. Depois das coisas acordadas seguira-o e identificara a pessoa com
quem fora ter. Era um director bem considerado no banco, pelo menos assim
parecia. O tipo deveria ter ânsias de enriquecimento rápido e planeara aquele
assalto com bastante pormenor, mas as coisas nunca são exactamente como se
pensam. Às vezes, ou quase sempre, há imponderáveis. Não tivera tempo de
arregimentar pessoal bem “credenciado”. Os tipos que conseguira reunir eram
fracalhotes de cabeça e viu-se o que deu. Se não tem havido aquele tiro, não se
tinha dado a confusão e não haveria a oportunidade, como se verificou, de terem
accionado o alarme. Logo haveriam de ter atirado o maldito saco do dinheiro
para cima de um sem-abrigo intelectual. Mas aquilo tudo não ficaria por ali. Tinha
de fugir e o melhor era começar a engendrar um plano de fuga. Sabia que o
“Hércules” também estava preso naquela ala. Não confiava muito nele pois via-se
que o gajo tinha a “pedra no sapato” quanto à sua liderança, mas não tinha
outro aliado e sempre era melhor contar com um tipo esperto e inteligente, além
de que era forte e desenrascado. Contaria com ele para a fuga. Os outros dois
eram atrasados mentais, mais valia nada lhes dizer. Na primeira oportunidade
contactaria com o matulão. Dormiria sobre o assunto. De manhã tomaria uma
atitude. Muito cedo chamaram-no para interrogatório. No corredor viu o
“Hércules” a entrar para o gabinete contíguo. Na sala dos interrogatórios
estava o inspector Antunes. Não lhes diria nada. Continuaria a manter a versão de
que o assalto tinha sido da sua iniciativa. Hora e meia depois, como se não
alterasse o seu depoimento, levaram-no para outra sala onde o deixaram só.
Pouco depois introduziram lá o “Hércules” e voltaram a sair. Razvan conhecia a
técnica. Juntavam os dois para que começassem a conversar e deixassem escapar
alguma coisa. Razvan sentou-se de costas para o vidro que ele sabia ser um
espelho transparente. Com os dedos fez sinal ao “Hércules” que percebeu a
mensagem. Falaram de trivialidades, mas “Hércules” percebeu de que teriam de
voltar a falar e de assuntos sérios. Após uns trinta minutos vieram busca-los e
levaram-nos para as suas celas. À noite Razvan foi transferido para a cela do
“Hércules”. Lá estava o processo, ficariam juntos até se denunciarem. Razvan
fez uma inspecção rápida à cela e certificou-se que não havia espelhos, mas
sabia que certamente estariam lá uma ou duas câmaras escondidas. Haveria de dar
com elas e eliminá-las-ia.
XIX
O Dr. Carlos Vidal era um homem na casa dos cinquentas e tal
anos, alto, desembaraçado, cabelo todo branco e olhar vivo. No banco, como
director, era apreciado pela administração pela sua competência, mas não muito
querido pelo pessoal. Demasiado austero, não se ligava em demasia aos
empregados e falava-lhes com alguma altivez. Para algumas empregadas,
principalmente para as mais vistosas era ele bem atencioso roçando as raias do
atiradiço.
Sentado na secretária de mogno, olhava fixamente o computador
procurando as notícias na Net. Já há uns dias que não falavam do roubo e isso
preocupava-o. Como director responsável pela transferência do dinheiro para aquela
agência, sabia que estava na mira dos detectives da PJ. Os tipos eram espertos
e tinham muita experiência. Teria de ter muito cuidado para não se trair
perante eles. Tinha de mostrar muito tacto. O facto de não ter tratado
directamente com os executantes, dava-lhe uma certa segurança e o seu homem de
confiança nunca o trairia. Carlos Vidal estava perto da reforma e pensava sair
aos sessenta. Levaria para casa uma boa pensão, mas muito pouco para as suas
ambições. Contava com o dinheiro roubado para a sua velhice sem problemas e com
uma boa vida. O divórcio iria deixá-lo quase falido. A sua mulher, como boa
advogada, certamente aproveitaria as suas traições para tramar-lhe a vida. Iria
exigir-lhe couro e cabelo e não teria outro remédio senão ceder. A filha apoiava-a,
iria ficar só. Agora, pensava no azar que tivera. O seu fiel Abelardo falhara
na contratação do pessoal. Foram completamente ineptos e perderam a massa. Teria
de dar outro golpe. Da próxima vez não poderiam falhar.
Levantou-se e dirigiu-se ao gabinete contíguo onde a sua
secretária punha os arquivos em ordem;
−Joana faça o favor de ligar ao Presidente do Conselho de
Administração e pergunte-lhe se me pode receber o mais depressa possível.
Carlos Vidal poisou a cabeça nas mãos e reviu toda a sua
vida. Fizera tudo ao contrário. Chegara a um bom lugar no banco e ganhava bem,
mas não chegara para a mulher por quem se apaixonou. Bela, elegante, de boas
famílias, habituada a tudo o que era bom sem nunca ter tido faltas na vida.
Cedo começou a pedir-lhe dinheiro além do que lhe colocava na conta à
disposição. E não era tão pouco como isso. Mas nunca chegava. De nada valia
falar com ela e dizer-lhe que estavam a gastar em demasia. – “Sabes que estou
habituada a ter uma boa vida, não casei com um bancário bem colocado para
passar de cavalo para burro”. Carlos não conseguia dizer-lhe não, o dinheiro ia
saindo mais do que entrava e em breve começaram as dívidas. A vivenda, os três
carros, as férias no hotel do Algarve, a filha já a querer vestir como a mãe e
estimulada por esta, gastava sem restrições. Alguns empréstimos foram suprindo
as faltas quando as reservas acabaram. Mas tinha de estoirar. Pensara muito
antes de se meter no golpe que preparara, mas, entretanto, Laura pedira o
divórcio. Já o apanhara em escapadelas. As mulheres apanham os homens pelo
“cheiro”. Cheira-lhes e pronto. Carlos notara-a esquisita e esquiva já há uns
tempos. Na cama já não se encontravam com tanta frequência e percebia-se um
afastamento. Mandara segui-la e foi confrontado com a realidade. Laura
arranjara um amante. Soubera tudo sobre o outro. Mais novo dois anos do que
ela, era filho de um milionário com lugar nos conselhos de administração de
várias firmas da indústria eléctrica pesada. O pior de tudo é que Laura
aproximara a filha do outro. Saíam juntos e pelo que lhe disseram a rapariga
parecia dar-se muito bem com o tipo. Confrontara Laura com a verdade e ela não
negou. Friamente pediu o divórcio e disse-lhe que a filha ficaria a viver com
ela. Prepara tudo muito bem. Carlos Vidal portou-se com dignidade. Só disse: –
“Tudo bem, mas têm que sair já hoje”.
Quando Joana entrou para lhe dizer que o chefe máximo estava
pronto para o receber, levantou-se de um salto sem saber muito bem onde estava.
Deixara-se levar pelas suas cogitações.
Entrou no gabinete do presidente do conselho de administração
sem bater à porta. Monteiro Castro, banqueiro desde que lhe cresceram os
dentes, era seu amigo e sempre o tratara quase como filho.
– “Olá Carlos! Que te traz por aqui. Estás com má cara. Que
se passa?”
Carlos Vidal sentou-se e, lentamente, foi pondo o amigo ao
corrente do que se estava a passar com a sua família. Quando acabou Monteiro
Castro estava de sobrolho franzido.
– “Achas que tem mesmo de ser assim? Não poderá haver uma
reconciliação?
– “Depois de tudo isto já não é possível. Nunca supus a Laura
capaz de me trair. Nós nunca consideramos as nossas como traições, já as delas…
Agora não a suportaria mais. O tipo é bastante mais novo do que eu e tem montes
de dinheiro. É um “Bon vivant” e dará
à Laura tudo aquilo de que ela gosta, e o pior é que já me conquistou a filha
também”
– “O que pensas fazer?”
– “Em primeiro lugar antecipar as minhas férias. Preciso de
um tempo só para assentar a cabeça e começar a colocar as ideias em fila. Foi
esse o motivo principal da minha vinda aqui. O serviço está em ordem e não há,
no mês mais próximo, nenhuma operação que necessite a minha presença. Os
assuntos correntes podem muito bem ser geridos pelo meu adjunto. “
– “Ok. Vai lá. Quanto tempo precisas?”
– “Quinze dias chegam.”
– “Correcto. Trata de ti.”
Monteiro Castro levantou-se e abraçou Carlos levando-o até à
porta. Já no gabinete, Carlos Vidal tirou umas coisas da gaveta da secretária e
deu as últimas instruções a Joana. – “Chame o meu adjunto. Tenho de lhe dar uns
recados pois vou estar quinze dias de férias.”
Já no carro Carlos Vidal pensava no que iria fazer. Tinha de
ter cuidado pois o assalto não estaria esquecido e a “Judite” andaria em cima
do assunto. Pensou que tinha várias hipóteses:
1ª – Sair do país. O Brasil seria uma boa opção, mas para
isso precisava de dinheiro.
2ª – Organizar outro assalto e partir depois.
3ª – Comprar uma espingarda, dar um tiro na cabeça de Laura e
suicidar-se em seguida. Pois! E a filha?
Deixou-se de pensamentos estúpidos. Matar porquê e para quê?
Eles que vivessem como lhes apetecesse. Não se deixaria tomar pela raiva. Ainda
era novo e podia muito bem refazer todo o seu modo de vida. A porra do dinheiro
é que estava ali a estragar tudo. Tinha que urgentemente falar com Abelardo.
XX
Razvan e o Hercules estavam dentro de um carro roubado e
aguardavam em silêncio. Após terem feito a ligação directa, limitaram-se a
percorrer duas ruas e estacionaram num pequeno parque junto a mais umas dez
viaturas. Praticamente estavam na área da penitenciária. Ninguém suspeitaria
que estariam tão perto. Aguardariam pela manhã. Por essa altura as buscas já
estariam bem longe deles. Só que não poderiam recorrer às suas casas ou de
amigos conhecidos para se abrigarem. Certamente seria nesses locais onde
incidiriam mais as buscas. Razvan interrompeu o silêncio e disse em voz baixa:
– Sei quem foi o mandante do nosso frustrado assalto. Pela
manhã iremos para junto da casa dele e apanhamo-lo. Vamos pô-lo contra a
parede. Ou nos dá segurança e alojamento ou tratamos-lhe da saúde.
Enquanto esperavam pela madrugada, Razvan foi pondo o
companheiro ao corrente de quem era Carlos Vidal. Havia também que tratar de
que o seu intermediário, Abelardo, se mantivesse caladinho e cumprisse apenas
ordens do seu “patrão”.
Carlos Vidal saiu de casa em fato de treino e preparava-se
para começar a correr quando os dois homens o ladearam.
– Olá Dr. Não se assuste e ninguém lhe fará mal. Se não se
importa entre aqui neste carro pois temos de conversar um pouco e nós não
podemos andar por aí com estes fatos de presidiários, que não sendo às riscas,
dão um bocado nas vistas.
Rapidamente Carlos Vidal associou os homens ao assalto.
Afinal Abelardo não fora assim tão eficiente e fora localizado. Agora não
haveria outro remédio senão ceder. Entrou passivamente no automóvel e disse:
– Estou à vossa disposição. Sou todo ouvidos.
– Pois é Dr. aquilo correu mal e fomos dar com os costados na
cadeia. Ninguém abriu o bico e pode estar descansado. Aliás só eu sabia que o
Sr. é que estava por detrás disto. Agora sabemos os dois, aqui o Hércules é
seguro. Precisamos de roupas e de alojamento. Também necessitamos de algum
dinheiro para compras. Um carro também dava jeito pois este é roubado e daqui a
umas horas já estará a ser procurado. Depois de passar algum tempo e assim que
as coisas sosseguem mais, estaremos à disposição para qualquer outro
“trabalho”.
– Está bem. É justo. Vou trazer-lhes um pequeno “Smart” que utilizo quando me desloco em
Lisboa sem ser no carro do banco. Depois vamos para uma casa de campo que tenho
nos arredores. Irei lá depois levar roupas dinheiro e comida. Quando eu trouxer
o carro, esperam que vá buscar o meu. Depois cada um conduz um carro e teremos
que abandonar este num local onde não se possa relacionar com a minha
residência. Vamos deixar passar um tempo e depois faremos novo golpe. Mas uma
coisa terá de ficar bem acordada entre nós, depois de distribuirmos o produto,
separar-nos-emos e vocês vão à vossa vida e não mais entrarão em contacto
comigo. Só assim teremos contracto. Caso contrário nada feito.
– Aceitamos apesar do Dr. saber que não está lá muito em
condições de exigir. Ninguém sabe que estamos aqui e podemos em qualquer altura
tratar-lhe da saúde. Assim como assim já estamos lixados e não teremos nada a
perder.
– OK. Sei isso, mas acordo é acordo e espero que cumpram.
Agora vou buscar o carro.
Hércules, que até aqui se mantivera calado, disse:
– Dr. Repare bem no meu físico. Lembre-se de arranjar roupas
a condizer.
Já na casa de campo, que felizmente ficava num terreno bem
desviado da estrada e não tinha vizinhança perto, Razvan e Hércules ficaram à
espera que Carlos Vidal voltasse com roupas e comida. Estavam esfomeados.
Tinham deixado o carro roubado numa localidade que não ficava em caminho e quem
o encontrasse nunca saberia para onde se dirigiram. Nem se preocuparam em
limpar as impressões digitais. De qualquer modo, o carro tinha sido roubado tão
perto da prisão que certamente o conotariam com a fuga.
Carlos Vidal regressou com as roupas, três sacos com géneros
e alguma comida já feita.
– Fica aqui algum dinheiro e um telemóvel. Comprei dois
descartáveis. Ficam com o nº do meu e eu do vosso. Só devem falar-me para este
nº. Agora vão estar por aqui uns tempos. Não dêem nas vistas e se por acaso
alguém vos fizer perguntas, digam que estão a fazer umas obras para mim. Quanto
menos saírem melhor e nada de se andarem a pavonear pela localidade. Quanto ao
próximo golpe, teremos que esperar. O outro ainda está muito fresco e tenho que
pensar bem para organizar as coisas. Desta vez tem que correr muito melhor sob
pena de sermos todos agarrados.
Conduzindo de regresso a casa, Carlos Vidal pensava que
estava lixado. Abelardo falhara. Agora teriam de se organizar para saírem desta
embrulhada.
Quem o mandou meter-se numa destas. Deveria ter tido uma vida
diferente. Quem dera poder voltar atrás com um emprego mixuruca das 9 às 18,
chegar a casa tratar da horta, ver um pouco de TV e cama. Quis subir, ter um
alto cargo no banco, casar com uma mulher culta e da alta. Olha o que lhe saiu.
Sempre a viverem acima das possibilidades, a gastarem mais do que podiam. Ao
que chegaram. A própria filha saiu uma deslumbrada, a querer sempre mais do que
tinha, saídas à noite com os amigos, copos e farras. E vá lá que não lhe deu
para as drogas. Também foi só o que faltou. Sempre que tentou pôr cobro a
algumas situações que considerava excessivas, a filha refugiava-se na mãe que a
apoiava. Desistiu e passou a ser aquele tipo que dormia lá em casa, mas a quem
não ligavam nenhuma, mas o certo é que quando o dinheiro não chegava para tudo
aquilo, era a ele que recorriam e exigiam a reposição do “status quo”. Agora estava naquela situação e elas tinham abandonado
o barco. Tinha que sair desta. Precisava arquitectar um plano.
XXI
O salão nobre estava quase cheio com convidados e pessoal do
banco. Alberto estava acompanhado por Anselmo e Fernando com as respectivas
mulheres, com um pouco de persistência lá convencera o inspector a levar Maria
Clara. Esta não queria perder a cerimónia nem por nada e ficara amuada quando
soube que não iria. O Presidente do Conselho de Administração abriu a sessão
com um breve improviso em que enalteceu a honestidade e agradeceu a Alberto
que, mesmo numa má fase da vida, colocou a sua honra ao de cimo conseguindo
fugir às tentações. Monteiro Castro fez também um elogio à polícia, nas pessoas
dos Inspectores Anselmo e Antunes que rapidamente apanharam os meliantes
perpetradores do assalto. Uma bonita secretária trouxe um cheque que Monteiro
Castro entregou a Alberto com um abraço.
– Estes 35000 euros são 1% do produto do roubo totalmente
recuperado. Que sirva para melhorar um pouco a vossa vida. Gaste-o com o mesmo
discernimento que mostrou em toda esta insólita situação.
Alberto agradeceu em poucas palavras e não falou muito para
não se deixar levar pela emoção. Depois dos aplausos, retiraram-se para uma
sala contígua onde foi servido um beberete. Anselmo aproximou-se de Monteiro
Castro e informou-o de que gostava de ser apresentado a todos os
administradores e directores ao que Monteiro Castro acedeu de imediato reunindo-os
e apresentando-os um a um. No fim Anselmo perguntou:
– Estão todos ou falta algum?
– Só falta um que pediu licença esta semana. Acabou um
processo de divórcio e separação pelo que ficou bastante abalado. Foi descansar
por duas semanas. É o Dr. Carlos Vidal que além de meu colaborador é meu amigo.
Terá tempo de o conhecer.
– OK. Muito bem. Não faz diferença. Conheci praticamente
todos.
Alberto, Fernando e as três mulheres conversavam
discretamente. Ana referiu que aquele seu marido não tinha emenda, estavam todos
descontraídos, mas ele estava sempre em trabalho e de olho alerta, não lhe
escapava nada. Que estaria por ali a cheirar no meio dos grandes do banco?
– É o seu espírito “Sherlokiano”. Olho vivo e ouvido atento.
Sabemos que não está satisfeito com o desfecho da investigação e está
certamente a tirar nabos da púcara – disse Fernando.
– Pois. Isso sei eu muito bem. Espero que não dê cabo da
paciência dos senhores.
– Bem. Vamos, mas é cavar daqui e continuar em minha casa
onde podemos conversar mais à-vontade e mais tarde trincar qualquer coisa.
Vamos sacar o Anselmo – disse Fernando avançando em direcção aos dois homens
que falavam entre si.
Mais tarde, depois de terem ido buscar as crianças, os três
casais estavam descontraidamente conversando na sala de Fernando enquanto os
garotos se entretinham no quarto de um deles a jogar “vídeo-games”.
– Vocês repararam na quantidade de altos cargos que existem
naquele banco? — referiu Anselmo. – Estavam lá todos menos um. Parece que um
dos directores teve recentemente um processo de divórcio e precisou de ir duas
semanas de descanso. Fiquei com os nomes deles todos e vou pôr o Tobias a descascar
as vidinhas deles inclusive as dos administradores. Quero saber ao pormenor a
vida de cada um. Cada vez estou mais convencido que não foram aqueles
gatos-pingados os cabecilhas daquele roubo. Deve haver alguém graúdo por trás.
Diz-me o meu faro que um daqueles tipos estará implicado. Só alguém dentro do
banco poderia saber do transporte daquele dinheiro. Estas coisas não são
discutidas por porteiros.
Fernando levantou-se e já junto da janela, voltou-se e disse:
– Essa cabecinha não pára até descascares tudo e saberes toda a verdade. Acho
bem. As coisas ou se fazem bem-feitas ou não se começam. Se precisares de ajuda
já sabes, contas comigo.
– Ok Amigo, mas como sabes o processo agora não é meu. Tudo o
que descobrir por mim tem que ser comunicado ao meu colega Antunes, o caso é
dele, a mim só tocam cadáveres. Sou uma espécie de antecâmara da morte. Vou até
à Judiciária, tenho por lá muito que fazer. Ana, se não te importas leva o
carro para casa, como não é longe, vou a pé para colocar a cabeça em ordem e
sempre faço um pouco de exercício, esta barriguinha está a dar cabo de mim.
Anselmo despediu-se de todos e saiu. Cá fora esperava-o um
ameno final de tarde de fim de Primavera. O céu apresenta-se com algumas nuvens
e os raios de sol, já bastante baixos, passavam por entre elas. Alguns melros
ainda cantavam preparando-se para recolher. Era fantástico como Lisboa tinha
tanto melro. Já disputavam a comida que encontravam, com pardais e pombos e até
nas esplanadas se aproximavam dos humanos para disputar alguma comida que caía
das mesas. Estavam a ficar demasiado urbanos e a mudar os seus hábitos
alimentares.
Anselmo andava devagar e ia cogitando no caso. Pensava que um
graúdo do banco era o cabecilha, mas não se tinha metido naquilo dando-se a
conhecer aos executores, alguém tinha um intermediário por conta, teria que
falar com o Antunes sobre isso.
Quando chegou ao gabinete o Tobias comunicou-lhe a fuga dos
dois meliantes.
– Como foi isso? Agora deixam fugir prisioneiros perigosos?
Não esqueçamos que esses tipos estão ligados a um crime de morte e podem voltar
a cometê-lo. Nunca se sabe o que sairá daí. Vão certamente tentar contactar
alguém de fora para poderem esconder-se. Já se sabe como escaparam?
– Pormenores ainda não sabemos – referiu Tobias – Parece que
cá fora roubaram um carro que já foi encontrado. Está agora a ser visto pelos
técnicos. Devem ter apanhado qualquer outro meio de locomoção, mas nas
imediações não houve nenhum furto de viatura. Alguém se encontrou com eles.
– Está cá o Antunes? – perguntou Anselmo – Tenho que falar
com ele.
XXII
Desde que soubera do falhanço do assalto, Abelardo nunca mais
falara com Carlos Vidal, agora Carlos queria falar com ele. – Que se estará a
passar? Será que quererá meter-se noutra? – pensava Abelardo. Gostaria que o
seu “alferes” não se metesse em mais alhadas. Desde a tropa que Abelardo tinha
por Carlos Vidal uma dedicação quase canina. Vidal salvara-lhe a vida numa
situação deveras perigosa quando na instrução com tiro de armas reais, ficara
preso numa rede arame farpado e uma granada de morteiro caíra junto dele sem
explodir. Vidal, com risco da própria vida, não conseguindo desprendê-lo,
pendurou-se de cabeça para baixo até chegar com os braços à granada que ficara
dentro de um fosso de esgoto muito estreito, em cimento e, apenas com um
canivete suíço, conseguiu retirar a espoleta da granada sem que a mesma
explodisse. Só depois puderam chamar os sapadores para o soltarem do emaranhado
em que estava. Desde aí ficaram amigos e tornou-se no seu fiel companheiro para
todo o serviço. Daria a vida por ele. Agora o seu “alferes” estava na mó
debaixo e precisara dele. Recrutara aqueles “mânfios” para um servicinho que
correra mal, seria que Carlos Vidal quereria tentar de novo?
Actualmente Abelardo era motorista de longo-curso numa boa
firma de transportes e ganhava o suficiente para se sustentar a si, á mulher e
dois rapazes. Não precisava de Carlos Vidal para nada, mas era incapaz de
recusar-lhe qualquer pedido.
Não haveria nada que fizesse com que abandonasse o seu amigo que,
além de lhe ter salvo a vida lhe continuou a dar a sua amizade, o amparou na
vida civil e lhe arranjou aquele emprego
Carlos Vidal esperava por ele dentro do carro num parque de
estacionamento. Ao chegar fez-lhe sinal que entrasse para o outro lugar da
frente. Abelardo entrou e apertou calorosamente a mão do seu “superior”.
– O meu “alferes” o que manda?
– Tens de te deixar disso – disse Carlos – Chama-me Carlos ou
Vidal, como te der mais jeito, mas já não estamos na tropa. Isso do alferes tem
de acabar.
– Meu “alferes”, peço desculpa, mas é o hábito, vais ser
difícil mudar, mas vou tentar.
– Então faz força para isso. Temos coisas a fazer. Vou
contar-te o que se passou para ficares a conhecer todos os pormenores.
Carlos Vidal pôs Abelardo ao corrente sobre a fuga do Razvan
e do Hércules, como eles o localizaram e contactaram e tudo o que se seguiu
depois.
– Temos de resolver muito bem o que fazer. Por mim não me
metia em mais nada, mas tenho que sair do País, mais tarde ou mais cedo a
Judiciária vai chegar até mim e aí já nada haverá a fazer. Só que estou sem
dinheiro. Como sabes estou em processo de divórcio o que me deixa ainda mais
vulnerável e mais teso. Preciso que vás alugar um carro a uma firma
desconhecida, seria bom que não usasses o teu nome. Temos de substituir o
“smart” que está na vivenda, está em meu nome e pode alguém meter o nariz.
Preciso também que alugues uma casa isolada nos arredores. Procura não deixar
rastos. Paga dois ou três meses adiantados. Depois vamos os dois buscar aqueles
sevandijas e transferi-los para a nova localização até eu decidir o que vou
fazer. Vou dar-te o nº de um novo telemóvel que adquiri. O meu deve estar ou
pode vir a estar sob escuta. Quando tiveres tudo pronto liga-me. Quanto tempo
vais estar por cá sem teres de sair para algum serviço longo?
– Só saio daqui a três dias, temos tempo.
– Agora vai-te embora.
Um beijo meu para a tua mulher e para os miúdos.
– Adeus meu Alf… bem… Carlos. Não sei se vou ser capaz de me
habituar a este tratamento. Amanhã já devo ter tudo em ordem. Eu telefono.
Ah, – Disse Carlos – Não deve ser natural porque ainda não
foste referenciado pela bófia, mas toma cuidado para não seres seguido. Há um
inspector, aliás dois, que andam de olho nisto e são vivaços. Toma cuidado.
XXIII
Após três dias de silêncio Abelardo ligou a Carlos Vidal, já
tinha alugado o carro e a casa. Fora buscar os homens e já os transferira.
Escolhera uma localidade nos arredores de Lisboa dado que os tipos não queriam
ficar longe. Seria necessário não deixar correr muito tempo ou teriam de
arranjar papéis falsos para aqueles meliantes se poderem movimentar. Carlos
Vidal disse-lhe que a partir dali seria ele a decidir e a contactar com os
tipos. Agradeceu-lhe a colaboração e pediu-lhe para não o contactar nos tempos
mais próximos. – Vai para casa para junto da tua mulher. Faz o teu trabalho e
envereda por um resto da tua vida com honestidade. Esta nossa aventura foi um
erro.
Após desligar, marcou o número do telefone que tinha deixado
a Razvan. – Olá, sou eu. Nada de nomes. Vocês vão ter que ter paciência. Vamos
ter de deixar acalmar as coisas. Estou a tratar de arranjar papéis falsos para
vocês. O meu braço direito já me deixou a morada e assim que os tiver ou que
seja necessário deixar-vos dinheiro, passarei por aí. Só me devem ligar em caso
urgente. OK?
Carlos assim que desligou, saiu de casa para almoçar. Teria
de arranjar uma nova empregada pois a que tinha saiu com a sua mulher.
Como ainda era um pouco cedo deu um pequeno passeio a pé e
sentou-se num banco de jardim aproveitando uma sombra. Recordou o que tinha
sido a sua vida, lembrava-se dos tempos de infância, na aldeia. O pai tinha
umas terras e vivia do pouco que davam, mas tendo poupado, resolveu abrir um
pequeno comércio de hortaliças que lhes dava para viverem. A mãe cuidava da
casa e tratava-o a ele, filho único, com esmerado desvelo. Fizera a primária
com distinção sem, contudo, deixar de brincar e conviver com os colegas de
escola. Lembrava-se dos banhos nos rios, todos nus, dos impropérios das
mulheres que por ali lavavam a roupa, das caçadas aos pássaros, das fogueiras
nos santos populares, na missa aos domingos, a que não ligava muito, mas tinha
de acompanhar a mãe. Recordava quando entrou no Liceu e depois para a
faculdade. Licenciara-se e viera viver para Lisboa. Recordou a morte do pai,
após um maldito AVC que pouco depois o levou. Vendera a pequena propriedade e
estabelecera uma pensão vitalícia para a mãe que também não durou muito. Viu-se
órfão cedo de mais e não voltou à sua terra. Aquilo já nada lhe dizia por muito
mudada que estava. Fizera amizades, apaixonara-se e casara. Tivera pequenos
empregos até que conheceu Monteiro Castro. O banqueiro cedo se apercebeu da sua
queda para o negócio bancário e arranjou-lhe aquele emprego. O casamento não
corria bem e algumas aventuras foram a consequência. A ânsia de protagonismo e
a futilidade da mulher acabara por o levar ao crime. Agora estava arrependido.
Não tinha espírito de criminoso. Logo por azar o assalto que tão bem pensou,
tinha dado raia e um homem morrera. Agora estava num dilema. Ou fazia novo
assalto ou fugia, mesmo com pouco dinheiro. Bem, pensaria nisso depois do
almoço.
Carlos Vidal almoçou num restaurante perto de casa. Era
cliente assíduo e os empregados já o conheciam. Estranharam por o verem só, mas
educadamente não o interpelaram por isso. Também não estava nos planos de
Carlos Vidal pôr a nu a sua vida privada. Enquanto comia, o nosso homem, tomou
uma decisão. Tinha que sair de tudo isto da melhor forma. Seria triste ter de
refazer a vida noutro lugar, mas teria de ser. A não ser assim ficaria toda a
vida a remoer em tudo o que fizera de mal. Por sua causa um inocente morrera.
No final das contas a coisa ficara-se só pela intenção porque o roubo não
resultara e o dinheiro fora recuperado. Carlos gostaria de ter conhecido o
sem-abrigo que fora capaz de não se apropinquar com três milhões e quinhentos
mil euros que lhe foram parar às mãos vindos do céu. Há realmente gente
honesta. Resolveu que só haveria uma solução, deixar o país e refazer tudo de
novo noutro local. Fugiria para o Brasil. Quem ficasse por cá que se lixasse.
Eram meliantes profissionais e se fossem novamente capturados eram ossos do
ofício. Pensou na sua filha. Iria ter imensas saudades, mas ela optara por
seguir a vida da mãe. Que fosse feliz. Talvez um dia pudessem rever-se.
Saiu do restaurante, meteu-se no carro e dirigiu-se a uma
agência de viagens pouco conhecida. Comprou uma passagem para o Rio de Janeiro
para dois dias depois. Ao sair do estacionamento pareceu-lhe ver um carro que
saiu ao mesmo tempo. Será que já o seguiam? Não poderia ser. Nada o ligava
àquele assalto a não ser pertencer aos quadros do mesmo banco. Pelo sim pelo
não resolveu fazer uma experiência. Foi direito a casa e quando ia a
estacionar, deu uma guinada e acelerou virando para um sentido proibido. Teve a
sorte de se cruzar com um carro só ao fim da rua e esgueirou-se por um triz. O
carro atrás dele ficou bloqueado.
Não havia dúvida, estava a ser seguido. Ao chegar a casa
ligou o computador e através da Net alterou a passagem para o dia seguinte.
Poderia ser que se alguém o tivesse seguido e através da agência conseguisse
saber o dia da viagem, talvez não se lembrassem que a mesma poderia ser
alterada.
XXIV
Anselmo saiu do carro e teve de se identificar perante o
condutor que vociferava por quase ter sido abalroado por dois carros em sentido
contrário e em alta velocidade. Após os devidos esclarecimentos lá seguiu para
a Judiciária, entretanto, ligou para o seu amigo Fernando.
– Amigão, eu tinha razão, o Carlos Vidal é o nosso homem.
Como sabes, fiquei desconfiado por ele ter sido o único que não compareceu à
cerimónia da entrega do prémio ao Alberto. Investigámo-lo e seguimo-lo. Ficámos
a conhecer o Abelardo e prendemo-lo. Não durou muito a confessar tudo. O tipo
tem uma adoração especial pelo Carlos. Já referenciámos a casa onde estão os
fugitivos Razvan e Hércules. Conto contigo para me ajudares a detê-los. Aqueles
dois não te conhecem e podes ser muito útil pois se bateres à porta ficarão na
dúvida de quem serás. Eles estão à espera de papéis falsos, poderás fazer-te
passar pelo enviado do Carlos para lhes entregar os documentos. Nós estaremos
lá para o resto. Vai ter comigo ao meu gabinete. Poderemos estabelecer lá o
plano de ataque. Um abração.
Anselmo, sorriu para o seu ajudante. Tobias retribui-lhe o
sorriso com uma expressão de orgulho no seu Chefe. Chegaram à Judiciária e
Anselmo dirigiu-se ao gabinete de Antunes a quem fez uma descrição das suas
diligências pedindo-lhe desculpa pela sua ingerência no seu caso. Os dois
inspectores eram amigos e como tal Antunes aceitou a ajuda sem quaisquer
constrangimentos.
Pouco depois Fernando chegou e os três homens começaram a
gizar um plano para surpreenderem os fugitivos já localizados.
Foram gizando a táctica a empregar na captura dos dois
fugitivos. Anselmo, como mais velho, apoiava muito todos os mais novos e era
por todos considerado. Passara por vários pelouros dentro da Judiciária e pela
sua argúcia e poder dedutivo fora colocado nos homicídios, departamento que já
chefiava há tempos.
– Ainda bem que
chegaste, Fernando. Estamos aqui a pensar que vais ser tu a entrar em casa dos
gajos. Vais-te apresentar como enviado de Carlos Vidal para tratares dos papéis
falsos. Vais levar uma pequena máquina fotográfica que levará dentro um microfone.
Tens que ir desarmado pois certamente vais ser revistado. Nós estaremos cá
fora. Já pedimos a colaboração da GNR que vai disponibilizar um pelotão de
operações especiais para cercarmos a casa e fecharmos a rua se for necessário.
Destaquei um agente para vigiar a casa de Carlos Vidal. Pensamos que poderá
tentar sair do país. Julgo que ainda pensa que não foi descoberto, mas como
ultimamente o seguimos, pode até ser que tenha dado por isso. E agora vai para
casa. Convém não dizer nada à Mariana para não a preocupares.
– Já vi que tens tudo planeado, só gostava de saber como me safar
se os tipos derem pela marosca e me quiserem limpar o sebo. Sem qualquer arma
como me safo?
– Já te livraste de outras e não precisaste de armas para
nada. Usa os punhos, tens arcaboiço para isso.
– Pois, está bem. Se me acontece algo vais ter que aturar a
Mariana.
– Estaremos lá. Logo que houver qualquer sinal de perigo nós
daremos por isso através do microfone e cairemos em cima deles num ápice. Não
terão tempo sequer para tomar qualquer atitude de resistência.
– Esperemos que sim. Também, não me posso queixar, meti-me
nisto voluntariamente e agora tenho de aguentar. Lá vou arranjar mais matéria
para outro romance. Vou-me embora. Ficarei a aguardar ordens.
Fernando despediu-se dos dois homens e saiu. Anselmo ficou a
pensar que realmente esta ajuda do seu amigo era perigosa. Se algo corresse mal
os seus superiores não iriam gostar nada e a sua carreira poderia ficar em
risco. Fernando era um amigo, um tipo vivo, inteligente e muito esperto. Não os
deixaria mal.
XXV
No dia seguinte Anselmo Ligou para Fernando e informou-o que era
chegada a hora de agarrar os meliantes. Teria de ser amanhã pelas nove da manhã
dado que Carlos Vidal tinha passagem marcada para o Brasil pelas três da tarde
e teriam que estar no Aeroporto para o deter.
– OK, rapaz. Vou-me preparar, já tenho uns impressos do
arquivo de identificação, que levo numa pasta, levarei a máquina com o microfone.
Entretanto, espero que a vossa entrada se faça na altura certa para ver se saio
desta sem me magoar. – Muito bem! – disse Anselmo – Estaremos atentos, não te
preocupes.
Assim que Anselmo desligou, Fernando escolheu umas calças,
casaco e também uns óculos de aros pretos sem graduação, para dar a ideia de um
tipo manga de alpaca que ganharia a vida a trabalhar para tipos fora-da-lei.
Entretanto, no dia seguinte; entre Razvan e Hércules, as
coisas não andavam lá muito bem. Os dois bandidos estavam a ficar nervosos pela
inactividade e esperavam impacientemente notícias de Carlos Vidal. Hércules,
principalmente, era o mais nervoso até porque suportava mal a presença de
Razvan. Aquele Romeno, com o seu ar superior, contundia-lhe com os nervos.
Assim que dessem o próximo golpe, afastar-se-ia dele e nunca mais o quereria
ver por perto. Esperava ficar com uma boa maquia e daria o salto para qualquer outro
país onde ninguém o conhecesse. Deixaria aquela vida e gostaria de pôr um
negócio que desse para viver sem muitas dificuldades.
Hércules estava nestas conjecturas quando tocou a campainha.
Razvan, de um salto, pegou na arma que tinha sempre à mão. Junto à porta e fez
sinal de silêncio a Hercules. Espreitou pelo ralo e viu um homem alto, de
óculos e bem vestido, com uma pasta na mão. A campainha voltou a tocar segunda
vez e Razvan perguntou: – Quem é?
– Chamo-me Fernando e venho da parte do Sr. Carlos Vidal para
começar a preparar uns documentos que me foram pedidos para duas pessoas.
– Quando abrir a porta entre e coloque-se virado para a
parede com as mãos visíveis.
Fernando cumpriu as ordens e entrou virando-se imediatamente,
no interior, ficando de cara para a parede.
Razvan chamou Hércules e passou-lhe a pistola. Revistou
Fernando de alto abaixo, tirou-lhe a pasta da mão, a máquina fotográfica do
pescoço, verificando que a pasta só continha papéis e a máquina era vulgar e
normal. Deu-se por satisfeito e mandou Fernando entrar.
– Bom dia meus senhores. O Sr. Carlos Vidal encarregou-me de
vir aqui começar a tratar dos vossos novos papéis. Para o efeito vou começar
por vos tirar fotografias, necessárias aos documentos, depois tenho que apontar
várias coisas, como a vossa altura, cor dos olhos e tirar-lhes a impressão do
vosso indicador direito. Dentro da pasta está uma almofada de carimbo para esse
efeito. Vamos aproveitar aqui a parte da parede branca para fundo das fotos.
Ajudem-me aqui a afastar esta mesa. Depois do espaço desobstruído, os dois
homens colocaram-se à vez junto da parede e Fernando tirou as fotos.
Entretanto, Fernando foi memorizando os cantos à casa. A
porta da rua dava directamente para a sala onde se encontravam. Ao lado da
porta havia uma janela grande tapada com um cortinado escuro. Fernando esperava
que a janela não fosse gradeada. Na parede do fundo, à direita, havia outra
porta que certamente daria para um quarto. Como não havia mais entrada nenhuma
a casa de banho seria com serventia para o quarto. Fernando, enquanto, tratava
dos dados de Razvan, notou que Hércules dava razão à alcunha. O tipo era
realmente um colosso e, pela aparência, devia ter mesmo uma força hercúlea.
Reparou também que, o matulão, de vez em quando ia até a janela e espreitava
para fora afastando a ponta da cortina. Este último estava mais nervoso do que
o romeno, que aparentava calma. Por onde e como entrariam os militares da GNR?
Deviam já ter preparado um plano de ataque, mas Fernando não tinha sido posto
ao corrente. De repente uma explosão, mais de luz do que de som, atirou com a
janela para cima deles. Ao mesmo tempo um clarão deixou-os praticamente cegos.
Fernando, que suspeitava o que tinha acontecido, conseguiu fechar os olhos a
tempo. Quando os abriu viu vários vultos encapuçados que entravam pela porta entretanto
arrombada. No meio do fumo e dos destroços da janela reparou que o Hércules se
levantava tentando esgueirar-se pela porta do quarto e ao mesmo tempo deitava a
mão à pistola que voara até à parede. Fernando atirou-se de pés para a frente,
escorregando pelo chão, dando com um pé na cara do gigante antes que este
conseguisse a arma. Hércules deu um berro e atirou-se literalmente para cima de
Fernando que se sentiu esmagado com o peso daquele mastodonte. Conseguiu
rodear-lhe o pescoço com os braços tentando um torniquete de modo a cortar-lhe
a respiração, mas o monstro não deu sinais de fraqueza e respondeu com um
safanão que atirou os quase cem quilos de Fernando a uns dois metros de
distância. Hércules saltou em cima do seu opositor e agarrou-o pelas costas
prendendo-lhe os braços. Fernando nada podia fazer e estava a ver que iria
sucumbir. Foi então que uns seis militares caíram em cima daquela fera e
Fernando conseguiu libertar-se ofegante quase sem respiração.
Razvan tinha sido dominado e encontrava-se algemado. Hércules
foi manietado de pés e mãos não sem antes ter distribuído uns socos e pontapés
que deixaram alguns militares muito maltratados.
Quando as coisas serenaram, apareceram Anselmo e Antunes
sorridentes a dar umas palmadas nas costas de Fernando.
– Então? Pelos vistos estás farto de brincar aos polícias e
ladrões. Desta vez, se não chegássemos a tempo bem levavas para o tabaco.
– Fernando, sorridente, mandou-o à merda. Vai-te lixar. Devias
ter vindo tu para veres o que era lidar com aquele brutamontes. O gajo tem mais
força do que um urso pardo e luta como um gorila.
– Não querias aventura? Pois aí tens. Aventura não é só dar.
Tens que aprender a encaixar umas bordoadas. E agora toca para a “judite” que
temos de engaiolar estes meliantes. Amanhã serão presentes ao Juiz e terão de
certeza as penas agravadas. Vamos todos almoçar porque de tarde vamos deter o
Carlos Vidal.
Anselmo e Antunes agradeceram aos militares do Corpo de Intervenção da GNR e estes retiram-se para as
carrinhas. Entretanto, Tobias já tinha metido os prisioneiros num dos carros da
Judiciária. Os inspectores seguiram atrás, noutro carro. Fernando seguiu no
carro dele que se encontrava estacionado um quarteirão mais à frente. Dissera a
Antunes que já não iria participar na detenção de Carlos Vidal. Amanhã
telefonaria para saber como tudo decorrera.
XXVI
Antunes foi para a porta de embarque do voo para o Rio de
Janeiro enquanto Anselmo se dirigiu ao “Check in” mostrando o crachá e
perguntando pelo passageiro Carlos Vidal. A moça procurou na listagem.
– Sr. Inspector. Temos aqui uma passagem cancelada em nome
desse Sr., foi alterada para ontem e esse passageiro já seguiu para o Rio.
Antunes esteve quase a soltar um palavrão mas coibiu-se
perante o olhar da rapariga. – Bolas! Fomos enganados.
Já nos carros, os dois inspectores riam-se da sua falta de
lembrança de não terem pedido a colaboração dos serviços do aeroporto logo que
tomaram conhecimento da compra dos bilhetes. Tinha sido uma falha grave, mas
nunca suspeitaram que Carlos Vidal estivesse de sobreaviso. Agora estavam
lixados. Os brasileiros nunca o repatriariam.
Entretanto, já no Rio de Janeiro, Carlos Vidal dirigiu-se ao
banco para onde tinha efectuado uma transferência das suas economias. Não era
uma grande quantia, mas daria para sobreviver durante os primeiros tempos. Com
a sua experiência e habilitações decerto conseguiria empregar-se. Depois
trataria de comunicar com a filha da qual tinha imensas saudades.
XXVII
Anselmo, Antunes, Fernando e Alberto, acompanhados das
respectivas companheiras, jantavam à volta de uma mesa redonda num restaurante
Chinês. Entre eles tinham-se estabelecido relações de franca amizade e
falava-se do caso com abertura e alguma alegria.
– Pois meus Caros. Apesar de não termos apanhado o
manda-chuva, toda esta operação até correu bem. – disse Antunes.
– No fim, graças ao Alberto, a massa recuperou-se. Tivemos um
guarda do banco ferido e uma baixa de um pobre sem-abrigo que teve o azar de ir
dormir para o mesmo local onde o saco do dinheiro foi atirado para cima do
Alberto. – referiu Anselmo. – O pobre homem era um desgraçado que já não
viveria muito devido ao estado de degradação em que se encontrava.
A Maria Clara, com a voz um pouco embargada e de lágrima no
olho, apertava a mão do marido, referindo: –
E eu recuperei o meu marido e a nossa filha um pai.
– E eu – disse
Mariana. – Fiquei com um marido de costelas amassadas e cheio de nódoas negras.
É bem feito para não andar a brincar aos polícias e ladrões. Desde que se armou
em escritor policial e resolveu viver os enredos dos seus romances que passa a
vida todo amassado. Qualquer dia vou ter que pedir indemnização à Judiciária.
– Talvez não seja preciso. Com o jeito que tem para estas
coisas, o Fernando tem é que deixar a faculdade e vir para a “judite”. Faz lá
falta. – disse Anselmo.
– Claro, era só o que faltava. Gosto muito da minha
actividade, não só como docente, mas também como ter a possibilidade de fazer
ciência. A minha colaboração nas actividades da Judiciária, só foram possíveis
graças à tua amizade. A propósito, como reagiram as chefias à fuga do Carlos
Vidal? – perguntou Fernando.
– Olha! – exclamou Anselmo. –
reagiram melhor do que esperávamos. Ficaram um pouco decepcionados, mas
como se recuperou a massa e se apanharam os operacionais, vá lá não foi
completamente um insucesso. De qualquer modo o Carlos Vidal foi apenas o
cérebro e até parece que não queria fazer mal a ninguém. Rodeou-se foi de
alguns facínoras que não executaram o golpe como ele pretendia.
– Qualquer dia – referiu Fernando – somos conhecidos pelos Gauleses. Tal
qual como nas aventuras de Asterix e Obelix, terminamos as nossas aventuras à
volta mesa, só nos faz falta um bardo para amarrarmos e pendurarmos no candeeiro.
Todos riram e Fernando aproveitou para acabar com a festa. – E
agora, vamos todos para casa pois bem precisamos de descansar e este jantar já
vai em hora adiantada.
Os convivas levantaram-se e, à porta, fizeram as despedidas
com promessas de continuarem a encontrar-se com regularidade.
No caminho, Anselmo aproveitou para descansar Sara sobre as
investigações policiais.
– As pessoas têm tendência para pensar que todas as
investigações são tipo Hercule Poirot ou Perry Mason. Claro que os escritores
se baseiam em casos em que o detective principal tem de ser um tipo arguto, de
inteligência superior, psicólogo de pensamento ágil para conseguir penetrar nas
mentes e delas tirar elementos que o levem a descobrir assassinos. Isso é
literatura, claro que há casos difíceis, mas na sua maioria os criminosos não
são assim tão mentais. Os manuais de procedimentos têm quase todos os exemplos
necessários para se conseguirem resultados rápidos. Colher indícios,
referenciar, pessoas, capturar um ou dois, interrogar, etc. Neste caso, como os
operacionais não denunciaram o mandante, tivemos que pensar um pouco para
identificar quem poderia ser. Poucas pessoas, no banco, sabiam do transporte do
dinheiro. Bastou saber quais os directores que tratavam desse assunto. Um deles
não apareceu na entrega do prémio ao Alberto. Caíram sobre ele as nossas
primeiras suspeitas. Segui-lo, saber com quem falava, saber um pouco da sua
vida privada, foi fácil. Apanhar o Abelardo também. A partir daí foi rotina.
Usar o Fernando foi da minha responsabilidade, sabia os riscos que corria, mas
também sabia do gosto que ele faz em viver estas aventuras para as escrever.
Felizmente tudo correu bem. Não apanhámos o mandante, mas ele também não levou
o produto do roubo. Foi um tipo que optou pelo crime para mudar de vida. Mudou
realmente, sem a massa, mas não teve outro remédio. Espero que tenha sorte lá
no Brasil e que não caia mais em tentações. Como vês, na maioria das
investigações, quase todos os procedimentos são rotina.
– Sei disso – disse Sara. – Mas não deixa de ter os seus
perigos e eu não quero ficar viúva cedo de mais.
Anselmo fez-lhe uma festa na face. – Está descansada.
Normalmente quem corre mais perigo são os PSP e guardas da GNR. Nós somos os
generais que atrás das tropas engendram as estratégias.
Entretanto, Fernando conduzia em silêncio para não incomodar
Mariana que cabeceava a seu lado e ia pensando no Caso do Sem-Abrigo.
Como as pessoas eram diferentes, mas como também, ao mesmo
tempo, viviam episódios idênticos reagindo-lhes de forma diversa.
Um homem honesto que, face a adversidades da vida, para não
causar grandes traumas à família, resolve abandoná-los e viver nas ruas por
vergonha de não ter sido capaz de prover decentemente às suas necessidades.
Acaba por viver uma aventura em que se vê envolvido sem ter sido esse o seu
propósito. Devido à sua honestidade é recompensado e consegue voltar para junto
dos seus que o recebem de braços abertos. Um outro, que vence na vida, consegue
um bom emprego, tem um casamento que não dá certo devido à futilidade da mulher
que quer tudo e cada vez mais, acabando por contagiar a própria filha e por
enganar o marido. Face a tudo isto decide divorciar-se, mas em vez de ficar por
ali, envereda na senda do crime. Duas formas de actuar completamente diferentes
em face de condicionalismos da vida. O primeiro fica com os seus e feliz, o
segundo acaba só, num país diferente, onde certamente, só com muita sorte
conseguirá ser feliz. Fernando pensava que a natureza humana era demasiado
complexa e a vida cheia de vicissitudes e que as reacções às mesmas se regiam
conforme as idiossincrasias de cada um.
Chegado junto da sua residência, estacionou e acordou a sua
mulher com um suave beijo na face. Ajudou-a a sair do carro e praticamente
fê-la entrar em casa meia adormecida com a cabeça no seu ombro. Assim que se
deitou, Mariana adormeceu profundamente. Fernando sorriu por ver que a sua
mulher, pela primeira vez, tinha bebido um pouco mais do que a conta.
Despiu-se, vestiu um roupão e foi até ao escritório. Sentou-se à secretária,
ligou o portátil, abriu uma folha de “Word” e escreveu como título:
O Caso do Sem-Abrigo