segunda-feira, 2 de julho de 2012

O FOGO


O Quim gritou; − Eh! Malta! Há fogo na mata junto à linha lá em baixo.
Corremos todos até ao alto das grandes pedras escarpadas quase a pique e que davam para o grande vale onde corria a ribeira. Dali vislumbrava-se toda a panorâmica à nossa volta. Do lado de cá do pequeno rio, uma ceara, ainda verdejante, ondulava com o vento fazendo lembrar o mar encapelado. O Zeca, irmão mais novo do Quim, lembrou que a “bomba” devia estar a passar e, se corrêssemos, ainda a apanharíamos. Os bombeiros voluntários, permitiam que uns tantos rapazes os acompanhassem e ajudassem no combate a incêndios florestais.
Corremos com asas nos pés. Eu de calções claros e botas cardadas, o Quim, mais velho um ano, já de calças de cotim cinzento e sandálias de couro, o Zeca, o mais novo, descalço e de calções de zuarte. Chegámos à estrada de alcatrão mesmo na hora e os bombeiros abrandaram para nos deixar subir. A “bomba”, como apelidávamos o velho carro vermelho com escadas e mangueiras, ia lançando os uivos de sirene alertando tudo e todos. Pelo caminho apanhámos mais uns quantos rapazes, todos nossos conhecidos ali da terra.
Chegados ao local já o incêndio lavrava bem pela mata fora com labaredas alterosas que lambiam pinheiros e eucaliptos. Os bombeiros, já habituados, apressaram-se a cercar o fogo fazendo umas aberturas corta-fogos, dirigindo os jactos das mangueiras para a base das árvores. Os rapazes tinham entretanto cortado ramos e com eles batiam mato e fenos nos sítios que os homens lhes indicavam. Populares juntavam-se a nós e iam apagando por conta própria mas segundo a indicação dos voluntários. Com pás, atirava-se terra para cima das chamas mais baixas, não permitindo a formação de cinzas incandescentes.
Aqueles fogos eram muito frequentes devido à proximidade da via-férrea. Os velhos comboios, ainda a carvão, eram os culpados pelas fagulhas expelidas das chaminés. O vento, bastante forte naquelas paragens e no verão, encarregava-se de as manter acesas no ar depositando-as nas matas circundantes. A pronta intervenção dos bombeiros e dos seus improvisados ajudantes, foi profícua. Umas 4 a 5 horas depois o fogo estava extinto. Não me lembro de fogos, pelo menos naquela região, que durassem mais de 6 ou 8 horas.
Entretanto as nossas roupas estavam pretas e chamuscadas. O calçado estava uma miséria, mas os pés do Zeca, completamente negros, não tinham uma queimadura. A sola daqueles pés era mais rija que a das minhas botas e nelas nada entrava. A hora de almoço tinha passado e a do jantar aproximava-se. Maldizia a minha sorte por ter de aparecer assim ao pé da minha mãe e muita sorte teria se o meu pai ainda não estivesse em casa.
Quando aparecemos na rua, as nossas mães já nos esperavam impacientes. Ouviram as sirenes e sabiam perfeitamente que tínhamos ido ver o fogo. Só que não nos esperavam naquela figura e com a roupa naquele estado. Fui para a banheira levado por uma orelha e não me livrei de umas palmadas no rabo com a colher de pau, bastante grande, que a minha mãe usava para o efeito.
Ao jantar, já com o meu pai em casa, como a minha mãe, nada dissesse, apressei-me a contar o episódio dourando um bocado a pílula, pela importante ajuda que déramos aos bombeiros e como o fogo tinha sido prontamente extinto. O meu pai, ignorando os estragos na roupa, enalteceu a nossa acção mas não deixou de aconselhar prudência e que estivéssemos sempre atentos às indicações dos bombeiros, pois os fogos eram perigosos, mudando, inúmeras vezes de direcção, apanhando as pessoas desprevenidas. E assim, visto pelo pai como herói e pela mãe como maluco transviado e incauto, lá me safei e fui para a cama satisfeito por ter auxiliado no combate àquela calamidade. No dia seguinte de manhã vim a saber que os dois irmãos tinham apanhado pela medida grossa da mãe e depois do pai, a quem ela se queixara. Eram indivíduos demasiado duros para com os filhos e não perdoavam aventuras daquelas.
Belos tempos esses em que alguns de nós gozávamos de bastante liberdade para nos metermos em alhadas sem que daí viessem grandes males para nós e para os outros.
Domingo à noite, já no meu colégio, o “Pilão”, os meus amigos ouviam o relato que lhes fazia, pintando o quadro com muitas cores e cenas tenebrosas provocadas pelas alterosas chamas que quase me devoraram.
Dante não teria descrito melhor aquele inferno.

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