domingo, 8 de julho de 2012

ÁFRICA, MINHAS RECORDAÇÕES…


O homem parou o “jeep” á beira da estrada. Um grande embondeiro, uns 60 metros ao lado direito, chamou a sua atenção. Grande árvore aquela. Imponente e nua de folhagem, tronco enorme e grosso, os ramos nus e finos cresceram para o alto de forma desordenada tendo nas pontas frutos pretos e secos pendurados como se fossem grandes morcegos em descanso. O seu olhar passou muito para além tentando vislumbrar qualquer animal. Nada. Parecia que o tempo parara por ali. Uma calmaria silenciosa impressionava. Aquela África estava estranha, não parecia a África que o tinha seduzido há muitos anos atrás. Tudo estava tão diferente…
“− Meu Capitão, agora que já carregámos a lenha, podíamos fazer uns tiros ali aos frutos daquele embondeiro? A malta nunca atira, o meu Capitão nem lá no acampamento nos deixa atirar quando há ataques.
− Claro que não vos deixo atirar. Vocês por acaso já viram algum inimigo quando há confusão por lá?
Os moços tinham razão. O Capitão ficava furioso quando havia tiroteio. A rapaziada do Batalhão e das Companhias, quando havia meia dúzia de tiros, faziam tal estardalhaço que mais parecia que se defendiam de um ataque dum batalhão de infantaria. Era um desperdício total sem qualquer resultado prático. Os seus homens estavam industriados para só atirarem se houvesse aproximações ao arame farpado. Em quase dez meses na região, apenas uma vez vira dois tipos a correr ao longe, depois de terem dado uns tiros para o estacionamento, desaparecendo logo no mato. Os nossos fizeram guerra por conta própria durante meia hora. Os seus rapazes nem um tiro deram.
Agora estavam cheios de vício para dar ao dedo.
− Está bem, atirem mas um de cada vez. Vamos ver qual o primeiro a desfazer um dos frutos.
E o pessoal lá se divertia com os falhanços da rapaziada que, infelizmente eram muito maus atiradores.”
Decorridos quase 40 anos, aquelas imagens vinham-lhe á memória como se aquelas cenas tivessem ocorrido ontem. A nossa guerra terminara e ainda bem. Chegara a altura de deixarmos aquelas populações entregues a si próprias.
Que vantagens trouxera a colonização? Os colonizadores serviram-se das populações para executarem trabalhos que nada lhes deu. Os frutos desses trabalhos apenas serviram aos colonizadores e dentro desses só aos poderosos. Evangelização? Bah! Para quê? Não estavam eles satisfeitos adorando os seus próprios deuses e fetiches? Selvagens? Não sei quem era mais selvagem, se eles se nós que tanta asneira por lá fizemos e tanta dor provocámos. Pois, construímos cidades, ensinámos os povos a vestirem-se e calçarem-se. Pusemos alguns a irem à escola mas tendo sempre o cuidado de não lhes ensinarmos muito pois povo educado pensa e pensar abre as mentes e isso era perigoso.
Agora não estavam melhores. As elites revolucionárias tinham tomado conta do poder e a ditadura instalara-se. A ansia de poder e a corrupção instalou-se nos governos e o povo continuou na miséria. Mas, enfim, pelo menos eram governados pelos seus. Que se desenrascassem.
O homem continuava sentado no banco do “jeep” e não lhe apetecia sair dali. O calor húmido começou a fazer os seus efeitos e a camisa colava-se-lhe ao corpo. Andou com o carro um pouco mais para a frente colocando-se à sombra de uma árvore. A tarde aproximava-se e alguns pássaros começaram a ouvir-se. Estava a passar aquela parte do dia em que a savana africana descansa. Dentro de momentos uma miríade de sons far-se-ia ouvir. Fechou novamente os olhos e as recordações voltaram…
“O Alferes médico corria de maca para maca, na pequena enfermaria do batalhão, tentando fazer a triagem daqueles mais necessitados de cuidados imediatos. Os feridos entravam na enfermaria à medida que iam chegando ao estacionamento. Uma emboscada tinha-os apanhado uns quilómetros antes e as baixas tinham sido consideráveis. Explosões na picada, causadas por armadilhas comandadas à distância, tinham apanhado a coluna em cheio e causado mais estragos que os tiros que se lhe seguiram. A Companhia vinha, há vários dias, fazendo segurança à engenharia que fora reparar vários troços da perigosa picada Nanbuangongo-Zala. O Capitão tinha corrido a prestar o auxílio possível àqueles homens que tanto tinham suportado e agora sofriam pelos ferimentos recebidos. Sentia-se impotente por não saber bem o que fazer no meio daquele caos. O médico tentava socorrer um homem com um traumatismo craniano quando o enfermeiro o chamou por um dos feridos ter começado com convulsões.
− Meu Capitão ajude-me aqui. Segure com a sua mão o parietal deste homem. Contenha o mais possível a hemorragia e veja se a massa encefálica não sai. Este já perdeu alguma e se perde mais não se safa.
E ali ficou o Capitão com uma cabeça entre mãos e massa encefálica a querer sair por entre os dedos. Como era isto possível? Porque aconteciam coisas destas? Pois, estavam mesmo em guerra embora muitas vezes se esquecessem disso. Quando acabaria tudo aquilo? Quando é que os políticos chegariam à conclusão que não se vence um povo determinado a libertar-se? Se lessem mais livros de história rapidamente se aperceberiam que os povos, quando se sentem oprimidos por invasores, se entram em guerras de libertação, ninguém os vence.
A noite foi longa e, graças aos abnegados esforços daquele médico, do seu enfermeiro e de todas as ajudas possíveis, não houve mortes. Já de madrugada fizeram-se as evacuações para o hospital de Luanda.”
O homem pôs o “jeep” a trabalhar e arrancou. O trabalho, que o fizera regressar a África, esperava por ele. Agora já não estava em guerra com ninguém, mas os angolanos continuavam numa guerra fratricida em luta pelo poder. O homem não aprende nem sabe viver em paz. A ganância causa exploração e esta causa rebeliões, mas a ânsia pelo poder é o pior dos males.



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