O Homem estava em fase
terminal. Os médicos já não acreditavam na sua recuperação. Estava para ali já
colocado num quarto, ao lado de outro que, com o mesmo, só esperava o fim.
Revia toda a sua vida e pensava que tudo tinha sido estranho. Passara o tempo a
pensar na mulher e nos filhos. De casa para o trabalho, do trabalho para casa,
sem tempo para a diversão, e mesmo que o tivesse tido, os proventos não lhe
dariam azo a isso. Tanto que almejara, tanto que queria ter feito e dado aos
outros e nada tinha conseguido. E agora aquela maldita doença que o apanhara. O
cancro é muitas vezes curável, mas outras não. O dele tinha sido galopante e
não lhe dera tempo para nada. Hospitais, consultas e tratamentos, tinham-no
feito andar numa fona e afinal para quê. Também, afinal, para quê mesmo? A
família ficaria bem melhor sem ele. Neste momento já era um encargo e bem
pesado. Poderia ser até que a mulher ainda conseguisse encontrar alguém. E que
esse alguém lhe pudesse dar a vida que merecera e bem melhor mereceria agora.
Tanto pediram a Deus, nas suas orações e durante as missas dominicais, para
terem saúde, algum conforto, harmonia e saúde e afinal… Mas Deus continuava no
seu pensamento. Fechava os olhos e via Deus. Não era bem uma pessoa, talvez uma
forma em nuvem esbatida e esfumada, que de vez enquanto se transformava na
figura de Jesus Cristo, seu Filho. Eram os dois Deus e a Sua vontade seria
sempre única, fosse tomada por um ao outro. Rezava baixo, sempre na esperança
de ser atendido. E porque não? Fora bom homem, bom marido, bom pai, bom
empregado. Porque não ser atendido por um Deus a quem sempre se dirigira nas
horas más e a quem agradecera nas horas boas. O seu companheiro de quarto
agonizava. Os ruídos que lhe saíam da garganta já anunciavam a morte. Faleceu
dois depois.
O médico vinha vê-lo
todas as manhãs. Chegava, cumprimentava-o perguntando: “Como vai isso?” Como se
ele não soubesse. Nessa manhã demorou mais um pouco. Chamou a enfermeira e
fez-lhe algumas perguntas em voz baixa. Ao sair disse-lhe:
— Senhor António, tenho
boas notícias. Surpreendentemente, os últimos tratamentos produziram algum
efeito. Há uma esperança. Amanhã vamos continuar. Tenha fé.
Sorriu-lhe. Fé tinha ele,
mas esperança muito pouca. Pelo sim pelo não virou os olhos ao céu e agradeceu
ao seu Deus. Três semanas depois estava com alta. Regressou a casa e foi
recebido com júbilo. Tinha de voltar ao hospital para controlo e exames de
confirmação. Num desses dias, passou pela maior enfermaria da ala oncológica.
Muitos dos doentes eram praticamente cadáveres vivos. Enquanto esperava para
entrar no gabinete médico, junto ao balcão das enfermeiras, ouviu uma a dizer
para a outra que; “hoje já foi o segundo. Com dois que foram ontem já foram
quatro para a morgue”. O nosso homem começou naquele momento a tomar
consciência de uma realidade. Não fora só o seu companheiro de quarto. Todos os
dias morriam muitos doentes com a mesma doença. Ele fora um abençoado. Nesse
momento perguntou: “Porquê ele? Porque não aqueles todos também? Não teriam
Deus? Seriam ateus? Seriam assim tão pecadores? Porque Deus não lhes perdoara?
Será que ele era mais merecedor?
Então aí ele viu o
porquê. Não era ele o merecedor. Eram os outros. Deus gostava mais deles e por
isso levou-os para ao pé de Si. Afinal eles é que estavam destinados à
companhia divina. Ele não era merecedor, por isso teria de continuar a
mourejar. E aí ficou triste. Podia estar agora junto do seu Deus e ele não o
quisera. Porquê se tão bem sempre se tinha portado? Não merecia isto…
À saída foi atropelado
por um autocarro.
A imaginação e o estilo leve, simples, directo, agradável de seguir, que prende o leitor, são atributos invejáveis que te devem fazer continuar. Parabéns.
ResponderEliminarObrigado amigão. Estava com medo das reacções daqueles que acham que se não deve brincar com coisas sérias.
ResponderEliminarTerrível perda! A falta que por cá faria alguém a quem Ele atendia todos os pedidos. Parabéns pelo escrito, amigo Telo!
ResponderEliminarJosé Valente
Meu amigo, não vou comentar o artigo como devia; Hoje é só para dizer-lhe que estou por cá, li-o e gostei. Este texto tem subtis considerações que merecem uma ponderação apropriada a quem se propõe falar sobre ele; Digamos, por agora, que o autocarro não devia passar àquela hora! Grande abraço.
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