sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Caça e “guerra” em São Salvador

 

 

São Salvador do Congo em 1964/65 era uma “cidade” onde a vida decorria com normalidade e sem problemas com o IN. Apenas para os lados de Cuimba, junto à serra da Canda, havia sarrafuscas e contactos. Para sul após o Quiende e depois do rio M’Pozo, já havia alguma actividade operacional. Antes do rio havia uma região chamada Zauévoa onde existiam duas enormes lagoas. Era aí a minha zona de caça. Essa zona tinha sido outrora uma reserva e havia montes de pacaças, palancas, burros do mato (quissemas), sofos, gulungos e até hipopótamos. As pacaças eram as minhas preferidas. Adepto da actividade cinegética desde pequeno, arranjei logo forma de que o comando de sector autorizasse uma equipa de caça que me propus chefiar. Era considerada uma patrulha e tinha que sair devidamente autorizada e indicar nos mapas as zonas para onde me deslocasse. Havia uma pequena equipa escolhida por mim e o resto da malta era recrutada pelas unidades assim como as viaturas. Normalmente ia o meu jeep, da Intendência, devidamente armadilhado com uma estrutura onde um palanque com um banco de madeira devidamente almofadado servia para sentar os dois atiradores de serviço, que eram: eu e um cabo operador de rádio natural de Maquela filho de um grande caçador profissional, também ele muito sabedor dos segredos da mata e da bicharada. O condutor era um sargento mecânico do pelotão de apoio directo, cujo comandante era um alferes meu conhecido do Grupo de Companhias de Trem Auto em Lisboa. Foi devido a essa amizade que consegui a estrutura do jeep e as reparações das equimoses que as viaturas sofriam pelas nossas marchas malucas por todo o terreno. Saíamos sempre com uma metralhadora ligeira Drise, tubo de morteiro de 60 com algumas granadas, granadas de mão ofensivas e os soldados de G3. O meu cabo enfermeiro sempre equipado com a sua bolsa, fazia também o papel de meu guarda-costas pois era um matulão de força hercúlea. Normalmente atrás do jeep ia um jipão, com roldana e guincho para puxar para cima as pesadas pacaças, levando uma escolta para o que desse e viesse e, em cima de um morro alto ficava o resto do pessoal com uma viatura pesada, normalmente uma GMC ou Diamond. O alferes da aeronáutica, que gostava da caça, foi algumas vezes como convidado e quando não podia ir passava com os teco-tecos (austers) por cima de nós e pelo rádio indicava-nos onde estava a caça. Julgo que nem o John Waine fez melhor no cinema. O comandante da CART situada no início de São Salvador era o Veiga da Fonseca, o 218 do Colégio Militar, meu contemporâneo na EE, amigo infelizmente já falecido, a quem convidava muitas vezes para me acompanhar. Nunca ele apanhou tanta caça como quando começou a sair comigo. No regresso, eram cerca de 180 a 200 Km que fazíamos, a caça era distribuída pelas unidades e o homem que vendia a carne tinha-me um pó danado, mas disfarçava bem.

Tudo isto para apresentar o Veiga da Fonseca, rapaz com senso de humor, e contar um episódio insólito que se passou numa noite em que ele estava de oficial de segurança e, por acaso tinha passado na Intendência onde bebíamos uns copos. Havia um sistema de comunicações telefónicas para todos os postos de defesa que circundavam a cidade. Cada um podia ligar para o oficial de segurança e este podia falar para todos eles ao mesmo tempo. Não sei bem como aquilo funcionava, mas naquela noite toca o meu telefone e o operador pergunta pelo Cap. Veiga da Fonseca. Uma sentinela queria falar com ele. Feita a ligação o rapaz do posto diz que estava a ver umas sombras junto ao arame farpado, mas que não tinha a certeza se eram homens ou bichos que por ali andavam. O V. da Fonseca que já estava um pouco toldado, pensando que só falava para aquele, diz: “Se não tens a certeza Fogo!” Disse isto demasiado alto e empolgado, só que todos os postos estavam ligados e todos à escuta. E foi a guerra total. Nunca se vira tanto tiroteio na cidade.

Foi um esforço do caraças fazer parar aquilo e mais esforço foi necessário para apaziguar o comandante de sector. Os poucos civis da cidade, o governador de distrito e duas ou três senhoras, que por lá havia, apanharam um tremendo cagaço. Afinal os IN eram apenas cabras que pastavam tranquilamente. Nenhuma morreu…

A primeira vez que o meu amigo Veiga da Fonseca me acompanhou, dei-lhe a primazia para poder abater a primeira peça. Era ainda noite e uns olhos foram focados pelo Rino, o tal profissional. O Veiga da Fonseca aponta e… pum. O bicho nem se mexeu, mais dois tiros e ao terceiro caiu. Quando nos aproximámos vimos um enorme macho burro do mato com um corno partido. O primeiro tiro acertara-lhe na base do dito e cortou-o cerce. Depois todos gozávamos.

“Claro. O bicho não fugiu porque andava à procura do corno perdido”.

O animal tinha ficado tão atordoado que nem caia nem fugia.

Resta dizer que após a minha saída de São Salvador começaram a haver emboscadas naquela zona e puseram lá um batalhão que se servia das picadas que eu abri no mato. Estou convencido que as minhas “patrulhas” serviam de dissuasão ao In.

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