quarta-feira, 22 de setembro de 2021

 

O Que Diz Molero

 

Reparei que o indivíduo sentado na mesa ao lado olhava para mim com ar espantado, pudera, enfronhado que estava na leitura, nem reparava que de vez enquanto dava uma audível gargalhada. Raramente releio um livro, mas alguns há que me merecem essa atenção. Dinis Machado era um nome pouco conhecido. Director das publicações de Banda desenhada da Bertrand passava despercebido nos meios literários. O Que Diz Molero foi uma bomba revolucionária e um sucesso literário não esperado. Em dois anos fizeram-se 11 edições. O meu filho conseguiu um exemplar autografado.

Dinis Machado já escrevia, mas sob pseudónimo. Denis McShade era um escritor policial que o público português pensava ser americano. Resolveu escrever com o nome próprio e o seu primeiro livro foi uma explosão. O interessante do livro é que é escrito sobre uma personagem principal que nem nome tem. Um indivíduo, Austin, lê a Mister DeLuxe um relatório encomendado a um tal Molero, sobre a vida de um tipo a quem tratam por rapaz e rapaz foi até ao fim. Esse tal de rapaz, era um procurador da palavra para escrever uns poemas e ao mesmo tempo fazer um estudo sobre Miró. O relatório foca a vida do rapaz desde a infância num bairro de Lisboa e a sua peregrinação pelo Mundo procurando sempre a palavra certa.

A descrição da vida do rapaz no seu bairro é uma delícia. Para quem conhece Lisboa e seus arredores e lá viveu a sua infância vai reconhecer todo os personagens criados pelo autor bem como os filmes, livros, banda desenhada e artistas daqueles tempos. Dinis Machado cria alcunhas para os personagens amigos do rapaz, que são no fim, as alcunhas dos nossos amigos de infância. Está lá o Zuca, exímio contador de filmes, que imitava o som da espadeirada e cavalgadas, catapum, catapum, corria e esbracejava, murro para aqui e murro para acolá. Havia o Peida Gadocha, o Lucas Pireza, o Penteadinho, O Bigodes Piaçaba da drogaria, o Bexigas doidas, o Aranhiço, o Roque Sacristão, a Mafalda Capoeira vendedora de galinhas, o Evaristo que dizia que o importante era a tusa e que se espremia em qualquer buraco fosse galinha ou tijolo, o Vovô Resmungas e muitos outros. Havia o Ângelo que não se metia com ninguém, mas quando havia sarrafusca levava tudo e todos pela frente a murro e a pontapé, que o digam os camones desembarcados em lisboa que por tudo e por nada levantavam os punhos como grandes admiradores do boxe que eram. A esses o Ângelo despachava em série levando o vovô resmungas a fugir, coxo com a sua bengala a não tocar no chão e a dizer foda-se, foda-se…

Mas além da vida de bairro Dinis Machado descreve as amizades do rapaz como com Leduc, ginasta que conseguiu, nas argolas, o Cristo perfeito que levou 15 anos a aperfeiçoar e no dia seguinte numa festa comemorativa, numa desordem, levou com uma cadeira nas costas que o atirou para uma cadeira de rodas para toda a vida. O rapaz continuou amigo de Leduc com quem tinha conversas intelectuais sobre poesia e livros levando-o para uma falésia onde observavam o por do sol. Um dia, quando o rapaz se afastou para ir buscar umas bebidas, Leduc destravou a cadeira de rodas… o rapaz correu e ainda viu a espuma onde Leduc se afundou.

Molero descreve também os amores do rapaz primeiro com uma Mireille que conheceu em Paris e mais tarde com algumas outras ao longo do seu périplo pelo Mundo.

Alternando entre as piroseiras bairristas e a intelectualidade poética, o relatório de Molero descreve um pouco da vida de todos nós com uma excelente linguagem narrativa que nos encanta fazendo rir e chorar. Já da primeira leitura me diverti imenso e muito mais ainda, quando com o meu rapaz, recordávamos as peripécias mais caricatas. Enfim, uma segunda leitura que ainda me deu muito mais gozo.

 

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