sábado, 30 de março de 2019

A Ribeira das Jardas

Em tempos escrevi uma espécie de livro de memórias a que chamei O Lagarto por me ter servido de um bem grande que cacei em miúdo, como catalisador da sequência de episódios. Publiquei este texto no Boletim da APE, pelo que os meus amigos Pilões, em princípio já o conhecem, mas penso que não o coloquei aqui no Blog e ele merece cá estar para meu próprio conforto. Se já conhecem muito bem, mas se não, leiam-no e que vos dê o mesmo prazer que me deu a escrevê-lo.

A Ribeira das Jardas

(Capítulo publicado no Boletim da APE nº 203/06)
O grupo, cinco rapazes e duas raparigas irmãs, deslocava-se pela estrada poeirenta. Alguns de calções, elas de calça de ganga, todos de roupas aligeiradas. O destino chamava-se ribeira das Jardas. Local aprazível com uma ribeira de água límpida. Aqui e ali vários pégos (nome que era dado aos sítios mais largos, fundos e espraiados) eram aproveitados para boas banhocas. A rapaziada, quando sozinhos, tomava banho, tudo nu, em franca e alegre brincadeira. Desta vez todos levavam fato-de-banho debaixo das vestes. Com meninas era necessário ter pudor. As idades variavam entre os 12 e os 15, mas, naqueles tempos ninguém se atrevia a tentar qualquer aproximação de cariz sexual. Apenas namoros ligeiros com beijos e festas já bastante libidinosos, mas com respeito. Os rapazes apoiavam-se em varapaus de zambujeiro bem polidos e tratados. Serviam de apoio, de arma de defesa, objecto para caça, matar cobras, lagartos ou qualquer outra bicheza que pudesse assustar as moças. Elas transportavam, livros, bola, ringue, sacos com a merenda e uma manta para se sentarem na erva fresca da ribeira.
Chegados ao local, espaço ervado rasteiro parecendo relva, com bastante areia junto da água e árvores frondosas, salgueiros, choupos e faias, estendia-se a manta ficando a água e a merenda na sombra. A passarada esvoaçava entre os ramos e o gorgolejar de rouxinóis, melros e toutinegras era constante. A rapaziada desfazia-se das roupas e só com os fatos de banho pulava para a água brincando, chapinhando, puxando os pés às miúdas que se fingiam agastadas, mas gostando da brincadeira. Os barbos, bordalos e pimpões refugiavam-se nos buracos das margens e esperavam que a barafunda passasse.
Depois do primeiro banho escolhiam-se equipas para uma jogatana de “mata”, jogo de ringue em que a equipa das duas raparigas juntamente com os namorados, jogava contra a dos três rapazes “solteiros”, um mais miúdo, mas ladino e os outros dois jogadores eméritos. Após vários jogos e depois de muitos saltos, muita ringada nas pernas, alguns impropérios que se escapavam da boca dos rapazes, muitos protestos, muitas gargalhadas, não importava quem ganhava e tudo acabava em grande estafa e canseira. Um novo banho na bela água da ribeira retemperava forças e disposições. Seguia-se o “almoço” normalmente constituído por sandes, pastéis de bacalhau, croquetes, muita fruta, laranjadas e água pura. O coaxar das rãs substituía o transístor ainda não inventado. Depois, os “solteiros” faziam umas explorações rio acima, caçando pássaros com as fisgas e procurando algum coelho que incauto se deixasse apanhar com uma boa varapauzada.
Aí, os “namorados” aproveitavam para umas “marmeladas” com muitos beijinhos e festinhas e muitas tentativas de mãos com tendência para se infiltrarem onde não deviam. As moças iam pudicamente, mas devagarinho, travando esses avanços. Os rapazes, quando já muito excitados, corriam e mergulhavam na água escondendo e esfriando a sua excitação.
O regresso era feito a horas de chegar a casa tomar banho e jantar. Moravam todos perto uns dos outros e nem era necessário despedirem-se. À noite, na rua junto ao muro da casa de um deles, a mais central, havia reunião com jogos e relatos vários de histórias e filmes. Pelas onze da noite ia tudo para a cama. No quarto, as duas manas lado a lado, falavam em voz baixa, contando, uma à outra, aqueles pequenos segredos do que se passara com os namorados. Esses momentos aproximavam ainda mais as duas irmãs fortalecendo o amor que as unia. Os rapazes, nada voltados para esses pensamentos íntimos, caíam na cama como pedras.
A ribeira das Jardas hoje é um caneiro infecto por onde circulam os dejectos de centenas de prédios que a comprimiram. Na maioria do trajecto ela corre sob tubagem de concreto. As matas circundantes desapareceram e o asfalto tapou carreiros e estradas poeirentas. Já não se ouvem as rãs. Os peixes morreram envenenados pela poluição. Apenas os melros ficaram cantando agora poisados em antenas de TV. Os preservativos ocupam os bolsos que dantes continham fisgas. Os computadores substituíram os ringues e bolas. Os relatos de histórias e filmes são agora lidos e vistos na NET. Os tempos mudaram, evoluíram, transformaram-se. Não sendo saudosistas do passado damos connosco perguntando-nos se a rapaziada será mais feliz. Talvez as mentes de hoje se cansem mais cedo. Talvez sejam ocupadas com tanta informação que o espaço para aprendizagem do essencial não seja suficiente. A ribeira das Jardas desapareceu. Continuará eterna na nossa memória.
De Jardas te deram nome por seres longo veio de água límpida tão cheio de tudo. Será que o líquido infecto que corre em teu actual ventre rígido e tubular, memórias de nós contém? Esperemos que o veneno ácido e pútrido em que te transformaste não esqueça os que te fruíram e amaram. Talvez os teus e nossos pensamentos possam levar as gerações vindouras a preservar e manter os lugares ainda existentes semelhantes a ti, para que nossos filhos e netos usufruam, ainda a tempo, de um pouco da felicidade com que então vivíamos.

4 comentários:

  1. O prazer que tive na primeira leitura desta escorreita, clara e límpida prosa (e das restantes onde esta se integra), manteve-se inalterável nesta segunda.
    A simplicidade do estilo torna a leitura fácil e faz-nos transportar quase sem querer para o centro do ambiente descrito.
    Continua.

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  2. Já tinha lido, mas, reli com prazer. Nostalgia da mais tenra juventude, que foi, sem dúvida, mais feliz e interessante, da que têm os jovens de hoje. Pelos espaços livres, pela vivência na natureza, pela aprendizagem ao natural, e não pelas respostas do Google, ou pelos vídeos do You Tube. São momentos como os que descreve, que ficam para sempre guardados na memória, como um tesouro impagável. Abraço!
    José Valente

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  3. Que bonito texto a recordar a vossa Ribeira das Jardas! Também me senti transportado para o meu riacho da meninice, tal como a sua ribeira, transformado num monte de plásticos e esterco! O riacho onde aprendi a nadar, todo nu, claro, mas as nossas queridas andavam por perto! Li, também, a descrição da sua ida ao cinema, nunca fui, como o meu amigo, um ferrenho cinéfilo, mas com escrita dessa era capaz, caso ainda tivesse tempo, de vir a apaixonar-me! Não me digam que estamos velhos só porque relembramos, com tristeza, os paradisíacos locais que embalaram a nossa pequenina juventude e, hoje, estão transformados em canos de esgoto! Não, essa natureza vai acabar por fazer falta a quem, para infelicidade sua, nunca a conheceu! O meu amigo gosta de escrever, ainda bem, é uma actividade que começa a ser rara e a não ter os intérpretes que, como o meu amigo, tão bem a honram. Grande abraço.

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  4. Com amigos que comentam desta forma, dá gosto escrever. O meu obrigado a todos.

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