quinta-feira, 16 de abril de 2020

A Espingarda



O Amigo Balsa, no seu texto de hoje no Facebook, sobre o seu estado de emergência, fez-me recordar objectos que nos ligaram aos nossos ancestros.
Tinha eu os meus seis anitos e fui com a família jantar a casa de um colega do meu pai, um sujeito bastante mais velho, que se tinha reformado da Junta do Crédito Público onde meu pai e um tio da Catarina, minha mulher, trabalhavam em conjunto. Claro que naquele tempo a Catarina já teria os seus 4 anos, mas só nos viemos a conhecer quando vim de Timor em 1961.
Antes do jantar, demos uma volta pela casa do senhor e, numa das dependências, mostrou-nos uma caçadeira calibre 16, em muito bom estado de conservação. Era uma Baiard Belga de canos laterias e já mocha, isto é, sem cães, o que para a época dela era uma modernice, pois muitas mais modernas ainda funcionavam com os ditos. Aquilo para mim foi um objecto maravilhoso, pois naquela idade já andava de fisga no bolso atrás dos incautos passaritos. Poder vir a ter uma coisa daquelas era um sonho inatingível. Após o jantar, demos uma grande volta a pé. Era Verão e estava um calor de derreter o alcatrão da estrada por onde caminhávamos quase não sendo incomodados pelo pouco trânsito. Numa das conversas o nosso anfitrião foi dizendo, que tinha pena de deixar a caça, mas já não se sentia com vontade de calcorrear montes e vales. Foi então que o meu pai propôs comprar-lhe a espingarda. Estávamos apenas há um ano e picos no Cacém e o meu “velhote”, na altura com 34 anos, falava no café com vários amigos caçadores que contavam imensos episódios de caça. Se melhor o pensaram melhor o fizeram e a transacção fez-se. A Baiard mudou de dono e passou para minha casa onde, sempre desmanchada, ocupava uma das prateleiras do quarto de arrumações. E o funcionário público tornou-se caçador. Nunca foi grande atirador, mas a caça abundava e sempre se penduravam uns coelhos e algumas perdizes. Passei a ser o companheiro e ajudante, de varapau em riste batendo aqui e ali nas moitas fazendo, por vezes saltar alguns coelhitos. Nessa altura podia caçar-se todos os dias, mas o trabalho e a escola só nos deixava livres os fins de semana. Tinha 10 anos quando o meu pai me deixou dar o meu primeiro tiro. Um tordo poisado numa oliveira foi a minha primeira vítima, mas foi como se tivesse conseguido caçar uma ave enorme e terrível. Aquele tordo só foi para o tacho uns três dias depois de, todo ufano, o ter mostrado aos rapazes amigos lá da rua. Pelos meus 13/14 anos ao regressar a casa depois de uma caçada aos pássaros com fisga e ratoeiras, verifiquei que nas serras, já muito perto de casa, andava um enorme bando de perdizes. Não perdi tempo, fui a casa peguei na espingarda e meti 4 cartuchos nos bolsos dos calções e aí vou eu no encalço do bando. E não é que o encontrei… O bando levantou, meti a caçadeira à cara e zás. Uma perdiz caiu. Nem sei como fizera aquilo. O certo é que o meu coração pulsava que nem um cavalo e eu mal podia respirar. Apanhei o bicho e fui para casa. Aí começou o meu dilema, ou contava a minha façanha e apanhava uma coça por ter ido mexer na arma, ou não contava e ficava com aquele engulho de não poder mostrar tamanho feito. Acabei por contar. Vá lá, apanhei um ralhete, mas o “velhote” ficou orgulhoso por o filho ter sido capaz de tal acto venatório.
Aquela espingarda deu-nos muitas alegrias e muitas caminhadas em conjunto. Quando fui para Timor, o meu pai estava com 48 anos e desistiu da caça que ali na terra já rareava. Herdei a arma e levei-a para Timor. Começou a ficar velhinha e cheia de folgas. Entretanto o calibre 12 substituiu aqueles calibres mais antigos e estreitos. Ficou em minha casa colocada num armeiro. Sempre que a olhava lembrava-me do meu progenitor entretanto falecido. Levei-a algumas vezes ao Clube de Monsanto para verificar se “aquilo” ainda partia uns pratos, e partia, só que os dois gatilhos já me faziam confusão e na maioria das vezes ficava agarrado ao primeiro e o segundo tiro não partia. As folgas já eram muitas e deitava fumo por tudo o que era lado. Acabei por a entregar na PSP com muitas outras armas de que me desfiz. Tive algumas armas muito mais modernas e ainda tenho uma automática com que raramente caço. Apenas faço uns tiros aos pratos para não perder a “mão”. Mas aquela espingarda ficou na minha memória sempre como a espingarda do Pai.

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