sexta-feira, 3 de abril de 2020

Ártemis (Diana)




O raio da lebre levou dois tiros, enrolou-se toda e quando lhe ia a deitar a mão fugiu que parecia um raio. Que saudades tive do meu Black. Nestas circunstâncias teria corrido como um possesso e acabaria por encontrá-la escondida atrás de um pequeno arbusto. As lebres feridas correm bastante, mas uma ou duas centenas de metros após escondem-se e chegam a deixar passar por elas o seu algoz. Bem, pensei; tenho de ir eu à procura, aqui é que ela não fica. Acabei por encontrá-la uma centena e meia de metros depois. Fui batendo com as botas junto das pequenas moitas e ela lá saltou. Deixei-a correr um bom bocado e prostrei-a com um tiro calmo e calculado. Estava a metê-la num plástico e a colocá-la no bolso transversal do colete quando vi um pequeno veado. Achei estranho. Ali não era costume eles aparecerem. O bicho tinha o focinho ligeiramente levantado. Achei algo de estranho nos seus chifres. Fui-me aproximando devagar, para não assustar o bicho, e foi então que vi uma mão que os segurava. Esquisito, alguém segurava o bicho pelos cornos. Dei mais uns passos e foi então que vislumbrei um vulto atrás do chaparro. Era uma mulher, mas uma bela mulher e estranhamente vinha vestida com uma túnica e de sandálias. Aproximei-me e interpelei-a:
— Diga-me, que faz assim vestida num sítio destes e com um veado preso pelos cornos?
Com uma voz celestial, que me deixou meio tonto, a bela personagem respondeu:
— Isto não é um veado. É um caçador como tu que cometeu o sacrilégio de me espreitar quando tomava banho na ribeira. Não gosto que me vejam nua.
— Sacrilégio? Eu também espreitaria. Não é todos os dias que se vê uma beldade como a senhora, aqui nestas remotas paragens alentejanas. E já agora porque não se vestiu? Porquê de ficar com esse robe transparente tão provocador?
— Estas são as minhas vestes. Eu sou a deusa Ártemis ou Diana se te der mais jeito. Os romanos sempre tiveram a mania de copiarem os Gregos só mudando os nomes.
Fiquei quase sem fala. Pensei, esta tipa está a gozar comigo, mas assim vestida e a segurar veados pelos cornos? Devia ser mesmo sobrenatural. Perguntei:
Uma deusa? Aqui atrás de um chaparro? Não é costume, no nosso país, quando aparecem é mais por cima da rama. E afinal quem era esse desgraçado que seguras pelos cornos?
— Chama-se Acteão e foi vítima de uma das minhas flechas mágicas. Castiguei-o. Não gosto que me espiem e muito menos nua.
— E agora? Que vais fazer com ele?
— Fica assim uns anos e vai viver ao pé de mim até que lhe retire o feitiço. Como um cervo já pode ver-me nua à vontade.
— Olhe Diana ou Ártemis. Não sobra aí uma flecha? Já agora gostava de fazer companhia a esse sortudo veado.
— Não brinques comigo que podes sair-te mal. Sou virgem e prometi a meu pai, Zeus ou Júpiter como queiras, que nunca me casaria e só ajudaria os humanos na caça e na agricultura. Tomo também conta das florestas. Os meus seguidores também me tratam por Artemísia ou Selene.
Fiquei completamente siderado. Devia ser o único mortal a ver uma deusa em carne e osso assim em terrenos alentejanos. Bem, único talvez não seja. Há aquela história inverosímil de uma que andou por cima das azinheiras a falar com criancinhas analfabetas, mas que empinaram grandes segredos tais como a conversão da Rússia, como se elas soubessem que a Rússia não ficava ali para os lados   da aldeia deles, mas nunca tinham ouvido falar. Também nunca saíram dali. Ainda bem que vim à caça. Costumo vir com amigos. Assim só, ninguém vai acreditar. A deusa era de uma beleza estonteante e eu quis prolongar aquele momento.
— Ártemis, sei um pouco da tua história, quer a grega quer a romana, sei que és irmã gémea de Apolo, ele também bem bonito. Sei que és filha de Leto (Grécia) ou Latona (Roma). Parece que era uma grande defensora das crianças. Houve um tipo chamado Homero que te descreveu como senhora das terras selvagens defensora de todos os animais. Pergunto-te, se os defendes porque os caças?
— E tu? Também os caças. Não gostas deles?
— Tens razão. Adoro bichos, mas na caça mato-os. Não os deixo sofrer e persigo sempre peças feridas.
— Comigo passa-se o mesmo. Caço-os, mas também os protejo, assim como também protejo as raparigas virgens.
 — Olha Diana, aqui pela terra não te safavas pois, para encontrares virgens tens de ir aos infantários e pré-primários, que elas agora mal largam os soquetes começam logo a pensar nos jogos de sexo. Também essa de prometeres ficar virgem para todo o sempre foi uma má ideia. Uma deusa linda como tu deve ter montes de pretendentes lá no Olimpo.
— Aos três anos, ao colo de meu pai, pedi-lhe seis desejos: manter-me sempre virgem, ter vários nomes para me diferenciar do meu irmão gémeo, ser portadora de luz, ter um arco e flechas, poder usar uma túnica à altura do joelho para poder correr na caça e ter sessenta filhas todas virgens como eu. Tive tudo isso incluindo sessenta ninfas virgens que sempre me acompanham quando delas preciso para me ajudarem na caça e no apoio a crianças.
— Já li em qualquer lado que tudo isso foi cantado por um poeta chamado Calímaco. Pena eu não ter talento para poder cantar a tua beleza. Obrigado Diana por te teres aproximado de mim.
Acordei encostado à sombra de um chaparro. Ártemis já lá não estava. Um pequeno veado ruminava à minha frente não tirando os olhos de mim. Disse-lhe:
— Acteão, és um sortudo.
O bicho deu dois pinotes e fugiu a correr pela vegetação.



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