domingo, 12 de junho de 2022

A Tia

 

A tia Lucília era gorda, feia e chata. Morava no Cacém e visitei-a várias vezes sem saber bem quem ela era. Só mais tarde a relacionei como irmã da minha Avó. Não tinham nada a ver uma com a outra. A minha Avó era transmontana, forte, directa e de voz um pouco esganiçada, dizendo aquilo que sentia e achava por bem. A Tia Lucília era mais citadina de voz forte, arrogante e um pouco roufenha. Só me aborrecia por ter o nome da minha Mãe. Como podia? Para mim as Lucílias eram lindas, boas e carinhosas. Aquilo não podia ser uma Lucília. Mas a minha Mãe, de tempos a tempos lá me dizia: “Temos de ir visitar a Tia Lucília.” Era como quem me arrancava dentes. Lá era obrigado a limpar os pés à entrada e a ter de biqueirar aqueles horrorosos canídeos. Realmente aqueles cães eram horrorosos, daqueles minorcas de raça incerta, mas de focinho amachucado com olhos esbugalhados. Eram desconfiados, matreiros e rosnavam a qualquer pessoa. Eu odiava-os e sempre que podia dava-lhes biqueirada da grossa que os punha a ganir. A Tia perguntava: “Que fizeste aos cães?” e eu disfarçando dizia sempre que nada, eles é que não gostavam de mim. Assim que a Tia desviava o olhar, toma! Lá saía outra biqueirada que, apanhando-os desprevenidos, os fazia ganir de novo. Raio de canídeos, eu que gostava tanto de cães era capaz de esganar aquelas abencerragens de animais. A Tia era casada com um velhote, um capitão do serviço geral, Carvalho de seu nome, lateiro, como chamávamos aos que vinham de sargentos. Mas ao contrário do raio da velha, o velhote até era simpático. Demasiado gordo, estava sempre sentado num velho maple. Julgo que nunca o vi em pé. Falava muito comigo e eu gostava de o ouvir. Como andava nos Pupilos do Exército, estava sempre a perguntar-me se eu queria seguir a tropa. Naquela altura ainda não sabia, mas a vida militar interessava-me. Era o seu segundo casamento. Enviuvara e acabara por casar com aquela megera. Tinha um neto célebre. Era o famoso Rogério de Carvalho jogador do Benfica. Acabou por morrer deixando a velha tia viúva. Não lhe vi grande desgosto. Mulheres daquelas não se desgostam por tão pouco. Mas nem todo o mal sempre dura e a velha acabou por receber em casa uma neta do defunto bastante novita. Uma miúda simpática e gira. Nessa altura eu já perguntava à minha Mãe: “Quando vamos voltar a ver a tia Lucília?” Claro que a Mãe nada tinha de estúpida e viu logo que eu queria era estar com a miúda. Servia-me da minha irmã como instrumento de aproximação e lá passava eu uns tempos a “namorar” a gaiata. A Tia, um dia morreu. Que a terra lhe seja leve com a Serra de Monsanto às costas e a Torre de Belém de contrapeso. Os cães já não existiam e a miúda teve um desgosto enorme. Como se pode gostar tanto de uma velha daquelas? Fomos ao velório, a filha, dela e do capitão, raramente por lá aparecia, mas na morte lá estava com o marido pompa e circunstância. O velório foi chique, com muita gente bem vestida, bolos, chá e umas tapas. A miúda chorosa nem comia. Lá consegui que a minha irmã a levasse para uma sala sem ninguém e fui com elas. Tanta anedota contei e tanta macacada fiz que a garota já ria a bandeiras despregadas esquecendo-se da morta. Depois foi-se embora. Nunca mais a vi e nem me lembro do nome dela. Ficou o sorriso.

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