(Parte de um capítulo de O Lagarto)
A
mulher não gostava nada dessa sua actividade. Qualquer ocupação que o marido
tivesse em que ela não participasse, não era lá muito apreciada. Era uma
questão de possessivismo. O marido era dela e para ela. A caça era para ele e
outras companhias de que ela não fazia parte. Isso incomodava-a, mas ajudava-o
preparando o petisco para o almoço que no dia seguinte ele comeria juntamente
com o grupo dos outros caçadores seus companheiros de jornada. Ele bem sabia
que, no fundo, aquela sua actividade, não era lá muito bem-querida pela sua
mulher. Por norma ficava só quase todos os domingos durante a época cinegética
e tudo que a afastasse dele entristecia-a. Por outro lado, também sabia, que
tudo aquilo que lhe dava prazer, era por ela tolerado e apoiado. Trabalhava uma
semana inteira numa profissão de desgaste intenso e aquela actividade ao ar
livre era uma panaceia que lhe devolvia a força para enfrentar a realidade da
semana seguinte. Nada lhe dava mais prazer do que aquela simbiose com a
natureza, aquele descanso de alma que se sente no campo, a caminhada, o
convívio com os companheiros, a companhia do seu parceiro fiel, da conversa que
com ele ia mantendo durante a procura, esquecendo-se ou nem sequer tendo noção
de que o bicho não responderia por palavras mas que os sinais que lhe devolvia
se transformavam nas ditas que naturalmente não poderia pronunciar. A prática
do tiro era outra actividade que também o preenchia apesar do pouco tempo de
que dispunha para o praticar no clube, onde era sócio. O tiro na caça era uma
satisfação. A arma levada ao ombro num movimento coordenado, rápido mas suave,
a cara sobreposta sobre a coronha, o cano no seguimento da linha dos olhos, o
seguir da peça, o passar por ela, o disparar sem parar o movimento e aquela
sensação da peça abatida mesmo antes de ser atingida era um prazer quase
orgástico. Mesmo quando as coisas não corriam bem e errava o tiro, não sentia
frustração e logo partia para outra ainda com mais vontade na procura. Achava
muito engraçada a atitude do seu cão, quando após dois ou três tiros e a peça
não caía, o bichano o olhava com alguma interrogação como que perguntando: como
aconteceu isto? Então o bicho foi-se? Mas logo abanava a cauda como quem lhe
perdoava o erro e o incentivava a prosseguir sem esmorecimento.
Às
vezes, no convívio com casais amigos, era confrontado com opiniões contra a
caça numa defesa exagerada dos direitos dos animais, na defesa dos bichos
selvagens e da preservação das espécies. Defesa normalmente efectuada por
fundamentalistas urbanos sem terem qualquer conhecimento da natureza, do
interior do país, dos usos e costumes das populações. Pessoas que cresceram
arrastando rabos obesos sobre cadeiras de cafés e discotecas, que nunca viram
um bicho nascer ou morrer, que se esquecem de que os bifes que deglutem sofregamente
são provenientes de um animal que sofreu com o abate, que não diferenciam um
coelho duma lebre, que nunca viram uma vaca sem ser em imagem ou no prato
transformada em tornedó. Estes indivíduos vêm o caçador apenas como mais um
predador, esquecem-se que um caçador que se preze é um amante da natureza,
protege e faz renovação de espécies, faz planos de abate de forma a não
causticar espécies e permitir que o desenvolvimento da próxima época seja maior
que o da anterior. Esquecem que após a liberalização que se seguiu à revolução
de Abril, a abertura desordenada de direito à caça, ia acabando com as espécies
e que agora, com a ordenação do território cinegético, as associações de
caçadores voltaram a por em ordem a actividade, estando à vista os resultados
na criação e desenvolvimento da caça que tanto prazer dá a milhares de pessoas
além do interesse económico que tem para o país.
Naquele
dia começaram muito cedo. À chegada, após os cumprimentos, ditos e graçolas
lançados aos companheiros que não via desde a semana anterior, organizaram
portas e linhas, dispuseram os lugares, chamaram os cães e empreenderam a
marcha. Chapéu na cabeça, aba ligeiramente flectida sobre o olho direito, para
tapar do sol ainda não nascido, mas a mostrar já a sua claridade, arma cruzada
à frente do peito, cartuchos inseridos, último sinal ao cachorro para moderar o
andamento, iniciaram a marcha.
Poucos
metros andados, a atitude do seu companheiro canino deu sinal de caça próxima.
A excitação começou a apoderar-se de todo o seu corpo. Os dedos seguraram a
arma que foi pondo a jeito. Os sinais eram cada vez mais de caça próxima. À
paragem do cão, aproximou-se com cuidado tentando adivinhar para que lado a
perdiz iria saltar. Esperou um pouco e deu voz ao cão: – Anda com ela!
O
tiro atingiu a perdiz em cheio que morreu instantaneamente. Quando o seu
companheiro lha deixou na mão o ciclo completou-se. Perdiz, cão e Homem
tinham-se encontrado.
Ao
almoço, a descrição da caça àquela perdiz, era feita com gestos e sons algo
exagerados pela loquacidade um pouco provocada pela ingestão das iguarias,
sempre tão saborosas quando comidas ali no monte e também por alguns vapores do
bom vinho indispensável nestes almoços.
Ali,
os homens provavam e demonstravam não serem matadores de bichos, mas apenas
caçadores.
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