domingo, 19 de março de 2017

A Caça


(Parte de um capítulo de O Lagarto)

– "Ó rapaz, se um dia, por qualquer motivo deixas de caçar, vais ser um infeliz."
A mulher não gostava nada dessa sua actividade. Qualquer ocupação que o marido tivesse em que ela não participasse, não era lá muito apreciada. Era uma questão de possessivismo. O marido era dela e para ela. A caça era para ele e outras companhias de que ela não fazia parte. Isso incomodava-a, mas ajudava-o preparando o petisco para o almoço que no dia seguinte ele comeria juntamente com o grupo dos outros caçadores seus companheiros de jornada. Ele bem sabia que, no fundo, aquela sua actividade, não era lá muito bem-querida pela sua mulher. Por norma ficava só quase todos os domingos durante a época cinegética e tudo que a afastasse dele entristecia-a. Por outro lado, também sabia, que tudo aquilo que lhe dava prazer, era por ela tolerado e apoiado. Trabalhava uma semana inteira numa profissão de desgaste intenso e aquela actividade ao ar livre era uma panaceia que lhe devolvia a força para enfrentar a realidade da semana seguinte. Nada lhe dava mais prazer do que aquela simbiose com a natureza, aquele descanso de alma que se sente no campo, a caminhada, o convívio com os companheiros, a companhia do seu parceiro fiel, da conversa que com ele ia mantendo durante a procura, esquecendo-se ou nem sequer tendo noção de que o bicho não responderia por palavras mas que os sinais que lhe devolvia se transformavam nas ditas que naturalmente não poderia pronunciar. A prática do tiro era outra actividade que também o preenchia apesar do pouco tempo de que dispunha para o praticar no clube, onde era sócio. O tiro na caça era uma satisfação. A arma levada ao ombro num movimento coordenado, rápido mas suave, a cara sobreposta sobre a coronha, o cano no seguimento da linha dos olhos, o seguir da peça, o passar por ela, o disparar sem parar o movimento e aquela sensação da peça abatida mesmo antes de ser atingida era um prazer quase orgástico. Mesmo quando as coisas não corriam bem e errava o tiro, não sentia frustração e logo partia para outra ainda com mais vontade na procura. Achava muito engraçada a atitude do seu cão, quando após dois ou três tiros e a peça não caía, o bichano o olhava com alguma interrogação como que perguntando: como aconteceu isto? Então o bicho foi-se? Mas logo abanava a cauda como quem lhe perdoava o erro e o incentivava a prosseguir sem esmorecimento.
Às vezes, no convívio com casais amigos, era confrontado com opiniões contra a caça numa defesa exagerada dos direitos dos animais, na defesa dos bichos selvagens e da preservação das espécies. Defesa normalmente efectuada por fundamentalistas urbanos sem terem qualquer conhecimento da natureza, do interior do país, dos usos e costumes das populações. Pessoas que cresceram arrastando rabos obesos sobre cadeiras de cafés e discotecas, que nunca viram um bicho nascer ou morrer, que se esquecem de que os bifes que deglutem sofregamente são provenientes de um animal que sofreu com o abate, que não diferenciam um coelho duma lebre, que nunca viram uma vaca sem ser em imagem ou no prato transformada em tornedó. Estes indivíduos vêm o caçador apenas como mais um predador, esquecem-se que um caçador que se preze é um amante da natureza, protege e faz renovação de espécies, faz planos de abate de forma a não causticar espécies e permitir que o desenvolvimento da próxima época seja maior que o da anterior. Esquecem que após a liberalização que se seguiu à revolução de Abril, a abertura desordenada de direito à caça, ia acabando com as espécies e que agora, com a ordenação do território cinegético, as associações de caçadores voltaram a por em ordem a actividade, estando à vista os resultados na criação e desenvolvimento da caça que tanto prazer dá a milhares de pessoas além do interesse económico que tem para o país.
Naquele dia começaram muito cedo. À chegada, após os cumprimentos, ditos e graçolas lançados aos companheiros que não via desde a semana anterior, organizaram portas e linhas, dispuseram os lugares, chamaram os cães e empreenderam a marcha. Chapéu na cabeça, aba ligeiramente flectida sobre o olho direito, para tapar do sol ainda não nascido, mas a mostrar já a sua claridade, arma cruzada à frente do peito, cartuchos inseridos, último sinal ao cachorro para moderar o andamento, iniciaram a marcha.
Poucos metros andados, a atitude do seu companheiro canino deu sinal de caça próxima. A excitação começou a apoderar-se de todo o seu corpo. Os dedos seguraram a arma que foi pondo a jeito. Os sinais eram cada vez mais de caça próxima. À paragem do cão, aproximou-se com cuidado tentando adivinhar para que lado a perdiz iria saltar. Esperou um pouco e deu voz ao cão: – Anda com ela!
O tiro atingiu a perdiz em cheio que morreu instantaneamente. Quando o seu companheiro lha deixou na mão o ciclo completou-se. Perdiz, cão e Homem tinham-se encontrado.
Ao almoço, a descrição da caça àquela perdiz, era feita com gestos e sons algo exagerados pela loquacidade um pouco provocada pela ingestão das iguarias, sempre tão saborosas quando comidas ali no monte e também por alguns vapores do bom vinho indispensável nestes almoços.
Ali, os homens provavam e demonstravam não serem matadores de bichos, mas apenas caçadores.

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