Capítulo de "O Lagarto". Mais um episódio passado em Timor, já lá vão uns anos bons...
...
O
Alferes na moto com a caçadeira a tiracolo, arrancou direito à ribeira de
Lautem. Ali, as rolas e codornizes eram muitas e podia, com poucos tiros,
apanhar bastantes. De miúdo sempre lhe ficara esta mania da caça. Desde
lagartixas a todos os bichos, logo que podia, lá se dedicava a apanhá-los com
aquele vício terrível de predador sem necessidade. Naquela terra sentia-se em
casa, bicharada não faltava. Horas depois com uma cinturada de rolas lá voltava
para Dili. Em casa do seu amigo Pilão, bastante mais velho, que conhecera na viagem, deixava a caça, que depois de bem
cozinhada pela sua mulher, servia de pretexto ao almoço em conjunto. As relações
conseguidas eram absolutamente necessárias ao equilíbrio emocional de um jovem
que deixara a casa paterna, namorada e amigos para servir militarmente no
Ultramar. Naquela altura e tempo, jovem e ingénuo que era, não se dava conta de
como as pessoas, na sua complexidade, de mentalidades tacanhas a viver em
terras distantes e climas inóspitos, pensavam. Um dia, o seu amigo pediu-lhe
que não fosse tão assíduo na sua casa. Quando percebeu o porquê, ficou
completamente arrasado. Mas acabou por compreender. A mulher do seu amigo era
uma mulata linda, terna e filha daquela terra quente. Muito mais nova do que
ele, era alvo fácil das conversas maledicentes das gentes que, na maioria,
incultas e desocupadas, nada mais tinham dentro das mentes que pensamentos
arrasadores das virtudes de quaisquer mulheres que mais assiduamente mantinham
contactos com os militares oriundos do continente, prestando serviço naquelas
paragens. Mais tarde veio a perceber que muitas vezes havia razão para tal.
Em
Timor, terra de muita miscigenação, proliferavam filhos, na sua maioria, de antigos deportados que
Salazar para lá enviara. Estes, lá longe, deixariam de pensar em “aventuradas”
políticas que poderiam pôr em causa a sua liderança num País que o ditador
queria calmo, pobre, quieto e não muito evoluído, para assim não se oporem à
sua liderança de homem “sóbrio, sapiente, determinado, crente, e patriota”. O
“seu” Portugal, enquanto ele pudesse, “não seria palco daquelas malucadas
vividas nos Países, ditos democráticos, em que os Governos eram permanentemente
alvo de contestação”. Estes deportados, ao fim de alguns anos, por força da
sobrevivência, tornavam-se cultivadores do belo café de Timor e, então já
abastados, acabavam em membros do Conselho do Governo, apoiando o Governador
salazarista, lá colocado. Os seus filhos rapazes, normalmente puxavam mais para
a sua terra e suas gentes, acabando por casar com outras mulatas ou até a
amancebarem-se com mulheres naturais. Pelo contrário as raparigas tinham voos
mais altos, quase todas sonhando com o casamento com um branco que as levasse
dali até ao sonho metropolitano, que não conheciam, mas, do que ouviam,
julgavam ser o eldorado. Claro que, os militares, único alvo possível, quase
sempre se aproveitavam, mas poucos se deixavam prender. As moças, coitadas,
acabavam por casar com os seus iguais, muitas vezes levadas pelo romantismo e sonho. Já que não tinham conseguido o objectivo total, deixavam-se
enredar em relações extraconjugais com os “amigos” que assim conseguiam fugir a
uma estadia que, sem aconchego, namoro e sexo, seria forçosamente um degredo.
Quando
compreendeu a situação deixou de usufruir da companhia do seu amigo em sua
casa. Limitou-se a encontrá-los no clube ou noutros locais, mas fugia ao
convívio mais permanente. Não soube se a mulher dele, moça encantadora e
fidelíssima, percebeu a mensagem. Se sim, nunca o deu a entender.
O
seu tempo passou a ser mais ocupado com a caça aos veados, a caça submarina e o
convívio com os seus camaradas. Aquela terra era um Paraíso. Sossego,
bicharada, paisagens de sonho, praias maravilhosas, calor... Pois... o calor...
O calor é afrodisíaco, mesmo que se não queira a testosterona não deixa um
homem em paz e, as raparigas começam a ser obsessão, mesmo contra tudo e todos,
mesmo contra as convicções, acabando-se envolvido em casos amorosos complicados.
Com ele assim aconteceu.
Parece
impossível, mas aquela terra, que o Salazar se esforçava para mostrar como
portuguesíssima, com um Povo Patriota e orgulhoso de ser Português, foi dos
territórios do Império, o mais difícil de pacificar. Ainda no século XX, no tempo
do Governador Celestino da Silva, houve campanhas militares de
pacificação, com surtos ao interior, e muitas mortes entre a
população dissidente.
Estava-se
em 1959. Uma tentativa de sublevação fora descoberta, tendo originado, na sua
repressão, dezenas de mortes, prisões e deportações. Muitos desses dissidentes,
deportados para outras “províncias ultramarinas”, só puderam regressar à sua
Terra após 25 de Abril.
Mal
chegado, teve de patrulhar a cidade, de noite, armado até aos dentes,
prevenindo qualquer atitude mais temerária de possíveis seguidores dos então
detidos. Foi nessa altura que, da Índia, chegou a primeira Companhia de
soldados brancos continentais. Até aí toda a tropa era indígena sendo
metropolitanos apenas os quadros. Parece impossível, mas, com a chegada desses
homens, duplicou a população branca de Dili. Veja-se o que era aquela Terra!...
Felizmente,
nós, com a nossa maneira simples, sortuda e desenrascada de fazer as coisas,
conseguimos dar a volta à situação acabando com as veleidades dos golpistas e
Timor voltou a ser o Paraíso na Terra. Ainda bem para o rapaz, que conseguiu
tirar da sua estadia o melhor partido, tendo vivido boas e maravilhosas
aventuras sempre bem acompanhado e acarinhado. Conseguiu partir uma perna, ter
problemas com a cura durante muitos meses e, quase não deu por isso. Quando se
é jovem, cheio de vida e sonhos, as contrariedades passam sem darmos por elas.
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