quinta-feira, 2 de março de 2017

CAÇADAS

Em 1993, o nosso Boletim (Associação dos Pupilos do Exército) fez 50 anos. No trimestre de Out/Dez, o boletim nº 149 foi comemorativo da efeméride. O título desse boletim foi: “Os Pilões de Sempre”. Para esse boletim, muitos ex-alunos contribuíram com os seus escritos. Eu também fui convidado para o fazer e foi a primeira vez que contribuí com algo para a nossa publicação. Resolvi então escrever sobre “Caçadas”. Troquei de computador e passei os conteúdos para a nova máquina. Como foi a primeira vez que passei dados de um computador para outro, meti água e aqueles escritos foram-se. Encontrei agora um exemplar desse boletim e aproveitei para recuperar esse meu artigo. Aqui fica, no meu blog, para a posteridade.

1 – Lembranças do velho Pilão

Ainda hoje quando vejo uma lagartixa tenho a tentação de agarrar uma palha de aveia brava, elaborar um impecável laço na ponta, e dar-lhe caça imediata como fazia há quarenta e tal anos atrás no célebre muro da ribeira na 1.ª Secção.
Era um muro que exercia atracções várias. Desde a caça às ratas, em que o velho e saudoso Bily, cão fogoso e destemido que agarrava tudo o que fosse bicho, nos ajudava, passando pela serventia que tinha para o “salto”, até à caça das lagartixas, para tudo servia.
Sempre que havia oportunidade, normalmente acompanhado pelo Isca (19480251), pelo Calhau (19480247) e alguns outros que certamente o recordarão ao lerem esta lembrança, lá estava eu de palha em punho espreitando as pobres bichanas que ao sol, incautas e preguiçosas, esperavam pacientemente que as moscas se colocassem a distância necessária para que com um salto repentino lhes servissem de almoço.
Depois de várias peripécias e já com algumas lagartixas penduradas, o Isca, o mais irrequieto de todos nós, inventava um divertimento que consistia em fomentar lutas titânicas entre os pobres repteis que, enfurecidos pelo cativeiro, se tornavam ferozes crocodilos mordendo-se mutuamente. Depois, soltos e colocados novamente no muro, os bichos serviam de alvo às certeiras pedradas lançadas pelas fisgas que sempre nos acompanhavam. Os pobres animais raramente escapavam à brincadeira da rapaziada que agia sem maldade mas apenas por gaiatice.
Hoje o muro da ribeira não existe. Os imperativos da urbanização não se compadecem com velhas recordações. É sempre com saudade que passo pela 1.ª Secção e me revejo junto do muro, com os velhos companheiros à caça das lagartixas, como se os quarenta anos passados não tivessem existido.

2 – Lembranças de África

No planalto imenso a quietude era apenas perturbada pela ondulação da folhagem e pelo gritar das aves.
Semi-deitado no banco do jeep deleitava-me com a paz circundante enquanto saboreava a merenda acompanhada de cerveja enlatada já meia mole.
A hora era de paragem. O crepúsculo não permitia a visão, mas era cedo para ligar o farolim. Os homens, deitados sobre o capim, sussurravam talvez relembrando anteriores caçadas.
A escuridão caiu sobre nós. Peguei na velha 375 e fiz sinal. A paz da savana foi que quebrada pelo falatório e movimentação dos homens preparando o material. Os motores roncaram, acenderam-se as luzes, e a caçada começou.
De 375 nos joelhos, saltando a cada solavanco, ia dizendo graçolas ao Lino que, com o farolim varria todo o mato à nossa volta.
Dava gosto observar como aquele homem farolinava. Ele não via, lia no terreno e na vegetação. Com uma única passagem observava o rasto dos animais, os seus excrementos, a direcção por eles tomada e pelas ramagens sabia se os elefantes por ali tinham anbdado. A sensação de caça próxima excitava-me, o meu condutor, homem que conduzia com um olho no bicho outro na picada, disse-me: “Quando as encontrarmos já sabe, apenas um tiro e mortal como de costume. “OK” respondi “já sabes que comigo eles não sofrem.
Mal acabara de falar quando um sinal do Lino me levou a seguir o foco do farolim mostrando-me ao fundo uns olhos bem luminosos. Muito silenciosamente aproximámo-nos das pacaças já alerta pelo ruído e pela luz. Levantavam e baixavam as cabeças denotando inquietação e curiosidade. Quando persentiram o perigo arrancaram. Como que impelido por uma mola o jeep deu um salto e a perseguição começou.
De cotovelos fincados do pára-brisas, baixado sobre o “capot”, e fazendo esforços para me aguentar, apontei ao maior macho que galopava 30 metros à nossa frente. O tiro partiu. O animal atingido desmoronou-se sob um manto de poeira, enquanto os restantes se dispersavam sumindo-se na escuridão. Parámos no momento em que o pacação se levantou. Ficámos frente a frente durante alguns segundos. No silêncio que se seguiu admirei o belo animal que, com chispas no olhar enfrentava os seus inimigos. No instante em que investiu o tiro atingiu-o no coração. Aproximámo-nos. A excitação foi-se esbatendo lentamente enquanto descia do “jeep”. Olhei mais uma vez o corpulento animal abatido.
“Carreguem-no” disse para os homens que, entretanto, se tinham juntado a nós. “Dois tiros? Está a perder qualidades” disse-me o condutor com ar gozão.
Sorri-lhe e dirigi-me ao “jeep” pensando que nem um devia ter dado, mas a febre da caça tomou-me de novo e preparei-me para seguir o rasto da manada que não devia estar longe.

3 – Caçada aos facocheros

O carro ziguezagueava por entre troncos, pedras e buracos. Em cima os caçadores procuravam não acabar no chão ou com a cabeça esmagada contra alguma ramagem. Os tiros, forçosamente mal apontados, iam partindo e deixando no chão rasgos junto dos bichos. A excitação era grande. A poeira secava e entupia as gargantas. O condutor fazia prodígios para se manter na rota dos animais, que serpenteavam escolhendo os piores caminhos. De solavanco em solavanco, tio a tiro, empolgados pela correria, lá iam seguindo os porcos. Um dos animais caiu varado. O carro parou. Alguns tiros para os que fugiam, perderam-se no mato. Tremendo de emoção e excitação, os caçadores sentaram-se junto do facochero abatido. Acenderam-se cigarros. Um dos companheiros falou: “Um dia destes ainda partimos a cabeça”. Todos sorriram. Carregaram o animal, subiram para o carro e continuaram a caçada.

4 – Homens e Bichos

Homem e bicho olharam-se. Nenhum alterou a sua imobilidade. Ambos conheciam o seu valor. Homem que não foge, quando se encontram, é homem habituado à caça e não tem medo. Aquele então, olhava a direito e de forma fixa. Não era um olhar de ódio, mas de admiração e desafio. O primeiro a movimentar-se foi o bicho levantando-se pachorrentamente. Bocejou e voltou costas. O homem levantou a arma e apontou. O bicho, após alguns passos, voltou-se e fixou o adversário. Os olhares cruzaram-se. Ambos sabiam que um movimento mais agressivo podia ser a morte. Após alguns segundos, o bicho seguiu o seu caminho e a arma quedou-se emudecida.


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