quinta-feira, 11 de junho de 2020

Birdman (A Inesperada Virtude da Ignorância)

(Publicado no Boletim da APE nº 241 de 2016)

 

O homem sempre teve o desejo de se transmutar. O actor não é mais do que o indivíduo que sente necessidade de largar o seu ser normal e transformar-se em diversas personagens. No palco ele muda a sua personalidade e, muitas vezes até se transforma naquilo que é realmente, deixando para trás o seu ego de todos os dias, uma representação permanente. Riggan Thomson (Michael Keaton) foi durante anos protagonista de Birdman, uma figura de super-herói que se tornou um ícone, herói na imaginação dos espectadores. Após três filmes, recusa-se a interpretar um quarto, resolvendo voltar ao teatro tentando demonstrar a si próprio que pode ser um grande artista sem Birdman e realizar-se como actor, encenador e produtor. Mas a dúvida persegue-o, assim como o seu próprio personagem que a todo o momento o questiona, pondo em causa a peça que tenta encenar e representar. A voz de Birdman persegue-o e angustia-o. Nesses momentos de dúvida e frustração é dado a fúrias que o tornam até capaz de fenómenos de telequinésia e levitação, fazendo voar objectos que lança contra as paredes. Com ele contracenam vários actores a quem esteve ligado, tais como a sua antiga e também a actual companheiras, pessoas que não o ajudam a encontrar o que pretende, mas antes pelo contrário lhe causam ainda mais constrangimento e ansiedade. A sua própria filha é sua colaboradora tentando dar-lhe algum sossego de espírito mas ao mesmo tempo colocando-lhe culpas por aquilo que não foi e deveria ter sido. Um desses colaboradores é Mike Shiner (Edward Norton), excelente na interpretação, não ficando nada atrás de Micael Keaton, num papel de um excelente actor, também ele demasiado misturado como homem e actor que se diz, em cena, mais verdadeiro e honesto do que na própria vida. Tudo isto num jogo de sentimentos e exploração de pensamentos só possíveis pelo intrincado cérebro humano. Bom seria que o nosso cérebro não se tivesse desenvolvido ao ponto de criar desejos e mitos. Os deuses não existiriam e a vida seria simples e linear. Riggan, cada vez mais endividado e falido, duvidoso de si próprio, cheio de temores pela incerteza do sucesso, cada vez mais atormentado por Birdman, que lhe aparece (durante uma viagem de táxi) e o leva a voar dizendo-lhe “tu és Birdman e só assim te realizarás”, resolve pôr termo à vida aproveitando a última cena da peça de Raymond Carver  " O que falamos quando falamos de amor ", um suicídio do personagem principal perante o adultério da sua companheira, substituindo a arma fingida por uma verdadeira mas, talvez por inépcia ou arrependimento à última hora, apenas atinge o próprio nariz. Já no hospital e com o nariz refeito, é visitado pela filha que lhe leva flores e pela primeira vez, tem para com ele um gesto de ternura. Assim que a filha sai, Riggan olha o nariz no espelho e sorri. Vai até a janela abrindo-a, e tal como Birdman lança-se no espaço. A filha ao regressar ao quarto espreita pela janela aberta olha primeiro para baixo e depois para cima, sorrindo. Birdman libertara-se finalmente.

Parabéns a Alejandro González Iñárritu, mexicano radicado nos USA, pelo excelente filme, filmado como se de uma única cena continuada se tratasse.

 


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