(Publicado no Boletim da APE nº 241 de 2016)
O homem sempre teve o desejo de
se transmutar. O actor não é mais do que o indivíduo que sente necessidade de
largar o seu ser normal e transformar-se em diversas personagens. No palco ele
muda a sua personalidade e, muitas vezes até se transforma naquilo que é
realmente, deixando para trás o seu ego de todos os dias, uma representação
permanente. Riggan Thomson (Michael Keaton)
foi durante anos protagonista de Birdman, uma figura de super-herói que se
tornou um ícone, herói na imaginação dos espectadores. Após três filmes,
recusa-se a interpretar um quarto, resolvendo voltar ao teatro tentando
demonstrar a si próprio que pode ser um grande artista sem Birdman e realizar-se
como actor, encenador e produtor. Mas a dúvida persegue-o, assim como o seu
próprio personagem que a todo o momento o questiona, pondo em causa a peça que
tenta encenar e representar. A voz de Birdman persegue-o e angustia-o. Nesses
momentos de dúvida e frustração é dado a fúrias que o tornam até capaz de
fenómenos de telequinésia e levitação, fazendo voar objectos que lança contra
as paredes. Com ele contracenam vários actores a quem esteve ligado, tais como
a sua antiga e também a actual companheiras, pessoas que não o ajudam a
encontrar o que pretende, mas antes pelo contrário lhe causam ainda mais
constrangimento e ansiedade. A sua própria filha é sua colaboradora tentando
dar-lhe algum sossego de espírito mas ao mesmo tempo colocando-lhe culpas por
aquilo que não foi e deveria ter sido. Um desses colaboradores é Mike Shiner
(Edward Norton), excelente na interpretação, não ficando nada atrás de Micael
Keaton, num papel de um excelente actor, também ele demasiado misturado como
homem e actor que se diz, em cena, mais verdadeiro e honesto do que na própria
vida. Tudo isto num jogo de sentimentos e exploração de pensamentos só
possíveis pelo intrincado cérebro humano. Bom seria que o nosso cérebro não se
tivesse desenvolvido ao ponto de criar desejos e mitos. Os deuses não
existiriam e a vida seria simples e linear. Riggan, cada vez mais endividado e
falido, duvidoso de si próprio, cheio de temores pela incerteza do sucesso,
cada vez mais atormentado por Birdman, que lhe aparece (durante uma viagem de táxi)
e o leva a voar dizendo-lhe “tu és Birdman e só assim te realizarás”, resolve
pôr termo à vida aproveitando a última cena da peça de Raymond Carver " O que falamos quando falamos de amor ",
um suicídio do personagem principal perante o adultério da sua companheira,
substituindo a arma fingida por uma verdadeira mas, talvez por inépcia ou
arrependimento à última hora, apenas atinge o próprio nariz. Já no hospital e
com o nariz refeito, é visitado pela filha que lhe leva flores e pela primeira
vez, tem para com ele um gesto de ternura. Assim que a filha sai, Riggan olha o
nariz no espelho e sorri. Vai até a janela abrindo-a, e tal como Birdman
lança-se no espaço. A filha ao regressar ao quarto espreita pela janela aberta
olha primeiro para baixo e depois para cima, sorrindo. Birdman libertara-se
finalmente.
Parabéns a Alejandro González Iñárritu, mexicano
radicado nos USA, pelo excelente filme, filmado como se de uma única cena
continuada se tratasse.
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