quinta-feira, 11 de junho de 2020

O Padre Ruy


 Esta andava perdida, mas merece estar aqui:

 

Ruy Correia Leal, filho de um general, na altura comandante da antiga Escola do Exército, apareceu nos Pupilos do Exército como padre capelão. Logo de início o nosso padre mostrou-se totalmente diferente daquilo a que os padres nos habituaram. Além de ser um rapaz novo, era companheiro da rapaziada, acompanhava-nos à praia, jogava futebol com a malta e já dizia o seu palavrãozito de quando em vez. Eu, com 17 anos e no meu 1º ano de contabilistas, começara a pôr em causa a minha fé que, até ali, sempre devotara ao Deus que desde muito pequenino me ensinaram a adorar e respeitar. O meu pai, agnóstico, pedia-me para acompanhar a mãe, minha avó, à missa todos os domingos, além da escola e do estado novo que nos obrigava a frequentar a catequese. Aborrecia-me ter de empinar todas aquelas rezas, melopeias que tinham de ser ditas sem falhar uma vírgula, mas por outro lado, encantavam-me os textos bíblicos e as histórias fascinantes da bíblia das escolas. Sabia quase de cor todos os trechos desde Sansão aos irmãos Macabeus e quejandos. Curioso que era li muita coisa de vários autores, muitos deles ateus convictos que se interrogavam e punham em causa todas as religiões. Não é fácil deixar de acreditar em algo que nos vem sendo inculcado desde criança e, como tal, tinha grandes conversas com o padre Ruy solicitando-lhe explicações para aquilo que eu pensava e para as dúvidas que tinha. De princípio, o nosso padre ainda teve alguma paciência para comigo, mas quanto mais difíceis se tornavam as minha perguntas, a atitude do nosso capelão começou a mudar. Além de nada conseguir explicar-me com alguma coerência, começou a embirrar comigo e a tomar-me de ponta. Ora dúvidas em cima de dúvidas, leitura de livros de ciência que muito iam explicando tornando corriqueiro e lógico o que até aí era considerado divino, afastaram-me completamente da religião e dos deuses. Mas aconteceu pior. Por essa altura eu já namorava uma moça, desde o ano anterior, mais velha do que eu três anos. Um dia de Inverno, mas bonito, depois de um passeio pelos campos, chegados a casa, com o frio enrolámo-nos demais e, palavra puxa palavra festinha puxa festinha acalorámo-nos e …

Se fosse hoje era caso corriqueiro, mas naquele tempo foi complicado. Cheio de problemas, resolvi fazer do padre Ruy meu confidente pensando que os seus conselhos me seriam úteis mas, qual quê, a partir daí se já não me podia ver pelas minhas convicções cada vez mais ateístas, pior ficou tratando-me quase abaixo de cão e dando-me não conselhos, mas só proibições que nada me ajudaram e, quando eu lhe mostrava que o que estava feito já estava e, portanto, a continuação dos factos seria natural, as minhas canelas sofreram as pancadas que o piedoso padre me aplicava com a biqueira das pesadas botas que usava.

O meu pai, pessoa de pensamentos já bastante avançados para a época, acabou por ser muito melhor conselheiro. Naquela época a rapaziada pelava-se por ver umas revistas de raparigas pouco ou nada vestidas e fazíamo-lo às escondidas guardando ciosamente essas pecaminosas folhas. Apareceram naquela altura os primeiros calendários com umas pequenas em “topless”

mas bastante compostas com uns calções curtos bem decentes. Em casa, o meu pai arranjou um e eu pedi-lho para mostrar à rapaziada pilónica. Foi um êxito e perante tal, resolvi colar as folhas nas contracapas dos meus cadernos. Um dia, num estudo presidido pelo padre Ruy, estava eu deleitosamente olhando as minhas ninfas quando fui surpreendido pelo padre com olhos em brasa, tipo mefistofélico. As carteiras eram abertas e as minhas pobres canelas pagaram pelo desaforo por mim cometido contra a moral pública. Quando ingenuamente lhe disse que aquilo era bonito e nada tinha de mal além de que me tinha sido oferecido pelo meu próprio pai, não houve qualquer deus ou semideus que me safasse de mais caneladas e algumas galhetas. Que me perdoem os meus camaradas pilões que gostaram do padre Ruy, mas aquilo não era um pedagogo nem um capelão para uma escola como o Pilão. Levei muitas galhetas de oficiais e professores. Todas profícuas e nenhuma me deixou rancores. As do padre Ruy nunca perdoei. Para conclusão da história digo que não casei com aquela namorada. Ao fim de quatro anos, já era alferes, acabámos o namoro por incompatibilidade de feitios além de que já colocado nas Caldas da Rainha me apaixonei por uma “baixinha” muito bonita. Essa também passou à história devido à minha ida para Timor em 1959. No regresso, à terceira foi de vez e encontrei aquela que ainda hoje é minha companheira. O padre Ruy já faleceu, mas não o esquecerei e não pelas suas boas obras. Se alguém se sentir ofendido com este meu escrito paciência, não foi essa a minha intenção.

 


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