segunda-feira, 15 de junho de 2020

O HOMEM

Escrito em tempos conturbados e troicanos com governos que nos delapidaram os proventos.

(reflexões de um cidadão comum)

(Publicado no Boletim da APE nº 229/13)

 

O homem deambulava pela rua de mãos nos bolsos observando os passantes tentando descobrir os pensamentos de cada um através das expressões e do porte de cada qual. Seria que tinham os mesmos anseios que ele? Seria que gostavam das mesmas coisas?

Seriam cultos? Teriam instrução? E teriam gosto em aprender, em saberem coisas? Ele tinha essa ânsia, essa vontade, esse gosto, mas do que lhe servia isso, se o facto de gostar de saber, de aprender, não lhe dava qualquer poder, quer económico quer de estatuto, continuava o mesmo, sem dinheiro, sem poder de compra, sem proporcionar aos seus aquela vida que gostariam de ter, de ver espectáculos, de sair e frequentar bons restaurantes, de vestir e comer bem sem grande trabalho e sem esforço. Que lhe servia saber discutir meia dúzia de assuntos, acabava tornando-se chato contraditando quase tudo o que os outros diziam, as pessoas falam de tudo e sobre tudo pela rama cometendo montes de erros, mas não gostam que lhos emendem e ele não era capaz de se conter e ainda por cima era um ateu convicto gostando de conhecer e entender os porquês e princípios das religiões, coisa que os crentes normalmente não fazem nem procuram esclarecer-se estando-se nas tintas para os quês e porquês bastando-lhes a fé que lhes incutiram desde o berço não se perguntando se todas as lengalengas que papagueavam tinham algum fundamento e serventia. Olhando os seres andantes de ar macambúzio deslocando-se de e para lado nenhum, perguntava-se se teriam dúvidas sobre o que pensam acreditar ou se não acreditando também duvidariam da descrença. Naturalmente sim, mas talvez não se preocupassem muito e o mais certo seria a porcaria de vida que levavam e o esforço que faziam para sobreviverem não lhes dar sequer tempo para pensarem quanto mais duvidarem de alguma coisa.

Gostava de escrever, mas não tinha grande talento para ficcionar e colocar no papel algo que não fosse trivial, que desse que pensar, que tivesse substrato. Andava e imaginava histórias e cenas para passar ao papel, mas chegava a casa e o que pensara já não lhe parecia suficiente para despertar a atenção de alguém e todo o escritor escreve para que o leiam. Por mais que digam que se pode escrever só por e para exercício da mente, todos anseiam que algum leitor se interesse e lhe faça elogios ou críticas construtivas que o levem a escrever mais e melhor.

No computador estavam montes de escritos inertes, estáticos, inactivos, que lhe apetecia apagar, mas não tinha coragem por serem da sua lavra e do seu esforço, mas que não conseguia mostrar a ninguém por achar-lhes sempre falta de qualidade.

Lia muito e bons autores e quanto mais o fazia mais verificava que aquilo que escrevia não se poderia comparar ao conteúdo sério daquelas obras.

Continuava andando e de repente acordava daquelas divagações interioristas dizendo para si próprio que a sua vida fora cheia, plena de acção, aventura, trabalhos bem-feitos, estudos bem-sucedidos, enfim, realizações que não o deixaram mal, mas que não o realizaram totalmente. Agora, aposentado, já sem acção directa em trabalhos remunerados, procurava realizar serviços para organizações não lucrativas como clubes e associações de que fazia parte o que lhe transmitia alguma sensação de utilidade. Estava no último terço da sua vida e sabia já não lhe restar muito tempo para se afirmar sobre o que fosse.

Também, infelizmente, não soubera gerir os parcos proventos que ganhara de modo a poder agora usufruir de um pouco mais de sossego económico. Infelizmente, o seu país nunca fora capaz de garantir aos que o serviram com risco das próprias vidas, o suficiente para poderem ter uma velhice calma e serena até ao fim dos seus dias. Mas, também sabia que muitos estavam em circunstâncias bem piores e a história mostrava que sempre fora assim.

Passou junto de uma igreja com os crentes saindo da última missa talvez convencidos de que estavam mais protegidos e acompanhados por um deus que faziam protector e pessoal, como se não houvesse neste mundo mais nada com que se preocupar. A fé serve para isso mesmo, é uma forma dos que pouco têm se convençam que vão ser ajudados a ter mais e dos que muito têm fiquem convencidos que nunca nada lhes faltará e os seus proventos e patrimónios aumentarão e ninguém nada lhes tire. Poucos são os que nada pedem para si ou que orem pelos outros que sofrem com a ganância dos que já tudo possuem, mas que ainda mais querem, sugando-lhes o esforço a mente e a vontade.

A maioria dos seres mortais constrói o seu mundo com fronteiras demasiado curtas e o que está para lá não lhes interessa por não lhes dizer respeito. Mas a humanidade é imensa e a maioria sofredora e despojada de quase tudo, sem educação, sem capacidade de sobrevivência e em meios hostis que lhes encurtam a vida e castram os pensamentos. Para que vivem então? Mais valia não nascerem só que isso não é programado e a natureza é fértil em produzir seres que apenas servem para alimento de outros seres, que mais fortes os sugam para sua própria sobrevivência. É assim com todos os animais e o homem não é diferente, mas, por ter entendimento que associa ideias, tenta sobreviver contra tudo e contra todos lutando com todas as armas de que pode dispor, causando batalhas que a ninguém aproveita. Os outros, aqueles que tudo obtêm por exploração dos mais fracos, quando lhes negam a possibilidade do saque, criam motivos para actuarem pela força começando guerras colocando as culpas na parte contrária normalmente mais fraca ou totalmente indefesa. Onde está um deus nessas alturas? Quem defende ele?

Ganham sempre os maus morrem os bons, mas serão mesmo bons? Naturalmente não são, se lhes derem azo de ficarem com os bens e proventos dos maus, acabam tão maus como eles.

O passeio estava a terminar, olhou de novo para os passantes, mas nada viu, voltaram a ser apenas seres que se deslocavam sem pensamento e nexo, nem sempre a aura envolvente dos humanos revela idiossincrasias ou então era ele que já não as perscrutava.

Há realmente momentos para tudo, mas também tudo muda e de repente, pois aquilo que se pensa sente e vê muda totalmente um segundo depois com a alteração de visão, local ou estado de espírito…

 


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